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Não basta…

Bush e Lula se parecem muito e se equivalem na incompetência. Mas examinando como as democracias funcionam nos dois países, vê-se que a nossa está em pior estado.

23 de setembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Em 1982, participei de um seminário sobre “Estado e Democracia no Capitalismo Contemporâneo”, na universidade de Notre Dame, que fica na pequena cidade de South Bend, estado de Indiana, perto de Chicago. Notre Dame é uma “puc”, uma universidade católica, de jesuítas. Rica e conservadora. Pelo menos era, naquela época. As meninas iam à aula em vestidos abaixo do joelho e meias de seda. Os meninos, de camisa de manga comprida, muitos de blazer. No Brasil ainda vivíamos a ditadura militar e tínhamos que aturar os maus bofes do general Figueiredo. Nos EUA, como sempre, ouvia-se alguém louvando a “liberdade na América”. Como se a liberdade fosse monopólio deles e a América começasse e terminasse no seu território.

George Bush é a caricatura disso. Fala de liberdade como se fosse algo que a “América” tenha recuperado com ele. Talvez tenha razão, ele se dá a liberdade de promover retrocessos como nunca se viu na sua américa e impo-los ao mundo, como não seria possível mesmo na Guerra Fria, pelo menos na parte do mundo que não era alcançada pela hegemonia estadunidense. Bush é uma espécie de Blairo Maggi: subordinou a política ambiental dos EUA aos interesses da indústria a que pertence. Um ambientalista de New York, me disse, outro dia, na Califórnia, que “all they think is about drilling, drilling, drilling…” (“eles só pensam em perfurar, perfurar, perfurar poços de petróleo…”) “eles” são Bush e sua turma.

Naquele longínquo seminário no outono de South Bend, eu comecei a apresentação de meu trabalho – “Nem cidadãos, nem seres livres: o dilema da democracia no capitalismo contemporâneo” – expressando um sentimento pessoal. “Quando estou no Brasil e penso nos Estados Unidos, penso na democracia que não temos e me sinto carente e subdesenvolvido. Quando chego aos Estados Unidos, me dou conta de que a democracia, como ela existe aqui, não é suficiente”, disse. Lembrei-me dessa passagem, durante esta semana que passou, quando estava na Califórnia, em um seminário sobre qualidade do ar, qualidade de combustíveis e possibilidade de redução do teor de enxofre no diesel do México e do Brasil. A América de Bush é autoritária e paranóica. Os cidadãos dos EUA que participavam do seminário, mostravam-se profundamente desgostosos com o governo e o presidente, por todas as razões. Nem todos os presentes eram progressistas. Alguns eram republicanos. Mas todos tinham valores muito diferentes dos de Bush, a respeito do resto do mundo, do que é liberdade e de meio ambiente, claro. Nas horas vagas do seminário, quando conversávamos sobre outros assuntos, sempre perguntavam, com consternação, sobre Lula, o PT e a corrupção. Sem entender. Conversamos sobre democracia e todos estávamos insatisfeitos. Tentavam me consolar, mostrando os defeitos do modelo político dos EUA e como Bush era incompetente e “nasty” (desagradável). Eu disse que sabia que Bush era péssimo, mas isto não fazia Lula melhor. Talvez igual. Eles se parecem em várias coisas, mas sobretudo na alienação. A atitude de Bush na tragédia de New Orleans foi muito similar à que Lula vem tendo nessa crise de seu governo. Fingiu que não era com ele o tempo todo. Lula usa as viagens para o exterior e os comícios pelo Brasil, para fugir de suas responsabilidades. Bush tira férias, 360 dias em cinco anos de mandato. Levou uma semana, para sair das férias, na tragédia de New Orleans.

Mas Bush teve que cair na real. Sua popularidade evaporou. A de Lula vai no mesmo caminho. O partido republicano, entretanto, não está afundando com ele, como o PT afunda com Lula. E Bush está sentindo a pressão republicana. Teve que se desculpar para valer e mudar de atitude. Está alerta e ativo agora, com o Rita varrendo a costa da Florida e atingindo o seu Texas. Parece vingança Cajun.

Na terça-feira, acompanhei a formação da tempestade Rita e a expectativa de que se transformaria em furacão nível 4. Teria sido a mesma virulência do Katrina, mas acabou ele atingindo nível 5, mais forte ainda, para depois voltar ao nível 4 e mudar o curso previsto, que a leva de volta a New Orleans. Na TV a cobertura é diferente da que mostrou o Katrina. Muito mais consciência da gravidade da situação. Cobertura jornalística de primeira, que não poupa as autoridades, especialmente Bush. As TVs não se cansaram de alertar que os diques de New Orleans estavam fracos, os reparos haviam sido insuficientes. As autoridades estavam querendo reocupar a cidade, que ainda tem partes inundadas e corria o risco de os diques cederem, mesmo com o furacão passando ao largo da cidade. As TVs mostravam especialistas dizendo que haveria nova inundação, mesmo que o Rita passasse ao largo de New Orleans. A quantidade de chuva e a violência das águas seriam suficientes. Bastaram 48 horas para que a cidade começasse a ser, novamente, inundada.

