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Duzentos anos de atraso

Com os 200 anos da chegada de D. João, comemora-se também o bicentenário de um governo que viu da primeira fila o desmatamento do País como se ele acontecesse em outro mundo.

12 de fevereiro de 2008 · 17 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Dos bicentenários que se penduram em cachos na folhinha de 2008, o único que poderia ensinar alguma coisa à atual administração pública brasileira tem tudo para passar em brancas nuvens. Fará 200 anos, daqui a pouco, a chegada ao Rio de Janeiro de um governo que fingiu acabar com a imprudência ambiental nas encostas da cidade.

Isso não quer dizer que, sem a presença física de D. João na colônia, faltassem às autoridades legislação para barrar a grande queima geral da floresta, que abriu naquela época a estrondosa liqüidação da Mata Atlântica. Mas as ordenações do reino, como outras mercadorias expedidas da metrópole, atravessam mal o Atlântico. E, em 1808, com os morros cariocas bem à vista do príncipe regente, o funcionamento das leis teria os melhores motivos para ser diferente.

Devastação e preservação

A transferência da corte pegou em cheio o processo de desmatamento deflagrado no Rio de Janeiro pelo café, a partir de 1780, produto de uma aliança que juntou na época “fazendeiros brasileiros, nobres portugueses, franceses exilados pela revolução, pelas guerras napoleônicas, militares ingleses e diplomatas estrangeiros”, conta José Augusto Drummond em “Devastação e Preservação Ambiental no Rio de Janeiro”.

Esse, diga-se de passagem, é mais um livro fundamental que não pegou, aparentemente por falta de opinião pública interessada em discutir o que Drummond escreveu. Tratava-se, originalmente, de uma tese de mestrado em ciências sociais no Evergreen State College, de Olympia, extremo norte dos Estados Unidos, onde o autor se desintoxicou de nossa monocultura acadêmica, expondo-se durante dois anos “às férteis influências de botânicos, zoólogos, ecólogos, geógrafos, geólogos, engenheiros florestais, agrônomos e outros professores ou colegas formados em ciências naturais.” A edição em português saiu às vésperas da Rio-92. Há muito tempo sumiu das livrarias. Cada vez mais, anda fazendo falta.

Os pioneiros dos cafezais cariocas eram, segundo Drummond, “empreendedores e otimistas”, no sentido mais brasileiro dessas duas virtudes cívicas. Tinham pela frente um território ainda coberto por florestas em 90% de seus morros, vales e baixadas, ainda “pouco alteradas por 250 anos de colonização européia e alguns milhares de anos de ocupação indígena.”

Crise de sede

Diante dessa visão do paraíso, eles acreditavam que “a paisagem fluminense era abençoada por uma abundância infinita” e que “as terras florestadas não se esgotariam jamais.” Fizeram fortunas garimpando essa ilusão, até esgotá-la. Em menos de 70 anos, falidos como cafeicultores, acabariam com 25 mil quilômetros quadrados de mata atlântica. E, na capital do reino, de cujas encostas saíram por muitas décadas o melhor café do país, estariam produzindo falta d’água, diante de uma baía de Guanabara que chamara a atenção dos primeiros europeus em 1502 pela fartura e a qualidade de suas fontes.

Para isso, não precisaram inventar nenhum processo civilizatório que o próprio Rio de Janeiro não conhecesse. “A maneira brasileira de ocupar territórios”, lembra Drummond, “tem sido tão imediatista e tão predatória quanto a de muitos povos antigos e contemporâneos, com os quais aparentemente só aprendemos a lição do otimismo míope”.

Inovação, no caso, foi a maneira de fingir que se tomavam providências oficiais, quando “suas águas, agora poucas e turvas, não mais saciavam a sede da máquina urbana carioca”, escreve Drummond. O Rio enfrentou duras secas em 1824, 1829, 1833 e 1844. Mas só a partir de 1872 cortaria o problema pela raiz, reflorestando parcialmente a serra da Tijuca, quando a cidade já estava estrangulada pela explosão demográfica. O Rio tinha então 275 mil habitantes. Três vezes mais do que às vésperas da Independência.

Enquanto morou em São Cristóvão, D. João limitou-se à mímica das medidas drásticas contra a sede dos cariocas. Proibiu o corte de árvores em mananciais e beiras de riachos. Mandou avaliar terras particulares para transformá-las em unidades de conservação. Criou, pelo menos no papel, reservas florestais. Tudo, sem tirar nem pôr, como o governo faz agora na Amazônia, achando que as coisas acontecem pela primeira vez na história do Brasil. Ledo engano. “Se o Estado brasileiro vem fracassando como gestor de políticas sociais prioritárias em educação, saúde, transporte e segurança, não é de surpreender que seu desempenho como protetor de terras públicas com valor ecológico seja ainda pior”, conclui Drummond, resumindo 200 anos de tradição.

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