Os programas de combate à pobreza e as metas de desenvolvimento do milênio precisam ser reconsiderados, sob o risco de não darem resultado. Esta é a conclusão do recém-lançado relatório do World Resources Institute, intitulado “A Riqueza dos Pobres: Administrando Ecossistemas para Combater a Pobreza”. O WRI é uma ONG que conta com um staff de mais de 100 cientistas, especialistas em políticas públicas, analistas de negócios e jornalistas, dedicada a estudos para definir as melhores formas de melhorar a vida das pessoas, protegendo a Terra. Ele tem no seu conselho acadêmicos de peso, como David Gergen (Harvard), C. K. Prahalad (Michigan), José Sarukhan (UNAM) e James Gustave Speth (Yale); ex-presidentes, como Fernando Henrique Cardoso (Brasil) e José-María Figueres (Costa Rica) e ex-vice-presidentes como Al Gore (EUA).
O relatório parte de duas constatações relevantes que vêm sendo desconsideradas historicamente nas discussões sobre desenvolvimento, desigualdade e pobreza. A primeira, é que a maior parte da pobreza continua sendo rural – embora a pobreza urbana tenha crescido muito – e as populações rurais dependem mais da natureza para sua subsistência. A destruição da natureza aumenta a pobreza e diminui as chances de sucesso de programas de desenvolvimento. A segunda, é que maus governos e corrupção generalizada causam mais danos aos pobres, do que aos ricos. O Brasil demorou décadas para entender que a inflação alta continuada, e indexada para ter seus efeitos mitigados e redistribuídos, perpetuava e tendia a aumentar a pobreza, além de aumentar a desigualdade. O fim da inflação reduziu a pobreza no Brasil em mais de 10 pontos percentuais, ou 25%, e estancou o crescimento da desigualdade de rendas.
O relatório é realista. Seus autores sabem que proteger o meio ambiente, estabelecer boas práticas de governança democrática e combater a corrupção não erradicam a pobreza. Mas defendem persuasivamente a tese, escorada em grande quantidade de estatísticas e vários bem documentados estudos de caso, de que são um requisito necessário para se alcançar os objetivos de eliminar a pobreza do planeta neste milênio. Sabem, também, que, se enfrentado a contento o desafio da pobreza, novas metas confrontarão a humanidade, como a própria sustentação dos níveis de vida então alcançados e sua elevação, sobretudo na base, para reduzir as grandes disparidades dentro das nações e entre as nações.
As teses sustentadas no relatório coincidem com alguns pontos que temos defendido em O Eco. A relação entre destruição ambiental e pobreza tem sido uma constante em nossa cobertura, em matérias e colunas, sobre a destruição da Floresta Amazônica e da Mata Atlântica, por exemplo. Temos insistido que é ilusório o progresso prometido pela destruição ambiental. Após um período de afluência efêmera, baseada nos primeiros ganhos, vem a degradação do solo e a pobreza. Mais pobreza, argumentam os autores do relatório, porque se perdeu capacidade produtiva extrativa e ou agrícola. Sem manejo adequado das matas, águas e solo, a produção agrícola deixará de ser sustentável mais cedo ou mais tarde. O prazo depende, basicamente, da resiliência do ecossistema em que ela está. Mas o resultado é inexorável: custos crescentes de produção e produtividade declinante da terra. É possível recontar essa história, por meio das marcas deixadas pela migração da agropecuária rumo às novas fronteiras. Também temos argumentado – e este é outro tema do relatório – que o extrativismo comunitário, por si só, não garante sustentabilidade. É preciso que esteja lastreado em educação apropriada – que fixe, como valor, a importância da preservação no longo prazo do ecossistema, limitando, portanto a capacidade extrativista – e em princípios de boa governança, que estabeleçam, de forma equilibrada, direitos e deveres. No Brasil, a idéia de participação comunitária e de cidadania tem um lado só: dos direitos. Não reconhece obrigações. E a democracia só funciona e é real, quando vivida como um contrato dos indivíduos entre si e com a sociedade, no qual os direitos dos cidadãos, assegurados pela coletividade – geralmente por intermédio do estado – têm por contrapartida obrigações dos indivíduos para com a coletividade. Essa noção vale não apenas para aquelas atividades extrativistas baseadas na posse da terra, como para aquelas que se fazem na propriedade comum, pública. A obrigação de proteger os comuns é a garantia do direito de explorá-los para deles extrair renda ou subsistência. Regras que deveriam valer para todos, inclusive para as comunidades indígenas detentoras de grandes extensões de terras demarcadas para seu usufruto.
