*Publicada originalmente na revista Natureza & Conservação.
O extrativismo pode ser definido como um modo de obter recursos (e.g., alimentos e matérias-primas) por meios ou sob circunstâncias tais que dispensam as atividades e os custos do cultivo prévio. Nesse sentido, o lema geral do extrativismo bem poderia ser “colhendo sem plantar”; em contraste, por exemplo, com o famoso mote da agricultura tradicional, “colhe-se o que se planta”. No Brasil, o extrativismo foi institucionalizado como instrumento de política ambiental em 1989 e, desde então, as chamadas reservas extrativistas passaram a ser tuteladas como unidades de conservação (Gomes & Felippe, 1994).
Ao lado de algumas outras categorias, como as áreas de proteção ambiental e as florestas nacionais, as reservas extrativistas são reconhecidas pela legislação brasileira como unidades de conservação de uso direto (ou unidades de uso sustentável), em contraposição às unidades de uso indireto (ou de proteção integral), entre as quais se destacam as reservas e os parques (Bruck et al., 1995; ver ainda Costa, 2003). Enquanto as unidades de uso indireto são criadas para atender objetivos não-exploratórios – tais como recreação, pesquisa científica e, em especial, conservação biológica –, as unidades de uso direto são criadas com fins explicitamente exploratórios. Reservas extrativistas, em particular, podem ser descritas como unidades de uso direto, nas quais populações humanas tradicionais (i.e., previamente estabelecidas na área) ou “neotradicionais” (ver Begossi, 1998) vivem dentro de seus limites, explorando ou mesmo cultivando recursos locais (madeiras, frutos, animais de caça e pesca etc.).
As primeiras reservas extrativistas surgiram no Acre, em 1990, envolvendo grupos de seringueiros e castanheiros, com o objetivo declarado de tentar conciliar o desenvolvimento econômico com a conservação biológica (Allegretti, 1990; ver ainda Arnt, 1994). Desde então, várias outras reservas extrativistas foram criadas, tanto pela União como pelos estados. Em 1992, para se ter uma idéia, apenas dois anos após a criação da famosa Reserva Extrativista Chico Mendes, o país já contava com nove reservas extrativistas, em seis estados da federação (Acre, Amapá, Maranhão, Rondônia, Santa Catarina e Tocantins), ocupando juntas mais de 11 milhões de hectares (Gomes & Felippe, 1994; ver ainda Bruck et al., 1995).
Ao contrário do que possa parecer, no entanto, a história e a geografia das experiências extrativas começaram bem antes disso e em um lugar bem distante (Homma, 2000): os pioneiros foram imigrantes poloneses que, no século 19, adotaram em terras paranaenses o sistema faxinal, tentando com isso prosperar vivendo em áreas de floresta nativa ricas em erva-mate. Em termos econômicos, é bem verdade que a erva-mate é hoje o principal produto nativo (não-madeireiro) de origem florestal do país [Nota 1], mas o sistema de produção é outro – o sistema extrativo dos imigrantes poloneses foi gradativamente substituído pelo plantio extensivo.
As leis de mercado e o extrativismo
Duas questões podem ser levantadas quando falamos no papel que o extrativismo desempenha ou poderia vir a desempenhar em uma equação comumente rotulada de “desenvolvimento sustentável” [Nota 2]: as de natureza essencialmente econômica e as questões propriamente ecológicas. Embora alguns autores ressaltem a possibilidade ou até mesmo a importância do extrativismo como uma tentativa promissora de conciliar o desenvolvimento econômico com a conservação da biodiversidade (e.g., Allegretti, 1990; Begossi, 1998; Alho, 1999), a adoção de reservas extrativistas tem sido seriamente criticada, tanto do ponto de vista econômico como ecológico.
Certos autores – oriundos principalmente das chamadas ciências humanas – insistem em defender a visão de que populações tradicionais vivem ou podem viver em equilíbrio duradouro com a natureza (e.g., Benjamin, 1993; Arnt, 1994; Bressan, 1996; Diegues, 1996; para críticas ou opiniões diferentes, ver Urban, 1998; Ridley, 2000; Dourojeanni & Pádua, 2001; Garay & Dias, 2001). O maior problema aqui é que essa opinião não costuma vir acompanhada por evidências que a sustentem, mais parecendo com a defesa cega que se faz de uma posição ideológica. Nesse sentido, a visão de um equilíbrio duradouro com a natureza seria mais um preconceito do que uma conclusão a que se chega após uma análise criteriosa de um leque amplo e variado de pesquisas científicas independentes. Um exemplo imaginário talvez ajude a esclarecer melhor o tipo de conflito com o qual estamos lidando aqui, especificamente quando falamos em reservas extrativistas como uma tentativa de conciliar o desenvolvimento econômico com a conservação biológica.