O Governo Federal está tomando mais providências. Os governos locais mobiliz0aram ônibus e motoristas em número segundo eles suficientes. No Katrina, faltaram ônibus e era grande o número de pessoas que não tinham carros para deixar as cidades, principalmente New Orleans. Olhando a cobertura da antecipação da chegada do Rita, via-se o efeito concreto da democracia. A pressão de opinião pública funcionando. A imprensa redobrando os cuidados da cobertura, inundando os cidadãos com informações sobre a tempestade, sua trajetória possível, as precauções necessárias, mantendo no ar os responsáveis pela segurança pública – polícia, defesa civil, bombeiros, especialistas – cobrava repetidamente das autoridades a confirmação de que estavam preparadas para lidar com o furacão e suas conseqüências. Agora, com New Orleans novamente sob as águas, o comandante encarregado de manter a segurança na cidade tem que responder, constrangido, em tempo real, sobre o que está acontecendo, o que estão fazendo, porque está acontecendo de novo.

A imprensa, principalmente a TV, lembra aos cidadãos que, no Texas, o Rita vai atingir uma área em que se concentra a maior parte das refinarias do país e plantas da indústria química. Alto risco ambiental e econômico. Wall Street já começa a reagir à possibilidade de mais aumento no preço dos combustíveis. Os consumidores estão ficando preocupados com o impacto em seus orçamentos. Os bancos de investimento, como o JP Morgan, falam em desaquecimento da economia no segundo semestre, por causa dos efeitos dos furacões.

Aumentou o apoio à hipótese de conexão causal entre a intensidade e freqüência de furacões e a poluição da atmosfera por gases de efeito estufa, gases que retém calor. Os especialistas da Union of Concerned Scientists são entrevistados nos noticiários e talk-shows e estão fazendo a cabeça da imprensa e da opinião pública. Brenda Ekwurzel, cientista climática, responsável pelo programa de educação da UCS e de advocacia de medidas legais e políticas federais para conter a mudança climática, explicou na CNN que as águas mais quentes do mar transformam tempestades em furacões. Virou explicação padrão no noticiário. Mais problema e pressão para o governo Bush.

No momento em que escrevo, de volta ao Brasil, vejo na CNN que Rita se aproxima da Louisiana. De quinze em quinze minutos, o mundo vê as águas subirem nas ruas de New Orleans. As câmeras mostram a tempestade se aproximando da costa do Texas, as refinarias com a chama ainda acesa, as que já fecharam (13 até a hora que escrevi esta frase). Os repórteres de tempo, com suas imagens de satélite, acompanham minuciosamente, cada milha de avanço de Rita sobre o país. Bush tem que falar toda hora sobre o que está fazendo. Todas as autoridades são cobradas, minuto a minuto. Sem essa de que não falam à imprensa, como aqui. Lá a democracia não permite que o presidente se esconda em seu palácio e só apareça quando e onde queira. Tem que dar explicações. Faz parte da função. “It is part of the job description”, me disse uma jornalista californiana, que tem uma empresa de assessoria de comunicação estratégica para políticos.

Enquanto na Flórida, na Louisiana e no Texas a democracia cuidava do estado de emergência, na Califórnia, ela derivava para o pitoresco. Sempre acho estranho ver Arnold Schwarzenegger como governador. Não consigo dissociá-lo das imagens de Conan, o Bárbaro, o Exterminador do Futuro e Mr. Freeze, tentando congelar Batman e o mundo. Ele está nos noticiários, numa investida de opinião pública, tentando reverter o crescimento da oposição a um pacote de medidas que submeteu a plebiscito, o qual ocorrerá no começo de outubro. A medida mais polêmica é a mais correta: proíbe o uso de dinheiro dos sindicatos – oriundo de contribuição sindical e outras fontes – para fins políticos. Os sindicatos estão em ofensiva contra. Schwarzenegger está sendo atacado em várias frentes. Sua linha de autodefesa é perigosa. Respondendo às críticas de que está assumindo riscos demais, disse: “não sou político, não penso como político. Isso precisa ser feito e eu penso como um fazedor”. Esse tipo de discurso é um dos riscos que corremos em 2006 com a decepção que Lula e sua turma causaram no povão e o descrédito da classe média nos políticos. Há demanda por um “fazedor”, que não seja político, nem pense como um. Outro caçador de marajás, outro que vai prometer a vitória da esperança sobre o medo e tudo mais.

O EUA tem seus Bush e Schwarzenegger, exerce de forma implacável sua hegemonia econômica e tenta impor uma hegemonia militar que não tem. Pelo menos não com armas convencionais, sem apelar para as armas de destruição em massa. Mas tem uma democracia ordenada, com um grau de respeito cívico, que faz enorme diferença em relação ao Brasil. Suas cidades e seus prédios são limpos. Mesmo New York, talvez a mais suja e esculhambada de suas cidades, é incomparavelmente mais limpa que as cidades brasileiras. Já nos anos 80, eles separavam lixo para reciclar. O mesmo se pode dizer, das democracias mais capengas da Europa, como a italiana. Portugal e Espanha, cujas democracias são tão recentes como a nossa, têm um grau de arrumação societária muito mais avançado que o nosso.

