O país tem assistido a situações trágicas, consequências da má gestão do território e das bacias hidrográficas. Negligências históricas se acumulam e se transformam em bombas-relógio. Cada uma, há seu tempo, estoura na mão da população.
As armadilhas desse campo minado não diminuem, nem são desmontadas por políticas públicas. Isso significa negligenciar o direito das populações atuais e futuras de viverem em um meio ambiente ecologicamente equilibrado.
A maioria dos acontecimentos calamitosos associados às chuvas, que vêm atingindo municípios brasileiros, não foram acidentes. A quantidade de elementos conceituais e documentos técnicos abordando riscos de ocupações humanas em áreas inadequadas, bem como a necessidade de tomada de medidas, daria para encher um estádio de futebol.
Uma vez consumadas novas tragédias, ano após ano se repete o desfile de autoridades promovendo apressadas discussões, que desaparecem da mídia assim que para de chover. Apresentam-se como se estivessem surpresas. Parecem não ter a menor ideia de como atuar diante destes problemas. Ora, as orientações estão disponíveis há muito tempo! Falta compromisso com o que deve ser feito, o que passa no mínimo por preservar os princípios da legislação ambiental brasileira e garantir o seu cumprimento.
“Os prejuízos sociais, ambientais e econômicos de não respeitar normas como o Código Florestal são incontáveis e vão continuar ocorrendo, se nada for feito.” |
Em Santa Catarina, São Paulo, Rio de Janeiro e em outras localidades do país, milhares de cidadãos foram prejudicados e outros perderam até suas vidas em função de enchentes e deslizamentos, devido à permissividade da ocupação humana em locais vedados pela legislação vigente. É impossível negar que muitas dessas situações se devem ao desrespeito à legislação, a exemplo do Código Florestal. Profissionais reconhecidos, ligados a instituições de ensino, pesquisa e ciência do país já se manifestaram claramente neste sentido.
O Código Florestal é o principal instrumento legal válido em todo o país contra o campo minado a que vem sendo submetida a nossa população. Está voltado a prevenir riscos, bem como para garantir a manutenção da qualidade ambiental (meio ambiente ecologicamente equilibrado: proteção das águas, dos solos, da biodiversidade, da paisagem, da flora, da fauna, dos ecossistemas, etc), tanto em áreas urbanas como em rurais. Se fosse respeitado, evitaria a ocupação e intervenção humana em áreas que são de inundação natural dos rios, como as várzeas e áreas marginais; ou que são ambientalmente frágeis, passíveis de sofrer deslizamentos, como se vê em muitas encostas que integram nosso cenário tropical.
Os prejuízos sociais, ambientais e econômicos de não respeitar normas como o Código Florestal são incontáveis e vão continuar ocorrendo, se nada for feito. De outro lado, o cenário apontado pelas mudanças climáticas aumenta ainda mais a necessidade de proteger as populações. Chove de forma mais intensa e concentrada, além de intempestivamente.
Neste contexto em que tudo apontaria normas ambientais ainda mais restritivas, inclusive em função das preocupações mundiais com o clima e a biodiversidade, assistimos no Brasil a um descalabro. A bancada ruralista do Congresso, desconsiderando toda a evolução atingida pela sociedade brasileira e pelos próprios governos em relação à legislação e à gestão ambiental, tanto no que se refere à áreas urbanas como rurais, apresenta uma série de projetos de lei que pretendem não só desfigurar o Código Florestal, mas todo arcabouço de princípios e instrumentos legais que estruturam a gestão ambiental no Brasil.
Dentre os Projetos de Lei, o PL 1876/99 e seus pensados atentam agressivamente contra os principais instrumentos da legislação ambiental brasileira, tais como a Lei 4771/65 (Código Florestal), a Lei 6938/81 (Política Nacional do Meio Ambiente) a Lei 9605/98 e a Lei 9985/2000, entre outros instrumentos de proteção ambiental. Mas este é apenas um exemplo, porque existem centenas de projetos de lei, propostos pela bancada ruralista, todos voltados para remover restrições da legislação ambiental, pois afetam as suas atividades, em maior ou menor grau.
“Para atingir os seus propósitos, a bancada ruralista simula ignorar ou distorcer o conhecimento científico disponível, desrespeitando a Constituição Federal e princípios fundamentais do Direito Ambiental.” |
Para atingir os seus propósitos, a bancada ruralista simula ignorar ou distorcer o conhecimento científico disponível, desrespeitando a Constituição Federal e princípios fundamentais do Direito Ambiental. Nota-se a atuação dos lobistas, representantes de setores coorporativos específicos, como do agronegócio, agindo com apoio de parlamentares sem atuação cívica e até de agentes públicos que influenciam os órgãos públicos do Sisnama (Sistema Nacional de Meio Ambiente). Conjuntamente, manipulam e adotam versões falaciosas para defenderem seus interesses.