Preceitos de boa governança democrática são a pré-condição de boa governança ambiental que, por sua vez é indispensável a bons programas de combate à pobreza, usando soluções locais, baseadas nos recursos naturais e em gestão descentralizada, balizada por adequada regulação fundiária, ambiental, econômica e social. Esse é o caminho preconizado pelo relatório, com todo o realismo e a parcimônia. Não promete milagres, mas mostra que é possível incorporar a renda ambiental, ao processo de redução da pobreza. Desenha mecanismos similares ao imposto negativo, para remunerar os pobres pela preservação do meio ambiente. É menos explícito na necessidade correspondente de taxar de forma crescente os ricos pelo uso predatório dos recursos naturais e de energia e materiais poluentes. Mostra que bom manejo do meio ambiente aumenta a produtividade da terra, reduzindo, portanto, as exigências sobre o ambiente, e eleva a renda da terra. Em contrapartida à renda ambiental maior, há limite para a quantidade de pessoas que cada unidade agrícola ou extrativa pode sustentar, sem que o ambiente seja degradado irremediavelmente e sua degradação redunde em retorno de todos à pobreza.
O argumento mais geral sobre governança – que inclui a drástica redução da corrupção – que é central ao relatório, é o que me fala mais de perto. Tenho insistido aqui, que não temos um problema ambiental. Temos um problema geral de falência da autoridade pública e do estado. Não são os órgãos estatais de meio ambiente que não funcionam. É o estado brasileiro que entrou em colapso. A corrupção não comporta adjetivos ou segmentação. Não temos corrupção ambiental ou eleitoral. Temos corrupção. A corrupção tem efeitos diretos sobre a pobreza, retirando acesso dos mais pobres à propriedade da terra ou a serviços, a favor daqueles que corrompem os reguladores, a justiça ou os provedores públicos. E indiretos, permitindo a devastação da natureza, da qual poderiam tirar seu sustento. A exposição desses processos tem certo viés colonialista no relatório, que sempre me irrita, dando a impressão de que os “desenvolvidos” não têm corrupção. Mas fica difícil criticá-lo, lendo os jornais brasileiros dos últimos 100 dias. Ou do final da semana. O que se pode dizer em sua defesa um país onde o Chefe do Gabinete Civil, após ter renunciado em meio ao maior escândalo de corrupção política de nossa história contemporânea, escreve ao diretório de seu partido para dizer que só é culpado de corrupção eleitoral, que chama eufemisticamente de pagamento de dívidas de campanha com recursos não contabilizados? Onde o Presidente da República justifica essa corrupção eleitoral, dizendo que todos a praticam sistematicamente? Onde o presidente da Câmara dos Deputados defende a impunidade de parlamentares que receberam comprovadamente dinheiro ilegal? Onde o Procurador da República e o presidente do Supremo Tribunal Federal recusam a prisão preventiva de um operador confesso de fluxos ilegais de dinheiro, flagrado destruindo documentos que revelariam evidências mais abrangentes de seus crimes?
É certo que, num país desses, a madeira ilegal será legalizada, em um esquema de “lavagem” igual ao que é utilizado na corrupção política que nossas autoridades consideram não mais que uma leve transgressão. O trabalho escravo e o trabalho infantil, continuarão engordando os lucros legais de empresas regulares, com direito a representação patronal e defesa parlamentar. As indústrias continuarão poluindo e destruindo. Os parques nacionais, seguirão perdendo espaço para os grileiros, os palmitos deles roubados continuarão nas prateleiras dos supermercados e mercearias do país. É claro que não existe caixa dois eleitoral. Existe caixa dois nas empresas e dele sai também o dinheiro de campanha. Difícil é financiar campanha legalmente; produzir madeira certificada a sério; fazer a advocacia política legítima de interesses legítimos, com transparência e honestidade.
Nessa grande lavanderia que se tornou o Brasil, só podemos ter certeza de uma coisa: o resultado será a perpetuação da pobreza e da desigualdade, um crescente sentimento de descrédito e vergonha nacionais que não ajudam ao desenvolvimento. Ao contrário podem ser a alavanca do regresso. O verdadeiro desenvolvimento passa pela restauração da capacidade de ação do estado, pela moralização do país e de sua política – vejam bem não só de sua política, a política é epifenômeno, a ilegalidade começa antes da política – pela reconciliação do país com suas referências históricas, com seus fundamentos e raízes. É mentira que estejamos vivendo o melhor momento dos últimos 500 anos de nossa história, como diz a toda hora, o presidente Lula. É um dos piores. Que seja o ponto de inflexão para que iniciemos uma revisão indignada e inspirada de nossas práticas coletivas, para encontrarmos o caminho do desenvolvimento, com respeito por nós mesmos e nosso patrimônio natural. Esse caminho de superação de nossa pobreza moral leva também à eliminação da pobreza material. O relatório do WRI mostra que o mundo, em várias partes, enfrenta o mesmo desafio que nós. Todas as nações têm obrigações a cumprir, para que salvemos o planeta e, como argumentam seus autores, ao mesmo tempo, erradiquemos a miséria humana de seu mapa.
*Editado no dia 25/10/2020, para melhoria da diagramação e recorte de fotografias. O texto não foi alterado.
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