Reportagens

Parem as máquinas

Justiça anula licenças de usinas do complexo hidrelétrico Juruena (MT). Ação civil pública aponta efeitos diretos em terras indígenas e irregularidades na dispensa de estudos.

Andreia Fanzeres ·
25 de abril de 2008 · 17 anos atrás

Depois de uma primeira tentativa frustrada, Ministério Público Federal (MPF) em Mato Grosso conseguiu nesta semana, no Tribunal Regional Federal, uma determinação para suspender as licenças de instalação de cinco empreendimentos do complexo hidrelétrico Juruena. Perto das cabeceiras do rio que forma o Tapajós e que abriga um dos maiores parques nacionais, dez Pequenas Centrais Hidrelétricas (PCHs) e duas usinas das empresas Maggi Energia e Juruena Participações e Investimentos Ltda têm previsão de gerar 300 MW. Ao todo, a seqüência de empreendimentos (em diferentes etapas de licenciamento) vai ocupar 287 quilômetros do rio Juruena entre municípios de Campos de Julio e Sapezal, um dos impérios da soja fundados pelo pai do governador Blairo Maggi. Embora o Juruena seja um rio federal, cercado por terras indígenas direta e indiretamente impactadas, o licenciamento tem sido conduzido pelo estado. Esta, no entanto, é apenas uma das ilegalidades do complexo Juruena apontadas pelo MPF.

A ação civil pública relata que tudo começou em 2002, quando as empresas Maggi Energia e Linear Participações e Incorporação Ltda solicitaram à extinta Fundação Estadual do Meio Ambiente (Fema) licença prévia às PCHs Sapezal, Divisa Alta, Ilha Comprida, Rondon, Parecis, Segredo, Cidezal e Telgráfica, no rio Juruena. Para embasar o pedido, um diagnóstico ambiental foi entregue. E em três meses, as licenças prévias estavam nas mãos dos empreendedores. Apenas um mês depois, saíram as de instalação. De acordo com o MPF, só então a Funai tomou conhecimento sobre as usinas. “O órgão estadual de meio ambiente ilicitamente suprimiu a possibilidade da Funai de intervir no processo de licenciamento no instante em que se definia a viabilidade ambiental de empreendimentos capazes de causar intenso e extenso impacto ambiental em terras indígenas”, escreveu o procurador Mario Lucio Avelar.

Segundo a ação, enquanto o órgão ambiental solicitava estudos ambientais complementares, os empreendedores pediam a renovação das licenças de instalação. Mas por causa do descumprimento das condicionantes das licenças anteriores, a Fema notificou-os sobre a impossibilidade de atendê-los. Na época, a Funai havia julgado insuficientes os estudos antropológicos feitos para as populações das terras indígenas Enawenê Nawê, Myky, Nambiquara, Tirecatinga, Paresí, Juininha, Utiariti, Erikbaktsa e Japuíra.

Por causa disso, a própria Secretaria Estadual de Meio Ambiente (Sema) considerou, em notificação, fundamental que fosse realizado um estudo de impacto ambiental que analisasse a implantação cumulativa dos empreendimentos e reconheceu “imperfeições” nos processos de licenciamento. Como era de se esperar, em abril de 2006 os empreendedores reclamaram e reforçaram o pedido de renovação das licenças de instalação alegando “pesadas penalidades decorrentes do descumprimento do cronograma contratual pactuado com e Eletrobrás e com a Aneel”, descreve a ação do MPF. Para agilizar ainda mais o processo, sugeriram a substituição do estudo de impacto ambiental por um simples plano de controle ambiental.

Nas mãos do estado

Em maio de 2006 o MPF entrou na jogada e pediu a realização de um estudo integrado de bacia hidrográfica como condição para a continuidade do licenciamento. A Sema topou e em janeiro de 2007 a empresa JGP Consultoria entregou, a pedido dos empreendedores, uma Avaliação Ambiental Integrada (AAI). A Sema julgou os estudos insuficientes e pediu complementações. Mas, segundo o MPF, renovou as licenças de instalação antes da aprovação final da avaliação. Lílian Ferreira dos Santos, atual superintendente de infra-estrutura, mineração, indústrias e serviços da Sema, nega esta informação. Segundo ela, as licenças só foram renovadas após a aprovação da AAI.

