Análises

Utopia pré-ambientalista do século XX

O DF nasceu do acaso. Aos 50 anos, Brasília precisa investir em transporte  se quiser manter o conceito de cidade jardim.

Alfredo Gastal ·
9 de abril de 2010 · 15 anos atrás
Foto de satélite da capital em 1975 (fonte: NASA)
Foto de satélite da capital em 1975 (fonte: NASA)

Na segunda metade dos anos 50, o clima cultural reinante parecia abrir os caminhos para que o Brasil começasse uma jornada em direção a utopias tropicais. Juscelino Kubitscheck de Oliveira, que assumiu a presidência da República em janeiro de 1956, tornou-se quase de imediato um presidente popular, com posturas desenvolvimentistas e, oito meses após, decidiu-se pela construção de Brasília adiada desde 1891. Nessa mesma época a burguesia nacional também erigia um sonho que mesclava de forma onírica o existencialismo de Jean Paul Sartre, com vagas noções de Marxismo e profunda admiração pela recém vitoriosa Revolução Cubana. O Teatro Brasileiro de Comédia, o Cinema Novo , a Bossa Nova.

O Brasil de Juscelino explodia também nas artes plásticas com Portinari, Guignard, Ceschiatti, Bruno Giorgi, e com a arquitetura genial de Oscar Niemeyer, guindado ao posto de arquiteto da República. Sob essas influências libertárias nasceu das mãos do criterioso, metódico e discreto, Lúcio Costa, Brasília a nova capital de um país que se regozijava consigo mesmo e, cuja ingenuidade burguesa imaginava que o “boom” intelectual e a industrialização crescente – que começava a produzir automóveis para a classe média – poderiam levá-la à sua própria revolução socialista cantando a versão espanhola da Internacional.

“Brasília é o que é: um ambiente urbano ideal, Pré-Rafaelita, para o qual o ralo e torturado Cerrado não possuiria aves gorjeantes que gorjeavam como lá (no tropical Rio de Janeiro). “

O Plano Piloto, criado em 1957, foi nos seus primórdios o reflexo de uma cultura de classe média alta e intelectualizada que se entregou de braços abertos ao Movimento Moderno de Arquitetura, que, para o caso da Brasília concebida por Lúcio, representava a cidade ideal, a cidade-parque, onde as atividades humanas – trabalho, habitação, lazer – estão rigidamente divididas por setor. Aqui o verdor tropical da Mata Atlântica se encontra com a disciplina do Bois de Boulogne e, o Cerrado, se curva aos pés de ambos.

Pré “Clube de Roma”, pré “Os Limites do Crescimento”, Brasília é o que é: um ambiente urbano ideal, Pré-Rafaelita, para o qual o ralo e torturado Cerrado não possuiria aves gorjeantes que gorjeavam como lá (no tropical Rio de Janeiro). A fonte de inspiração original de Brasília é a cidade jardim, concebida inicialmente por Ebnezer Howard, no início do século XX, que nada tinha de “ambiental” como hoje se interpreta. Era mais uma satelitização rural do excedente urbano. Muito embora Lúcio não haja proposto isso, pois acreditava que o desenvolvimento da região se daria lentamente, a realidade se lhe contrapôs.

Somente 30 anos depois da elaboração do projeto da cidade o conceito de desenvolvimento sustentável aparece no Relatório Brundtland, também conhecido pelo título “Nosso Futuro Comum”, apresentado pelas Nações Unidas em 1987.

Embora Brasília hoje ainda não tenha chegado a 400 mil habitantes o Distrito Federal já possui quase 2,5 milhões de almas (ou seja 6,5 vezes mais pessoas). Por outro lado, o território da área tombada é da ordem de 13,5 km2, ou seja, 430 vezes menor que a área total do DF. O resultado dessa desproporção em área e população é diretamente proporcional à falta de planejamento regional no espaço destinado à capital.

Criada por Juscelino, rejeitada por Jânio Quadros, tumultuada na disputa entre a legalidade e o golpe militar, Brasília foi, por 20 anos uma espécie de Versailles caboclo do século XX. Para os militares, segura, afastada das grandes metrópoles, perfeita para receber na paz do Cerrado chefes de estado, e, por isso, bastante preservada. Quando aumentava muito a população de baixa renda, criava-se uma nova cidade satélite (na acepção da palavra, totalmente dependente de Brasília). Veio a democracia, mas o elitismo das classes “dirigentes” permaneceu. Sustentabilidade econômica ou ambiental… nem pensar. Porém, populismo, já é outra coisa… Não apenas populismo para os mais pobres, mas também populismo oportunista para a classe média sob a forma de condomínios sobre terras invadidas.