Ligados a grandes fortunas e de personalidades de destaque no país, contam com facilidade de usar da mídia. Simulam discussões “democráticas” com a sociedade (audiências públicas manipuladas) em busca de falsa legitimação e apoio para propostas que só irão promover a degradação ambiental no país.
A estratégia é clara. Com uma “chuva” de projetos de lei, pretendem adulterar as principais leis ambientais do país, que consideram estorvo para a ampliação dos lucros do agronegócio. De outro lado pressionam o poder público a fazer flexibilizações. Ameaçam com monstros, para que a sociedade digira suas exigências e admita o mal menor, o “aceitável”. Já sinalizam com monstros mais ajeitadinhos, tática baseada em “consensos” e cinismo. Há ainda a “modernização” do atual Código Florestal, que não passa de uma falaciosa flexibilização, desprovida de fundamentação científica.
A chorumela do agronegócio em relação a inviabilização das suas atividades, em função da legislação ambiental, é insustentável. O problema é que o segmento não quer perder nada, quer lucrar mais e mais – e o meio ambiente, desta forma, tem que ser transformado em um problema, quando na verdade é solução.
O pior é que este setor proponente não representa a integralidade da agricultura brasileira. Usou como estratégia falar em nome dela e, em vez de buscar a formulação de políticas públicas específicas por meio de discussões democráticas com a sociedade para resolver seus problemas e demandas de outra forma, decidiu simplesmente destruir as bases de toda a legislação ambiental brasileira. É assim, simples e inconsequente!
A bancada ruralista pretende ainda remeter as discussões relativas à gestão ambiental brasileira para os estados, buscando afastar as normas gerais federais, como é o caso do Código Florestal, indispensável para viabilizar uma gestão adequada e integrada do território. Eles têm como modelo ideal, o inconcebível e inconsequente Código Ambiental de Santa Catarina (aquele que reduziu a proteção ambiental para todo o estado, mesmo depois das tragédias ali ocorridas). Elegeram também o instrumento do Zoneamento Ecológico-Econômico (ZEE) como panaceia e, para tanto, pleiteiam antes moldar o próprio regulamento deste instrumento aos seus interesses.
A paixão recente da bancada ruralista pelo instrumento do Zoneamento tem explicação. Eles sabem, a exemplo do que ocorreu com o Código Ambiental de Santa Catarina, que, muitas vezes, quando são elaborados os Zoneamentos Ecológicos estes tendem a ter uma discussão concentrada no atendimento de demandas político-partidárias e interesses de prefeitos, onde audiências públicas são convertidas em vergonhosas propagandas governamentais. Depois de aprovadas, as diretrizes dos ZEE’s raramente vêm acompanhadas dos instrumentos de articulação, execução e gestão, necessários para as suas implantações efetivas. Elas acabam sendo adotadas por quem quer e na hora que lhes convém. De resto, passa a ser mais um jogo de mapas e textos estáticos e desatualizados, mofando nas gavetas das repartições públicas – bem longe do mundo real.
Movimentando-se de forma midiática, desenha-se uma necesidade de reconhecimento dos “heróis da produção”, mesmo com conhecidos padrões de latifúndio, das monoculturas como cana e soja e da transgenia. Estão cegos e surdos para qualquer análise crítica sobre sua atuação, que empurra o Brasil para o abismo de mais campos minados, com o dilaceramento da legislação ambiental.
O processo que vem sendo praticado pela agricultura repete o padrão convencional, espalhando impactos indesejáveis como destruição de florestas, erosão dos solos e contaminação dos recursos naturais. Nota-se, apesar da tecnologia e modernização inerentes aos nossos tempos, um aumento dos impactos ambientais, além do aumento da concentração da posse de terras e de riquezas – e sua nefasta consequência de êxodo rural em direção aos grandes centros.
Relatórios do IBGE que abordam Indicadores de Sustentabilidade, entre outros estudos, apontam deficiências e a insustentabilidade dos padrões praticados nos meios de produção do setor do agronegócio, notabilizado por monoculturas, que levam a vários efeitos ambientais e sociais nocivos, na contramão de uma necessária reforma agrária, há tempos requerida.
