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No tempo em que Itatiaia era velho

Para os 70 anos do Parque Nacional do Itatiaia, no próximo dia 14, velhas fotografias como as do hoteleiro Robert Donati deveriam constar entre os convidados de honra.

1 de junho de 2007 · 18 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

>É uma pena Itatiaia não ganhar este mês, de aniversário, um álbum como os do hoteleiro Robert Donati. O parque nacional faz setenta anos no dia 14. Foi o primeiro do Brasil. E, ao chegar, encontrou lá cima, incorporado à história local, o pianista berlinense. A essa altura, Donati já escapara da Alemanha na diáspora da Primeira Guerra Mundial, morara em Amsterdã, Londres,Buenos Aires e Rio de Janeiro, subira a serra em 1928 para uma temporada de férias em pensão modesta e abrira em 1931 o hotel que fincaria para sempre seu nome na Mantiqueira.

Dali para a frente, até morrer sem arredar o pé há quase quarenta anos, ele fez parte da montanha, como um das muitas espécies exóticas que a mata foi aos poucos engolindo, sem extirpar. Sua presença marcou a memória de forasteiros como os botânicos norteamericanos Racine e Mulford Foster, que se espantaram, na década de 1940, ao encontrar naqueles cafundós um europeu trajando “calções alpinos” e “chapéu tropical”. Donati saudou os hóspedes “num inglês sem o menor sotaque”. Durante a estada, os Fosters descobririam que o hoteleiro “era capaz de manter conversa em quatro ou cinco línguas diferentes ao mesmo tempo, com a desenvoltura de um esquiadoor profissional deslizando pelas neves geladas do Monte Branco”.

Música e sabiás

Nada disso era novidade. Em 1932, Donati figurava nas cartas que o hóspede Vinicius de Moraes mandava à família, descrevendo-o como um “alemão cosmopolita”, “apreciador da música”, “dono de uma discoteca que é uma maravilha”. Contava que ouvia “Wagner, Bach, Haendel, Chopin, Korsakoff” na vitrola que Donati ligava uma hora por dia, às custas de um gerador movido a água de córrego. “A música tem aqui neste silêncio uma significação que não pode ter aí na cidade”, escreveu Vinicius. Com ela e os “sabiás discutindo perto”, dava até “vontade de fazer uma poesia que preste”.

Quem não escreveu sobre Donati, fotografou-o ou pintou-o, como Alberto da Veiga Guignard, que nasceu em Nova Friburgo, na Serra Fluminense, morreu nas montanhas de Belo Horizonte mas, enquanto viveu em Itatiaia, como convidado de Donati, bateu suas encostas com fôlego de montanhista, quando o montanhismo ainda engatinhava na Mantiqueira. O pintor deixou por lá uma vasta coleção de quadros, além, das portas, janelas, traves, móveis e cofre que decorava com seu pincel. Trinta e tantos anos atrás, o hotel continuava exibindo, na sala de refeições, as flores e os cenários da região, assinados por Guignard.

Seus óleos serviam como atestados de que, num parque nacional, o tempo pode andar para trás. Itatiaia estava marcada, na época de Guignard, pelas cicatrizes recentes de seu passado agrícola. Era muito devastada. Quase todas as vistas guardavam recordações da fazenda Mont-Serrat, que o governo brasileiro comprara em 1908 do comendador Henrique Irineu Evangelista de Souza. O parque, portanto, nasceu velho. Ficou novo com o passar dos anos, porque a mata remoçou-o.

Velhas fotografias

Donati, por exemplo, construira seu hotel num pasto limpo. Hoje, o prédio praticamente afundou nas árvores. O governo ergueu o museu regional da fauna e da flora, desenhado pelo arquiteto Alberto Murgel no Estado Novo para ser modelo de prédio público em unidades de conservação, num ninho de plantas rasteiras, entre morros encrespados pelo samambaião agreste, onde se contavam nos dedos as copas tentando retomar os terrenos roçados. Agora, o museu ocupa uma clareira na floresta. As trilhas que cortavam a serra em todas as direções eram percorridas a cavalo. Atualmente, boa parte dessas picadas fechou tanto que só experientes conseguem encontrar o seu rastro. A ponte do Maromba é quase irreconhecível, ancorada como estava originalmente entre duas rochas, na sombra rala de dois arbustos. Ela, em si, pouco mudou. O lugar mudou muito. 

Tudo porque o mato conseguiu reaver o que a mão humana lhe tomara, mesmo onde as construções ficaram de pé. Onde as casas ruiram às vezes é difícil achar os despojos dos sítios abandonados. Os botânicos que andaram por ali na virada do século 20 disseram todos que a floresta nativa começava para cima dos mil metros de altitude, onde o machado e o fogo não haviam subido. No século 21, apesar dos pesares, a capoeira maciça, que só os olhos clínicos distinguem à primeira vista da mata primitiva, desce rumo ao Vale do Paraíba até esbarrar no portão da entrada.

Não há maneira mais convincente de explicar para que serve um parque septuagenário do que mostrar a história desse rejuvenescimento.E, para contá-la, nada mais conciso e eloqüente do que uma velha fotografia, tirada por antigos moradores num tempo em que mal se pensava em conservar o meio ambiente. E, nesse ponto, a coleção de Donati é exuberante como a floresta tropical.

São fotos que viram poucas vezes a luz do dia, em quatro ou cinco décadas.Engavetadas, amarelaram, mofaram e ganharam furos de traças. Mas, quando saem de suas caixas, têm um viço que desbota tudo o que se possa dizer de Itatiaia num discurso oficial. Farão falta na festa de aniversário.

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