Assim, 50 anos após sua criação, esta cidade, a Capital da República Federativa do Brasil, apesar de estar bastante bem preservada, possui uma claque de detratores com interesses difusos. Alguns acham que deve permanecer intocada, seus prédios “modernos”, exatamente como foram construídos nos anos 60. Sem saídas de incêndio, sem conforto ambiental, sem segurança, sem comunicações atualizadas. Algo assim, como manter o Palácio dos Elissées sem eletricidade, sem cabos para informática, sem sala de imprensa, etc. Por outro lado, a realidade nua e crua: a existência das pressões de um insaciável mercado imobiliário cuja tese é quanto mais perto do poder melhor, afinal, a infra-estrutura, ainda que hoje claudicante está aqui mesmo. A Brasília tombada sofre de uma profunda displasia urbana, que pode transformar-se em galopante, ocasionada pela síndrome de Maria Antonieta que ataca seus governantes. E o maior risco é perder-se na história e transformar-se na capital hipertrofiada de um estado que foi um dia a capital da República.

“Mesmo involuntariamente, o Brasília tende a transformar-se num centro metropolitano que, se não for objeto imediato de ações de planejamento regional poderá desaparecer, tragada pelo crescimento desordenado.”

Esta é uma capital federal, onde incidem os maiores investimentos urbanos, e que concentra também mais de 70% dos empregos do DF. Portanto, mesmo involuntariamente, tende a transformar-se num centro metropolitano que, se não for objeto imediato de ações de planejamento regional – de desenvolvimento econômico e social da região do DF, de descentralização da geração de empregos, de racionalização dos transportes urbanos de massa e de planejamento de medidas radicais de proteção ambiental – poderá desaparecer, tragada pelo crescimento desordenado do DF e seu entorno.

O espaço polinucleado do Distrito Federal nasceu do acaso e não do planejamento. Muitas cidades se ergueram sobre os acampamentos operários que para cá vieram construir a capital. Outras foram criadas pelos vários governos que se sucederam, para “preservar” o Plano Piloto do destino de outras cidades brasileiras: o “estigma” do favelamento. Assim, os assentamentos se deram em função de terras disponíveis ou de baixo custo. Outros foram o resultado de invasões de terras comandadas por políticos e outros da vontade “soberana” de alguns governadores.

Brasília é hoje Patrimônio da Humanidade, um título único como cidade moderna; é também protegida, como Patrimônio Nacional pelo IPHAN. Porém, se o governo da Capital seguir concentrando seus investimentos na criação de obras de engenharia – vias, viadutos – destinados preferencialmente aos automóveis e se, por outro lado, não racionalizar os projetos de transporte de massa, tais títulos de patrimônio poderão ter vida curta e o desenho original da utopia criada nos anos 60, com base no conceito de cidade jardim, desaparecerá no caos urbano provocado por seus próprios governantes e habitantes.

Há que lembrar que o que digo agora reflete a realidade de um país que cresceu nos últimos oito anos com grande velocidade e, mais que isto, conseguiu aumentar expressivamente a renda dos mais pobres (cerca de 32 milhões de pessoas subiram nesse período para as camadas A, B e C. Já as camadas D e E encolheram significativamente durante esse mesmo espaço de tempo). Isto significa, também, que mesmo com sacrifício de algumas amenidades do conforto, o brasileiro, quando não encontra transporte público minimamente adequado, compra um automóvel com 5, 10 ou 15 anos ou mais de uso para poder ir ao trabalho (um carro para cada 2,2 habitantes).

Tal fato explica o caos nos estacionamentos comerciais ou dos escritórios de governo em Brasília. A solução ao problema não está no criar mais garagens ou estacionamentos. Ela está no planejamento regional com foco no investimento no transporte público de massa que atenda toda a região do DF e na geração racional de empregos distribuída no espaço econômico dessa mesma região.

Finalmente insisto em repetir ad nauseam: apesar dos pesares Brasília é e deve continuar a ser a Capital da República Federativa do Brasil, mesmo que, às vezes, algumas políticas e alguns políticos nos façam duvidar disso. Esta capital foi criada por Juscelino, Lucio Costa, Oscar Niemeyer, Israel Pinheiro num momento de especial crescimento e estabilidade política neste país. Voltamos a este patamar e ascendemos como nação, social e economicamente. Não há porque desistir ou abdicar da história feita por nós mesmos há apenas cinqüenta anos.

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