Suponha que o seu Antônio sustente a família (ele, a esposa e um casal de filhos pequenos) coletando e vendendo 50 kg de castanha-do-pará por semana. Sua família vive modesta mas honradamente, em uma reserva extrativista recentemente criada pelo governo federal em uma floresta que cresce em terras públicas. Com base apenas nas atividades do seu Antônio, e admitindo que o preço unitário da castanha permaneça inalterado ao longo do tempo, três cenários futuros poderiam ser vislumbrados:
(1) O tamanho do mercado (nacional e internacional) de castanha-do-pará fica congelado (i.e., a demanda por castanha permanece inalterada). Seu Antônio passa toda a sua vida ativa (digamos, até se aposentar) trabalhando duro para sustentar a família com os mesmos 50 kg de castanha por semana. Com o tempo, a família talvez sofra um certo empobrecimento, principalmente por causa do aumento na demanda por bens que em geral acompanha o crescimento dos filhos. Um jeito de compensar esse aumento na demanda por bens e, com isso, tentar driblar o empobrecimento, seria forçar a entrada prematura dos filhos no mercado de trabalho. A médio e longo prazo, no entanto, isso parece ser apenas um atalho que leva ao fracasso – i.e., o trabalho infantil degrada a vida presente e compromete a vida futura dos filhos. A bolsa-escola para filhos de famílias extrativistas bem poderia ser um contrapeso direto, simples e eficiente a esse aparente beco sem saída. Em todo caso, com ou sem bolsa-escola, seu Antônio prefere enviar os filhos para a escola, acreditando que dias melhores virão.
(2) O mercado cresce. Os 50 kg/semana já não são mais suficientes para atender a demanda, pois o mercado compra tudo o que se consegue coletar e oferecer. Com uma demanda crescente, seu Antônio e os vizinhos logo perceberão que os limites da reserva são “apertados demais”. Como não podem simplesmente contratar empregados e sair coletando castanha-do-pará pelo mundo afora, eles logo descobrirão o caminho mais eficiente para continuar atendendo à demanda crescente do mercado: aumentar a densidade dos recursos que estão explorando. Em outras palavras, converter trechos de florestas heterogêneas (nas quais as castanhas são relativamente raras e estão bem afastadas umas das outras) em áreas de monocultura. Se os extrativistas locais não descobrirem isso, outros agentes econômicos cedo ou tarde descobrirão. Não deve surpreender, por exemplo, o que já se passa com a exploração econômica das seringueiras: o Acre, que até pouco tempo atrás era o maior estado produtor brasileiro, perdeu essa posição para o estado de São Paulo, onde a espécie está sendo cultivada em monoculturas intensivas.
(3) O mercado encolhe. Ao invés dos 50 kg/semana iniciais, seu Antônio agora só consegue vender 10 kg de castanha por semana. Com uma demanda decrescente, ele e os vizinhos tendem a empobrecer (com ou sem filhos pequenos para criar); muitos extrativistas eventualmente abandonarão a atividade, migrando para outros lugares. Em algum momento, no entanto, eles podem descobrir que há mercado (dentro e fora do país) para outras riquezas encontradas em abundância dentro dos domínios onde moram. Assim, muito embora a reserva extrativista tenha sido originalmente estabelecida pelo governo para fins de exploração da castanha-do-pará, a perda e/ou o encolhimento do mercado desse produto faz com que os extrativistas remanescentes alarguem (muitas vezes de modo irregular e ilegal) a base de recursos que exploram – até mesmo quando isso significa abater trechos inteiros de floresta ricas em castanheiras. Quer dizer, castanheiros podem facilmente se converter em caçadores, lenhadores, carvoeiros etc.
O primeiro cenário descrito acima talvez seja o mais raro dos três; na maioria das vezes, vamos lidar com situações mais parecidas àquelas descritas pelos cenários 2 e 3, nos quais, de um jeito ou de outro, a floresta e sua biodiversidade são corroídas. No cenário 2, a floresta vem abaixo para dar lugar a áreas de monocultura; no cenário 3, a floresta é desmontada e vendida aos pedaços. Neste ponto, uma conclusão parece inevitável: do ponto de vista da economia de mercado, as reservas extrativistas são inerentemente instáveis (Homma, 2000). O lado econômico da equação “desenvolvimento sustentado” exigiria, portanto, outros componentes ou componentes adicionais (e.g., “externalidades” sensu Merico, 1996) para se manter equilibrado.
Erosão biológica
Mas não é só de um ponto de vista econômico que as reservas extrativistas apresentam problemas; em termos ecológicos, também. A própria idéia de que uma baixa densidade de extrativistas (que, por definição, viveriam principalmente da coleta e do processamento daquilo que a natureza oferece) seja um cenário pouco ou nada impactante está sendo agora seriamente desafiada. É bem verdade que há uma certa hierarquia: uma reserva extrativista, por exemplo, tende a provocar menos impactos destrutivos sobre a floresta do que uma companhia madeireira que, por sua vez, tende a causar menos impactos que um pequeno fazendeiro que, por sua vez, é menos destrutivo que um grande pecuarista (e.g., Fearnside, 1995). Em termos relativos, o extrativismo poderia então ser visto como um empreendimento de menor impacto negativo. No fim das contas, porém, isso não significa que a atividade extrativa esteja sendo praticada sobre bases sólidas e sensatas e seja, portanto, algo ecologicamente duradouro.
