Imagine-se na seguinte situação: você é dono de uma propriedade rural, dentro da qual há uma RPPN (Reserva Particular do Patrimônio Natural). Essa RPPN foi criada para proteger um rio de rara beleza cênica, que nasce e deságua dentro da sua propriedade. A RPPN e o rio requerem cuidados especiais, para impedir que o gado ou visitantes, utilizando-se dele de maneira equivocada, causem danos. Você explora o rio economicamente, vendendo descidas a turistas que, de máscara, snorkel, roupa de borracha e salva-vidas desfrutam de um verdadeiro espetáculo subaquático, boiando entre cardumes de peixes de variadas espécies e de uma vegetação exuberante por quase uma hora.
Um belo dia, seus clientes são surpreendidos por canoas que sobem o rio, levando turistas a quem o seu vizinho, que mora mais abaixo – onde deságua o rio que nasce em sua propriedade – vendeu o mesmo programa.
O que você faria?
A controvérsia
A história acima não é fruto da imaginação. Ela é real e, como seria de se esperar, tem sido motivo de controvérsias entre os dois vizinhos na região de Bonito, no Mato Grosso do Sul. Já chegou até ao Poder Judiciário. Ambos os envolvidos têm as suas razões.
Desde 1988, a Constituição Federal estabeleceu que as águas, correntes ou depositadas, superficiais ou subterrâneas, são bens dos Estados ou da União, dependendo se atravessam, ou não, fronteiras estaduais ou nacionais:
“Art. 20. São bens da União:
(…)
III – os lagos, rios e quaisquer correntes de água em terrenos de seu domínio, ou que banhem mais de um Estado, sirvam de limites com outros países, ou se estendam a território estrangeiro ou dele provenham, bem como os terrenos marginais e as praias fluviais;”
“Art. 26. Incluem-se entre os bens dos Estados:
I – as águas superficiais ou subterrâneas, fluentes, emergentes e em depósito, ressalvadas, neste caso, na forma da lei, as decorrentes de obras da União;”
Ao mesmo tempo, desde 1997, a Lei 9.433/97, que estabeleceu a Política Nacional de Recursos Hídricos, dispõe, em seu art. 1º, I, que a água é um bem de domínio público:
“Art. 1º. A Política Nacional de Recursos Hídricos baseia-se nos seguintes fundamentos:
I – a água é um bem de domínio público;”
Pode-se dizer, portanto, que procede a justificativa do vizinho de que o rio, embora dentro de propriedade privada, é um bem público e, portanto, de uso comum, ao qual o proprietário da terra que o circunda não pode negar acesso.
Mas há que se considerar o ponto de vista dos proprietários da RPPN.
A Fazenda São Geraldo criou a RPPN do Rio Sucuri em 01.12.01 – hoje reconhecida como Zona Núcleo da Reserva da Biosfera do Pantanal – justamente para proteger o rio e seu potencial econômico diante de um quadro de crescimento exponencial de ecoturismo. Como toda RRPN, ela se caracteriza como uma porção de uma propriedade privada que, por alguma questão ambiental relevante, é destinada, pelo seu próprio proprietário, através de requisição aos órgãos ambientais competentes, à preservação ambiental.
Com isso, a área incluída fica definitivamente – mesmo que a propriedade mude de mãos – gravada com uma série de restrições quanto ao seu uso. Seu dono torna-se responsável pela sua manutenção, podendo sofrer sérias sanções caso realize ou permita atividades que comprometam a finalidade da RPPN.
Reforço do estado
Justamente para ajudar os proprietários dessa espécie de Unidade de Conservação a proteger as suas áreas, a Secretaria de Estado e Meio Ambiente do Mato Grosso do Sul (Sema) inseriu, no art. 5º da sua Resolução 006 de 26.10.93, sobre a criação de RPPNs, um parágrafo 2º onde estabelece o seguinte:
“Art. 5º (…):
(…)
§ 2º. A intervenção de terceiros no local, inclusive para a realização de pesquisas, dependerá de prévia anuência do proprietário, e de autorização da Sema, mediante a apresentação de projetos detalhados, sendo que a autorização somente será concedida se não forem afetados os atributos do imóvel que justificaram a instituição da Reserva.”
Com esse mesmo intuito, o governador de Mato Grosso do Sul editou, em 12.11.02, um decreto, também sobre a criação de RPPNs, no qual reforça a necessidade de autorização do proprietário para a sua utilização por terceiros:
“Art. 5º (…):
(…)
§ 4º. Qualquer atividade a ser desenvolvida na RPPN, sempre em conformidade com o Plano de Conservação, tem que se dar mediante conhecimento e autorização prévia expressa de seu proprietário.”