O MPF sustenta que a Sema “violou a Constituição Federal e as normas ambientais que disciplinam o licenciamento quando da aprovação dos processos de avaliação ambiental das obras do complexo hidrelétrico do Juruena ao deixar de exigir o estudo de impacto ambiental (e o respectivo relatório) por parte dos empreendedores; ao conceder as licenças ambientais sem a necessária análise do componente antropológico pela área técnica da Funai; ao investir-se de competência que não possui para licenciar obras e atividades capazes de causar impacto ambiental, econômico, social e cultural sobre povos e terras indígenas; e ao descumprir o preceito constitucional que exige autorização do Congresso Nacional para o aproveitamento de recursos hídricos em terras indígenas”.

Lílian garante que para todos os empreendimentos foram feitos os procedimentos normais de licenciamento e seus técnicos avaliaram que não era necessário realizar um só processo para todas as usinas. Por isso, ela afirma que a condução do licenciamento tem sido legítima. “Não haverá impactos diretos às terras indígenas. A PCH mais próxima fica a 40 quilômetros e existe um documento do próprio Ibama dizendo que é competência do licenciamento é mesmo da Sema”, diz.

De fato. Segundo Roberto Messias, diretor de licenciamento ambiental do Ibama, este processo não cabe ao instituto porque entende que as terras indígenas não serão afetadas diretamente e, apesar de o Juruena ser um rio da União, os impactos dos empreendimentos ocorrerão apenas dentro do estado de Mato Grosso. “Se houvesse área de inundação dentro das terras indígenas, o impacto poderia ser considerado direto”, diz o diretor. Ele explica que o Ibama só assumiria este licenciamento se o estado solicitasse ou por decisão judicial. Agora, este passa a ser o caso.

Impactos ambientais

A avaliação ambiental integrada aceita pela Sema conclui que a construção da seqüência de empreendimentos hidrelétricos é a alternativa com menores custos ambientais para geração de energia no alto rio Juruena por causa da reduzida área inundada e a operação das usinas por fio d’água. Os técnicos contratados pelos empreendedores, que visitaram a região para os levantamentos biológicos na época de vazante, consideraram que as usinas não vão provocar impactos de grande intensidade para os ecossistemas aquáticos. Mas a qualidade de tipo de conclusão também tem sido questionada.

“A amostragem somente em um período desse ciclo anual não mostra os detalhes mínimos do número de espécies. Trata-se de uma área com forte taxa de endemismo, já reconhecida na literatura atual, porém sub-amostrada”, contesta o pesquisador Francisco Machado, vinculado ao Museu de Zoologia da USP e que estuda os peixes da bacia do Juruena desde 1997. “Em nenhum rio de nenhum estado, nem mesmo no Pantanal existem inventários ictiofaunísticos bem feitos para termos certeza de que realmente não haverá impactos. Grandes inventários não se fazem em 15 dias”, diz Machado, que lembra já terem sido registradas cerca de 150 espécies de peixes nesses rios, embora se estime uma diversidade de mais de 200 tipos diferentes.

Um dos pontos mais polêmicos é a argumentação de que a existência de uma cachoeira de 25 metros – que por sinal servirá à usina hidrelétrica Cachoeirão – já é uma barreira natural do rio, que impede a migração de muitos peixes. Assim, pelo fato de a maioria das usinas estar localizada à montante deste ponto do rio, os empreendedores e a Sema dizem que a ictiofauna não será alterada. E, consequentemente, eles garantem não haverá impactos aos índios Enawenê Nawê, que dependem dos peixes para rituais sagrados e para alimentação, já que quase não utilizam outra fonte de proteína.