Já dispúnhamos de registros históricos (e.g., Dorst, 1973; Ponting, 1995; Ward, 1997), antropológicos (e.g., Ridley, 2000 e referências citadas) e econômicos (e.g., Homma, 1980, 1982, 2000) alertando contra a noção – ingênua ou, às vezes, francamente demagógica – de que populações tradicionais ou neotradicionais vivem em harmonia ou exploram os recursos de modo ecologicamente sensato. Ao contrário, as evidências indicam que populações humanas tendem a explorar os recursos disponíveis até a exaustão, principalmente quando se trata do uso de bens públicos (sensu Hardin, 1968; ver ainda Ridley, 2000). No mundo de nossos ancestrais, quando as fontes de recursos locais secavam, uma solução comumente adotada era a migração para novos lugares desabitados (afinal, foi assim que nossos ancestrais colonizaram o planeta); no mundo congestionado de hoje, porém, fugir simplesmente está ficando cada dia mais difícil…
Desflorestamentos: dos tratores à coleta de sementes
Muitos de nós já testemunhamos os métodos de desflorestamento em larga escala, uma prática de guerra que envolve coisas como motosseras, correntes, tratores, incêndios etc. Ao lado desses métodos de destruição (quase) instantânea, devemos agora acrescentar métodos crípticos de desflorestamento, que estão corroendo muitas florestas tropicais por dentro; aos poucos, mas em tempo real.
Começam a surgir evidências sólidas contra a suposta sustentabilidade até mesmo da prática extrativa (aparentemente) mais inofensiva de todas: coletar sementes caídas no chão da floresta. Em um artigo recente, Peres et al. (2004) mostram que a coleta intensiva de ouriços da castanha-do-pará (i.e., o fruto com as sementes dentro) encontrados no chão é, por si só, uma atividade impactante, a ponto de alterar a demografia das populações vegetais exploradas pelos extrativistas de modo significativo. O estudo envolveu uma comparação da estrutura demográfica de 23 populações de castanheira distribuídas em 20 áreas da Amazônia de três países, a saber: Brasil (15 populações em 13 áreas), Peru (6 populações em 5 áreas) e Bolívia (2 populações em 2 áreas). As populações estudadas tinham sido expostas a diferentes níveis de exploração das sementes, mas todas estavam crescendo em florestas íntegras.
Ao final das análises, os pesquisadores concluíram que a história e a intensidade de uso foram os principais determinantes da estrutura demográfica atual das populações de castanheira. Nos sítios mais explorados, o recrutamento de novas árvores seria insuficiente para garantir a persistência das populações no longo prazo. Trocando em miúdos, mesmo sob a hipótese de que nenhuma castanheira adulta venha abaixo sob a lâmina de um machado, a “inofensiva” coleta de frutos está impedindo que as sementes germinem em quantidade suficiente para que árvores jovens cresçam e prosperem, substituindo seus pais e formando assim as novas gerações. Como as árvores adultas atuais (de onde caem os ouriços) cedo ou tarde morrerão, não é muito difícil prever o esgotamento vindouro dessa fonte tão valiosa de recursos.
Na opinião dos autores, a solução para o problema não envolveria nada mirabolante ou tão complicado assim: apenas um pouco de moderação, como a necessidade de deixar as áreas exploradas periodicamente em pousio. Uma estratégia complementar seria estimular o cultivo e o plantio de plântulas jovens. Em todo caso, como se vê, nada que vá custar muito ou que ainda não possa ser feito para evitar que a paisagem florestal da Amazônia e de outras regiões brasileiras se transforme de modo irreversível em um cemitério de árvores (Homma, 2004) ou em uma ilusória paisagem dominada por mortos-vivos (Costa, 2001). Para superar as políticas que costumam apenas favorecer a atividade “menos pior”, precisamos começar a construir modelos e cenários de exploração dos recursos que sejam economicamente consistentes e ecologicamente duradouros.
Notas
1. Em termos econômicos, os principais produtos de origem florestal do país são os seguintes (entre parêntesis, as principais áreas produtivas): erva-mate (estados da região Sul); piaçava (estados do Nordeste, principalmente na Bahia); açaí (estados do Norte e Maranhão); babaçu (estados do Nordeste, Pará e Minas Gerais); carnaúba (estados do Nordeste); palmito (estados do Norte, Sudeste, Sul e Centro-Oeste), látex (estados do Norte e Mato Grosso) e castanha-do-pará (estados do Norte). (Fonte: IBGE, 1997)
2. “Desenvolvimento sustentável” é comumente interpretado como um nível de desenvolvimento econômico cujo ritmo atual de realização (envolvendo coisas como demanda por recursos naturais e geração de resíduos e poluentes) não comprometeria níveis semelhantes de exploração no futuro. Para detalhes, ver CMMAD (1991), Goodland (1995) e Merico (1996).
Referências citadas
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