Quando examinamos, a sério, qualquer problema brasileiro, nos deparamos com um grau de irresponsabilidade oficial e coletiva, com um desmazelo incompatíveis com nossas aspirações e qualquer modelo de democracia estável. O Brasil anda de dar vergonha: cidades imundas, estradas esburacadas, desordem social, desmando em todas as esferas da vida pública e privada. O crime ocupou espaços significativos de cidades como o Rio de Janeiro e São Paulo. No Rio, de uma forma tão ostensiva e descarada, que desmascara todas as mentiras do casal que governa o estado.

Nossos parques são invadidos, palmiteiros e caçadores entram e saem impunes. Grileiros grilam quantidades imensas de terra, sem qualquer repressão. O fogo devasta as savanas de nossos cerrados e nossas matas. É cada vez mais difícil percorrer as estradas brasileiras, abastecendo com a segurança de que não estaremos consumindo combustível adulterado. As cargas são transportadas em quantidade expressiva por caminhões sem manutenção adequada, sobrecarregados, mesmo quando entregues a grandes transportadoras. É comum a subcontratação de fretes sem controle ou fiscalização. As autoridades públicas perderam a vergonha na cara. São capazes de justificar as mais absurdas situações com as desculpas mais esfarrapadas possíveis. Basta ver como o presidente e seus ministros mais chegados justificam as falcatruas eleitorais e não eleitorais do PT. Como o PSDB fez vista grossa ao fato de que o esquema de Marcos Valério nasceu no seu regaço mineiro. Como, em qualquer delegacia das grandes cidades, cidadãos são informados de que ter seus carros furtados é rotineiro e a polícia nem se dá ao trabalho de procurar os culpados ou recuperar os veículos perdidos. Posso gastar páginas listando os absurdos diários que agridem os cidadãos brasileiros e as evidências de descaso e impotência autodeclarada de nossas autoridades.

Semana passada a bolsa bateu recordes históricos de valorização, porque circulou a informação de que o Brasil teria um upgrade das agências de rating, um degrau a mais na caminhada para o sonhado “investment grade”. O porta-voz de uma dessas agências disse a um repórter que “o Brasil tem instituições sólidas e de boa qualidade” e por isso poderia fazer sentido um upgrade. Não faz sentido, nem está correta a justificativa. Não há instituições que resistam a uma bagunça dessas, ao desmando, à corrupção, à tolerância com a sujeira, a degradação ambiental, o colapso físico das estradas. É um grau de regresso a situações tão primárias, tão primitivas, que não sustentam a idéia de desenvolvimento institucional. Temos poucas instituições que funcionam. A maioria absoluta de nossas instituições já está em crise ou desmontadas pelo descrédito e pelo desrespeito.

Ao contrário, toda essa baderna é sintoma de uma crise profunda, que alcança as instituições. Crise de autoridade e de governança de grande dimensão, que terá conseqüências (está tendo) graves e profundas. Nossa democracia afunda não apenas na lama da corrupção no Legislativo, no Executivo e no Judiciário, mas também neste pântano de irresponsabilidade pública e alienação social.

É evidente que esse estado de coisas, intolerável sob qualquer aspecto, vai gerar uma demanda conservadora, por lei e ordem, progresso se possível. Uma busca por soluções drásticas, para uma situação sóciopolítica limite, ainda que atropele a democracia ou as liberdades. Esse grau de dissolução do poder público, de deslegitimação, de desgoverno, de desrespeito com os cidadãos, o ambiente, os limites do público e do privado, traz no ventre sementes de situações que nada têm de democráticas.

Parece exagero ou pessimismo. Mas não é. Façam uma breve reflexão. Olhem à sua volta. Prestem atenção no que fazem os ônibus em nossas ruas. Ouça os tiros da guerra entre gangues por todo o Rio de Janeiro. Vejam a fumaça das queimadas tomar os céus do Norte e do Centro-Oeste do país. Prestem atenção no lixo nas praias. Vejam a cloaca em que transformaram a baía de Angra dos Reis. Pensem nos Severino, Luizinho e outros tantos e as somas vis pelas quais conspurcaram seus mandatos populares. Lembrem-se de sua última experiência com a polícia, o guarda de trânsito. Enfim, construam um retrato mental do cotidiano brasileiro nos últimos anos: social, ambiental, político, governamental. Ninguém conseguirá fazer isto sem concluir que o país vem piorando e tudo já passou dos limites do aceitável. Estamos nos tornando uma sociedade vergonhosa, com um governo vergonhoso e instituições vagabundas.

A questão seguinte é: quantos não se encantarão com a idéia de um não-político assumir o comando, um exterminador de um passado de vergonha e um presente que nos causa ainda mais aversão, para nos conduzir a um futuro diferente e melhor? Pois é aí que mora o perigo final.

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