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Para se ler à luz do etanol

Lançado como livro de arte, Fragmentos de Mata Atlântica do Nordeste merece uma versão barata para ensinar o que aconteceu nas outras vezes em que o Brasil foi movido a canaviais.

11 de abril de 2007 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Fragmentos de Mata Atlântica do Nordeste merecia virar cartilha, antes que o brasileiro aprenda com o governo a chamar etanol de “revolução verde”. Só não pode ser porque, lançado como livro de arte, ele veio grande, caro, pesado e bonito demais para fazer carreira no magistério público. Tem 415 páginas. E tão bem ilustradas que, se bobear, o leitor nem percebe que, além de desenhos, gráficos, mapas e fotografias, há muito texto. E, distraído, passar por suas páginas sem saber o que está perdendo.

No caso, o que ele estará perdendo, mais uma vez, é a própria Mata Atlântica nordestina. O livro é a súmula de 237 expedições que, por dez anos, vasculharam o que resta de vegetação nativa ao norte do rio São Francisco, principalmente nos estados de Pernambuco e Alagoas. A pesquisa rendeu a descoberta de 22 bromélias desconhecidas, que corriam o risco de sumir antes que se soubesse de sua existência. Dezessete desses achados constam do livro, junto com outras novidades botânicas, também desencavadas “no limiar da extinção”, em andanças por outros cantos do Nordeste.

Inegável beleza

Dito assim, parece caso de se festejar. Mas, logo na nota de advertência, os autores só faltam pedir desculpas pela “inegável beleza” das plantas. O botânico José Alves Siqueira Filho e o juiz Elton Leme, especialista em bromélias, fazem questão de pôr no livro “todas as cores de uma realidade muito pouco favorável” ao futuro das florestas onde vivem essas espécies. Sobraram, no máximo, 6% dos cinco milhões da mata que existia originalmente naquele lado do São Francisco. E o que ficou está tão fragmentado que, em Pernambuco, metade desses retalhos tem menos de 10 hectares. Com essa medida, caberiam cinco vezes num arboreto urbano como o do Jardim Botânico no Rio de Janeiro.

Em migalhas desse tamanho, nem é preciso fazer mais estragos. O tempo cuidará de liquidá-las sozinho, “para a conservação de inúmeros seres vivos, as ações futuras provavelmente chegarão tarde demais”, concluem Siqueira e Leme. No Nordeste, a Mata Atlântica tem uma história já muito longa, mas ainda inconclusa de “erosão biológica”. Sua demolição está lastreada num modelo de “crescimento sem desenvolvimento” , baseado numa “economia de rapina” que fincou raízes na região durante o século 16, com os primeiros engenhos de açúcar coloniais. Foi desde o início movido a cana. E a cana, segundo Gilberto Freyre, “entrou aqui como um conquistador em terra inimiga: matando as árvores, secando o mato, afugentando e destruindo os animais e até os índios”.

Esse caminho histórico da “opulência vegetal” à “entronização da entropia”, passando pela “cobiça insaciável”, está mapeado num belo capítulo do Clóvis Cavalcanti, pesquisador da Conservação Internacional. Cavalcanti é “da Zona da Mata de Pernambuco”. Nasceu “entre canaviais numa usina de açúcar”, onde seu pai era contador. Sua bisavó foi “senhora do engenho Taquarinha, em Maraial”. Seu bisavô “fornecia cana para a Usina Catende”. Ele cresceu cercado pela monocultura canavieira, mas se lembra das viagens de trem, nos anos 40, vendo desfilarem pela janela “pedaços significativos da esplendorosa Mata Atlântica. Um deles, o da bela Serra do Espelho, ainda hoje uma reminiscência magnífica do que era a floresta original, se bem que reduzida a 630 hectares”. Havia “tatus, macacos, sagüis, cotias, tamanduás, gatos-do-mato, capivaras, preguiças, cobras e uma diversidade de aves”.

Cadê essa bicharada? Surpreendentemente, continua lá, tão rarefeita que se tornou quase invisível. Mas ela que se cuide. O último censo dos guaribas pernambucanos contou 13 indivíduos, em dois grupos isolados. Essa fauna em liquidação foi minuciosamente inventariada no Capítulo 5, com ajuda do primatólogo Adelmar Coimbra Filho. Coimbra é veterano de “revoluções verdes” na região. Viu passar por ali o Pró-Álcool, nos anos 70, quando escrevia sobre a Mata Atlântica nordestina. Fez, na época, um pequeno livro, que traz na capa a fotografia de uma floresta e, na contracapa, um campo de tocos calcinados. Foram tiradas no mesmo lugar, de um ano para outro. Entre as duas fotografias, a cana chegou, com incentivos fiscais, à derradeira floresta de Alagoas.

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