Essa explicação, no entanto, beira o absurdo na opinião do ictiólogo Francisco Machado. “O cachoeirão é realmente uma barreira natural, mas rio abaixo ainda há mais duas usinas. Os peixes não vão ter que passar por cima delas também?”, indaga-se. “Temos que olhar holisticamente para a questão”, diz o pesquisador. Ele convida a quem quiser entender o contexto da construção dessas usinas a um passeio pelos mapas do Google Earth, para ter uma idéia de como a região das cabeceiras do Juruena só está protegida pelas terras indígenas. “Dizer que as usinas terão escada para migração de peixes não pode ser argumento para justificar sua construção. Não se pode analisar PCHs e usinas em seqüência como se fossem problemas distintos”, conclui.

De acordo com o pesquisador, essa série de empreendimentos fará com que, em 110 quilômetros de rio, o lago de uma usina praticamente encoste na outra. Conforme explica, este fato torna os mecanismos de transposição de peixes fadados ao insucesso, pois não haverá distância suficiente entre um reservatório e outro para que seja mantido o leito do rio com ambientes encachoeirados. “Todos os rios da bacia do Juruena são extremamente caudalosos. Esses ambientes serão transformados em lagos e muitas espécies migradoras podem deixar de existir”, afirma. “As usinas vão impactar de forma drástica, com redução de cacharas, curimbatás e matrinchãs, por exemplo”. O pesquisador alega ainda que a inundação da vegetação das margens, fundamental para muitas espécies, poderá provocar extinção de peixes e outros organismos.

Muitas interpretações

O MPF sustenta ainda que os projetos hidrelétricos acima de 10MW (apenas um foge à regra) foram dispensados irregularmente de estudo de impacto ambiental pela Sema. Essa determinação, segundo o procurador Mario Lucio Avelar, contraria a resolução 01/86 do Conselho Nacional de Meio Ambiente (Conama). Apenas três empreendimentos do complexo estão sendo licenciados com estudo de impacto ambiental – PCH Jesuíta, AHE Juruena e AHE Cachoeirão – pois têm aproveitamento energético superior a 30MW, critério estabelecido pela legislação mato-grossenense. “A resolução do Conama diz que o órgão ambiental poderá solicitar o estudo de impacto ambiental se houver significativa degradação ambiental ou ficar a seu critério, de acordo com suas análises técnicas. Temos um parecer do STJ”, defende Lílian, responsável pelo setor de licenciamento da Sema.

A redação desta resolução, no entanto, é ligeiramente diferente desta alegação. O segundo artigo da resolução lista 16 categorias de atividades modificadoras do meio ambiente e merecedoras de estudo de impacto ambiental. A de número 11 é clara: “Usinas de geração de eletricidade, qualquer que seja a fonte de energia primária, acima de 10MW”, diz o texto da resolução.

O Grupo André Maggi, que já opera as PCHs Santa Lucia I e II também no rio Juruena, afirma que atendeu a todas as solicitações da Sema, cumprindo com os requisitos legais vigentes. Apresentou estudo de impacto ambiental da PCH Jesuíta, cuja área de inundação de 400 hectares é superior ao que determina o código ambiental de Mato Grosso, e da usina hidrelétrica Juruena (46MW), ambos aceitos pela secretaria de meio ambiente e referendados pelo Conselho Nacional de Meio Ambiente de Mato Grosso (Consema).

“As usinas do alto Juruena foram as mais estudadas até hoje em Mato Grosso, ou talvez no Brasil”, declarou, através de sua assessoria de imprensa, o Grupo AMaggi. De acordo com o empreendedor, todos os estudos antropológicos e ambientais demonstram baixo impacto ambiental dos empreendimentos. Mas quem teve paciência para ler as centenas de páginas de todos os estudos ambientais disponíveis sobre o complexo Juruena, encontrou, no texto do Diagnóstico Antropológico, concluído em 2003 pela empresa Documento, trechos que não inspiram tanta certeza.