Ou seja, não há dúvidas de que a utilização de uma RPPN dependa da anuência de seus proprietários. Afinal, não apenas ela se localiza dentro de área particular, como a sua preservação é responsabilidade dele que, portanto, deve ter o direito de limitar o seu uso.
Como fica, então, a controvérsia?
Preservação e utilização
Em primeiro lugar, deve-se ter em vista que, pela simplicidade de sua criação, a RPPN é um valioso instrumento de proteção ambiental, juntamente com as áreas de preservação permanente (APPs). Podem ser utilizadas, como nesse caso, para proteger fontes de água, ampliando a mata ciliar, ou para criar corredores ecológicos, atravessando uma série de propriedades rurais. Sua criação, portanto, deveria ser estimulada pelo Poder Público, já que depende de um ato altruísta que não estamos acostumados a ver da parte de grandes proprietários rurais.
A razão para isso é simples. Além de, por vezes, a presença de uma RPPN diminuir o valor de uma determinada propriedade – já que quem a adquirir não apenas estará impedido de utilizar aquela porção do terreno como bem entender, mas também assume o ônus de preservá-la – ela ainda dá um bocado de trabalho para manter e controlar. Não é de se admirar, portanto, que elas não estejam exatamente brotando por aí.
A maneira mais fácil de incentivar a sua criação é dando incentivos fiscais, o que já é feito, com a isenção do ITR (Imposto Territorial Rural) sobre as áreas declaradas RPPN.
Outra forma seria garantir aos seus proprietários a exploração econômica exclusiva – e sustentável, por óbvio – da área. No caso da Fazenda São Geraldo, por exemplo, a flutuação no Rio Sucuri, apesar de ser feita em uma porção de menos de 10% do total da propriedade, representa cerca de 40% da sua renda. E a fazenda ainda oferece cavalgadas, caminhadas, mergulhos e passeios a cavalo, de bicicleta e com quadriciclos, fora da RPPN.
Em segundo lugar, detenhamo-nos por um momento na questão da publicidade do rio.
Todos os dispositivos citados acima que tratam da questão não se referem especificamente a qualquer corpo d’água, mas simplesmente à água em si, em variadas formas. As razões legais para isso são, primeiramente, que a água é um recurso natural de valor tão inestimável para a vida como um todo que seria uma temeridade colocá-la nas mãos de particulares. É apenas justo e razoável, portanto, que a água seja um bem público.
Também temos que considerar que a água pode ser vista, ainda, como uma importante via de transporte, da qual regiões inteiras do país ainda dependem. Seria inimaginável que alguém pudesse comprar ambas as margens do rio Amazonas ou do rio São Francisco e simplesmente proibir o trânsito de barcos no trecho dentro de sua propriedade. Existe, nesse caso, algo parecido com uma servidão, um direito forçado de passagem imposto a quem tem determinadas propriedades cortadas por estradas ou caminhos.
Particularidade de Bonito
No caso de Bonito, no entanto, o uso que se está discutindo não é o da água. Tampouco é o direito de passagem, de navegação, que está em jogo. O rio Sucuri liga nada a lugar nenhum. Subindo por ele não se chega a nada a não ser as terras da Fazenda São Geraldo. E as suas águas podem perfeitamente ser utilizadas mais abaixo, tão cristalinas quanto quando brotam da terra na nascente, fora da RPPN.
Quando alguém sobe o rio Sucuri para explorar comercialmente a sua descida, não está explorando as suas águas. Está explorando o trabalho de conservação, manutenção e controle, realizado integralmente e sob a responsabilidade exclusiva dos proprietários da RPPN que o envolve e o mantém límpido como é hoje. Se não fosse pela RPPN, os bois continuariam a entrar no rio para beber água e se banhar, levantando sedimentos do fundo e atrapalhando a visibilidade. Ou nele se afogando – como comprovam as inúmeras ossadas antigas vistas no fundo quando se faz a descida – o que tornaria o passeio insalubre e sujeito a encontros desagradáveis. Pessoas poderiam nele se banhar, também pondo em suspensão os sedimentos que hoje repousam no fundo.
Hoje, o que está em uso por quem sobe o rio Sucuri desde a sua foz, para nele mergulhar e se deslumbrar, não é o rio; não são as suas águas. É o trabalho alheio. Nesse caso, o direito aplicado ao pé da letra pode produzir grandes injustiças.
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