No mesmo dia em que o deputado Roberto Jefferson, presidente do PTB, expunha, na Comissão de Ética da Câmara dos Deputados, a anatomia e a fisiologia de processos espúrios de coalizão política, o presidente do Ibama, Marcus Barros, reconhecia como reais a anatomia e a fisiologia de um vasto esquema de corrupção que esquenta madeira ilegal na Amazônia. Falava a uma CPI esquecida, que não pegou. O presidente do PTB surfava as ondas gigantes de mais um escândalo político, que pegou.
As confissões e denúncias do deputado Jefferson explodiram nas primeiras páginas e ocuparam todo o espaço nobre dos jornais do dia seguinte. O depoimento de Barros, não apareceu. Só não passou despercebido aos olhos da nossa Carol Mourão. No vazio da CPI da Biopirataria, o reconhecimento oficial da rede de corrupção que ajuda a devastar nosso patrimônio natural, não chamou a atenção da grande imprensa e vai demorar a chegar à opinião pública. CPI só pega, se for objeto de atenção continuada da grande imprensa, sobretudo da TV. É por isso que a CPI dos Correios, ou do Mensalão, já pegou antes de começar. Começou na mídia, por causa dos erros repetidos do governo e das negaceadas, menos convincentes que as acusações, com ou sem gravações.
A diferença fundamental entre os dois depoimentos é que o primeiro, o depoimento-bomba, é uma confissão a um auditório repleto e diante das câmeras das TV’s e dos repórteres dos jornais e revistas, de quem é parte da anatomia e da fisiologia do mau exercício do poder político no país. Já o outro, é a afirmação dos fatos, a um auditório vazio e uma CPI esvaziada, por um funcionário que pertence à equipe que está conduzindo uma operação de limpeza na burocracia do meio ambiente. A temática dos dois é parte da mesma síndrome, as redes que revelam se entrecruzam em algum ponto do Planalto Central do Brasil, ou algum campo de pouso clandestino da Amazônia ou algum endereço paulistano, ou em todos eles, em algum momento.
Em nenhuma das duas ocasiões, houve revelações surpreendentes. Em nenhuma se falou de algo que já não se suspeitasse, se tivesse ouvido ou sabido. O que choca e surpreende, num caso, é o descaramento com que as transações espúrias que costuram as alianças políticas no Brasil são tratadas. Quem assistiu à performance de Roberto Jefferson talvez se tenha espantado em não ver, entre os numerosos presentes, um só que tivesse com nojo, indignação ou surpresa marcando o rosto. Todos os semblantes eram de familiaridade com o que se dizia, ainda que com um certo espanto com a forma histriônica e cínica, com que era dito. Ou perplexidade com o fato de alguém ter a desfaçatez de confessar esse tipo de coisas em uma catarse tão pública.
Vou propor uma perguntinha simples: um ou outro depoimento foi surpresa? Roberto Jefferson e Marcus Barros estão contando algo que não se saiba? Que se compra voto no Congresso ou ATPFs no Ibama? A resposta é não. Segunda perguntinha simples: se alguém disser que qualquer uma dessas duas acusações é falsa, muita gente acredita? A resposta é não, novamente. O Datafolha acaba de divulgar uma pesquisa de opinião, coletada no último dia 16, em que 70% acreditam em corrupção no governo Lula. Eram 32%, em dezembro do ano passado. Logo após a TV ter mostrado um funcionário dos correios meio gaiato embolsando suborno, passaram a 64%. Agora são 70%. Quem dera essa fosse a trajetória da perda da ingenuidade por parte da sociedade brasileira e que esta constatação se transformasse em avassaladora indignação.
Raro é ver um funcionário público trocar a nota de desmentido e a tradicional operação abafa pela confirmação dos atos de corrupção em investigação e estar tomando providências efetivas para esclarecer e não abafar, como faz o presidente do Ibama. O bafejo da operação abafa anda arrepiando os corredores do Congresso, para limitar e tornar desinteressante para a mídia a CMPI dos Correios e fazer todo mundo esquecer o mensalão. Ao confirmar a existência de uma rede de corrupção na malha institucional que regula o meio ambiente no Brasil, ganhou a confiança e a credibilidade, para poder dizer que não acredita que alguns dos acusados seja, de fato, culpado. Mas todos estão afastados de seus cargos para que as investigações possam ser feitas. Marcus Barros diz que reintegrará os que considera bons funcionários nos cargos, com prazer, se e quando comprovada sua inocência. É assim que se faz.
Que não seja um mensalão, mas apenas ajuda de custo para campanha. Que não seja todo o desmatamento, mas parte dele apenas, cuja madeira seja lavada no Ibama e chegue supostamente limpa à chique indústria moveleira do sul maravilha e esteja nas vitrines das melhores lojas de decoração de São Paulo e do Rio de Janeiro. Continua sendo um escândalo e mais um exemplo de como o Brasil há muito vem tolerando o intolerável.