O documento prevê “uma possível remodelação das fases do rio, afetando os recursos hídricos (notadamente no que se refere à diminuição do estoque pesqueiro do rio Juruena e seus afluentes), fundamentais para a preservação dos recursos naturais presentes nas terras indígenas, e consequentemente, para a própria sobrevivência física desses povos; uma maior degradação do ecossistema das TIs a partir da exploração econômica dos entornos das mesmas, como resultado de um aumento de interesse de investidores nas terras e nas cidades próximas (…); ampliação da área utilizada pela agricultura mecanizada, pela indústria madeireira e pela pecuária, causando mudanças no ecossistema regional, aumentando a área desmatada no entorno de suas terras e reduzindo suas fontes de subsistência, principalmente peixes e animais silvestres, tornando ainda mais vulnerável sua já frágil situação alimentar; aumento de poluição dos rios Juruena e afluentes, agravando o quadro de saúde da população e a ampliação do tráfego durante o período de implementação do projeto, com conseqüente possibilidade de aumento de invasões nas Tis”.

Este mesmo documento afirma que os impactos poderão ocorrer “diretamente, como no caso dos Enawenê-nawê, dos Paresí das terras indígenas Paresí e Juininha, e dos Nambikwara da TI Nambikwara, cujas modificações no rio Juruena, limite de suas terras e amplamente utilizado em suas atividades de pesca poderão gerar modificação nos seus modos de vida, numa relação direta de causa e efeito em relação à obra”. Este trecho destoa e muito do que declaram os empreendedores. “Os Enawe-nes, por exemplo, encontram-se a 30 km da PCH mais perto (PCH Telegráfica) e no entender dos estudos é a que recebe algum impacto indireto, mas que não vai alterar em nada a vida cotidiana dos índios Enawe-nes (sic)”, diz o Grupo Amaggi.

Outras questões

A participação dos povos indígenas nas tomadas de decisão é um capítulo à parte. O procurador afirma que em nenhum instante os índios foram chamados a participar das discussões sobre os empreendimentos. Em vez disso, foram procurados para algumas conversas sobre compensações, sugerindo que a construção ou não desses empreendimentos já estava fora de questão. Mesmo assim, para alguns grupos nem essas negociações têm sido conduzidas satisfatoriamente, visto que os índios Enawenê já organizaram protestos em estradas e canteiros de obras exigindo voz no processo e ameaçam novas manifestações por esse mesmo motivo. De acordo com o Grupo AMaggi, a Funai sugeriu uma compensação de 4,3 milhões de reais para as comunidades indígenas estudadas, acatada pelos empreendedores que negam veementemente que tenham oferecido dinheiro aos índios. Em nota, eles afirmam que “entendem que não há razão para compensar financeiramente os índios em função do baixo impacto dos empreendimentos”.

A ação movida pelo MPF também condena o financiamento de usinas do complexo pelo BNDES, que já concedeu 360 milhões de reais a cinco PCHs. O procurador alega que a instituição está bancando irregularmente atividades lesivas ao meio ambiente sem as avaliações ambientais previstas em lei. O repasse do montante foi aprovado como parte do Proinfa, programa de apoio às fontes alternativas de energia elétrica e servirá também à construção das linhas de transmissão.

A decisão da desembargadora Selene Maria de Almeida é do último dia 17 de abril, mas só veio a público agora. Ela determinou a suspensão das licenças de instalação das PCHs Telegráfica, Rondon, Parecis, Sapezal e Cidezal e que os empreendedores se abstenham de promover a construção das usinas até a realização do estudo de impacto ambiental e sua análise pelo Ibama. A decisão ainda cabe recurso. “Salta aos olhos o tamanho das ilegalidades desse licenciamento. Mas são obras do interesse do governo”, atesta o procurador Mario Lucio Avelar.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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Comentários 1

  1. Marcos diz:

    O ritual dos índios apresentado pela Rede Globo foi realizado com peixe comprado em tanque de peixe pela Funai e não pagaram até hoje, os índios cobram pedagio indevidos e mataram dois juinense e nenhum índio foi preso 8 camionetas novas Hillux roubadas com os índios e ninguém preso. Em torno de 65% do território de Juina é terra de índio e querem mais terra.Tem que investigar a ong (OPAM) que rouba índios.