Há muito a ser devidamente diagnosticado e discutido sobre produtividade na agropecuária brasileira, bem como sobre a distribuição de terras, a sustentabilidade das práticas, o uso de fertilizantes e agrotóxicos e suas conseqüências. A avaliação do setor não pode se focar na produção e aparentes benefícios nas transações da balança comercial das exportações. Há de se pensar se tais benefícios são reais. Qual será o prejuízo para o meio ambiente e para população brasileira, considerando-se que muitos são irreversíveis?
Os falsos argumentos defendidos pela bancada ruralista representam uma grande ameaça e um duro golpe para o meio ambiente. Recusam-se a discutir sua questão conceitual básica: a revisão da Política Agrícola Nacional e da Reforma Agrária. Essa é a questão de fundo, a da representatividade. Depois, seria saudável saltar para a modernização e recuperação de grande parte do solo brasileiro ocioso e degradado, visando o aumento da produtividade. Em nenhum momento simples questões econômicas podem questionar a necessidade da proteção ambiental e a perspectiva de sustentabilidade. Um segmento bem-intencionado da sociedade brasileira jamais buscaria tais caminhos, em busca de lucro e à custa da degradação ambiental e da descaracterização da legislação ambiental brasileira. O momento exige responsabilidade, senso crítico, lucidez e a compreensão de que não devemos aceitar argumentos e justificativas falaciosas, desprovidas de fundamentação científica.
Mudanças nos destinos de uma nação, em relação à gestão das condições essenciais para a manutenção do equilíbrio ecológico, são de interesse de toda a coletividade e não podem ser conduzidas por um grupo de lobistas que nem sequer representam a agricultura brasileira como um todo. Há de se atentar para o jogo montado com argumentos e polarizações, ofendendo a inteligência dos cidadãos. Portanto, vale o alerta para os montros menores: cuidado com as propostas de negociações em torno do Código Florestal. Há de se atentar para as propostas de “consenso”, como uma que foi divulgada, sem fundamentação científica, envolvendo ONGs e os interesses dos setores de papel e celulose, que devastaria topos de morro nas regiões de Minas Gerais e Vale do Rio Paraíba.
O termo “negociação”, na área ambiental, vem sendo utilizado de forma deturpada, representando em análise mais crítica perdas desproporcionais para o meio ambiente e benefícios desproporcionais para interesses de grupos. Os processos ecológicos essenciais devem ser mantidos para presentes e futuras gerações, envolvendo escalas de tempo maiores do que a do ciclo de vida de um ser humano, ou de um governo – e são infinita e inquestionavelmente superiores aos desejos de um grupo econômico. Se não houver responsabilidade, um altíssimo preço deverá ser pago pelos nossos descendentes.
É preciso atentar, entre outras, para as proposta do setor de silvicultura, que vem tentando se livrar das restrições referentes especialmente às Apps (Áreas de Preservação Permanente) de topo de morro. Defende a permissão para plantios e exploração econômica de espécies lenhosas (incluindo silvicultura com exóticas) em bordas de tabuleiros, de encostas entre 25º a 45º, e topos de morro transformando estas áreas em sistemas produtivos, afastando a possibilidade de sua recuperação ambiental por meio do plantio de florestas nativas, que é a medida determinada pela legislação para as Áreas de Preservação Permanente. A proposta abrange grandes áreas com morros em vários Estados Brasileiros. Nem especificaram quais serão as áreas beneficiadas com a medida. Sinalizam com anistia áreas já desmatadas até 22 de julho de 2008, propondo o esquecimento de passivos ambientais. Há outra pérola: a qualificação da pequena propriedade ou pose familiar rural com dimensões de até quatro módulos fiscais, e todas as consequências desta alteração para o meio ambiente. Será uma festa sem controle a enxurrada de desmembramentos, para atingir a quota, que já não é pequena.
É inegável que as condições do meio ambiente, em geral, só pioram, e não há nada que prove o contrário e possa ser sustentado cientificamente. O ar, as águas continentais, os solos, os mares, os ecossistemas terrestres e aquáticos e paisagens tem sido degradados progressivamente, assim como as extinções de espécies (flora e fauna) não param de ocorrer, representando uma crescente ameaça à biodiversidade, e ao equilíbrio ecológico.
Retroceder em relação ao nível de proteção estabelecido pela legislação ambiental brasileira, em nosso contexto atual, deve ser considerado um crime contra a pátria. Os prejuízos atingirão a todos. Mais campos minados serão plantados.
Dizemos não aos argumentos falaciosos já repudiados publicamente pela comunidade verdadeiramente científica do país!
Não à plantação de mais campos minados!
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