Os episódios se sucedem, mas a lógica é a mesma, mesma dinâmica, mesma etiologia. Repetindo Oliveira Vianna, “as fraudes, a propina, são epifenômenos cujas causas reais, íntimas, fundamentais”, digo eu, estão enraizadas na crise fiscal do estado, na desagregação moral da sociedade brasileira, que perdeu suas referências e enterrou seus valores no terreno materialista da sobrevivência e do progresso, em um ambiente econômico extremamente instável e hostil aos comportamentos regrados e formalizados. A estrutura de incentivos – estímulos e desestímulos – que existe no Brasil favorece a informalidade, não desfavorece a ilegalidade e torna a opção mais penosa e cara, a legalidade formal. A sociedade brasileira condena em geral, se desencanta a cada episódio, mas não é capaz de gerar a pressão necessária para mudar essa estrutura de incentivos e acaba, em muitas instâncias de sua vida cotidiana, sucumbindo a ela: paga propina, aqui e ali; compra produtos informais, não exige nota; aceita trabalho informal, contrata informalmente; transgride regras; desrespeita leis. Pensem qualquer atividade, o incentivo estará do lado da informalidade, se não da ilegalidade. Dou alguns exemplos.
Software: o formal é caro demais para a estrutura já onerosa de custos da maioria das pequenas e médias empresas e dos domicílios de classe baixa e média do Brasil. O formal gratuito, o Linux, além de pouco conhecido, é vítima de preconceito e pouco acessível. Defendi a utilização do software livre, juntamente com o Windows, nas escolas brasileiras, em um debate que se abriu a respeito do uso do Fundo de Universalização dos Serviços de Telecomunicações (Fust), ainda no governo FHC. A maioria das objeções falava das demandas do mercado de trabalho. As empresas usam a plataforma Windows, diziam, logo as escolas públicas não estariam preparando adequadamente para o mercado de trabalho, se usassem o software livre. Ninguém registrava a proposta de usar os dois sistemas e ensinar os dois. Interesses econômicos, poderosos é que forçam a opção pela Microsoft, alguém dirá. Claro que é parte da causalidade. Como na área ambiental também poderosos interesses econômicos se escoram em fraudes e propinas e tentam impedir avanços regulatórios. Mas o interesse econômico não explica tudo. Há preconceitos, barreiras culturais, inércias, que vão reproduzindo determinados padrões, apesar de seus custos. Não estou fazendo campanha pela troca generalizada dos sistemas comerciais pelo livre. Mas, na educação pública, por exemplo, o Linux abre muito mais oportunidades para aqueles que desejam desenvolver software poderem trabalhar na ponta mais criativa e competitiva da indústria, obtendo até projeção global. O caminho que o Windows abre é mais limitado e dependente. A insistência generalizada no Windows é que termina levando ao uso de cópias não registradas, para fugir dos seus custos.
Preservação: é mais fácil, rápido e barato tirar uma licença para desmatar, do que criar uma RPPN. Pensem na situação atual do Pantanal. Hoje, lá, é obrigatório preservar 20% da área das fazendas. Em Minas Gerais, também. Mas em várias regiões de Minas, para ter 20% de mata, muitas vezes é preciso replantar. As áreas de Mata Atlântica estão, na sua maioria, acabadas. Logo, a regra dos 20%, em muitas regiões de Mata Atlântica, significa recuperar matas ou preservar o pouco que resta delas. No Pantanal, é uma autorização para destruir 80% da propriedade. Projete-se essa tolice uniformizadora no tempo e o que teremos é a destruição de 80% do Pantanal que não estão protegidos por reservas. E nas regiões de Mata Atlântica, garantiram-se os 20% de reserva técnica? Não necessariamente. O desmatamento legal de 80% no Pantanal torna fácil manter os 20% de reserva. Embora ainda haja quem desobedeça até esse mínimo percentual. São áreas enormes, fazendas com mais de 20 mil hectares. Em muitas regiões de mata Atlântica, as propriedades são pequenas, não chegam a 200 hectares, em média. Manter ou chegar aos 20% de reserva técnica, é mais difícil e não tem incentivo algum. O incentivo é à reserva de papel, à desobediência e à corrupção. Em suma, no Pantanal o incentivo não é à preservação, é ao desmatamento, que é legal, nem requer autorização, enquanto não estiverem destruídos os 80% dos campos, savanas e cordilheiras das propriedades. E, enquanto se destrói os 80%, prova-se a preservação de 20%. Na Mata Atlântica o incentivo é à transgressão de algum tipo, para fingir que se preserva 20%, sem fazê-lo.
Onde é necessário obter licença para cortar madeira, o procedimento é quase sumário. E ainda há fraudes, corrupção. Para se criar uma reserva privada, é um calvário. As diligências na criação de reservas são muito mais corretas, cuidadosas e exigentes, do que para extrair uma licença de desmatamento.
Pensem qualquer outra transação: mercado de trabalho, venda sem nota ou com nota, alvarás e encontrarão a mesma estrutura de incentivos, o caminho informal é sempre mais fácil e de menor custo, do que o formal. O grave é que recentemente, com a impunidade e o entrelaçamento entre as redes de atividades formais, informais e ilegais, o caminho ilegal – sem o custo da punição – vem se tornando cada vez mais atraente aos transgressores em geral. O fato é que a distância moral entre a atividade informal e a atividade ilegal está encurtando. Os sinais são claros: a facilidade com que um grileiro confessa que grila, um empregador confessa que emprega crianças, um deputado confessa ter recebido dinheiro ilegal, um funcionário público embolsa um maço de notas com R$ 3000,00.
Não adianta só punir os ilegais – e nem isso acontece de forma suficiente hoje no Brasil – nem criticar ou culpar governo e as empresas pelo informal. O Brasil terá que fazer uma campanha social pela legalização do Brasil, que pedirá muitas reformas legais e institucionais e algum sacrifício de todos. Como nas campanhas de vacinação, teremos que querer e fazer erradicar a informalidade e a ilegalidade endêmicas no Brasil.
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