O resultado mais visível da reunião sobre o clima, em Nairobi, no Quênia, foi o impasse no tema central: a revisão das metas do Protocolo de Kyoto para o futuro, com base nos resultados de seu período de vigência. Sem acordo, a revisão foi adiada. O Brasil foi um dos agentes principais desse impasse e corre o risco de ficar isolado no futuro. Os ventos da mudança política começam a soprar mais fortemente no EUA, na Austrália e no Canadá, os outros artífices do bloqueio ao avanço na política global do clima.
O tema específico, de ajuda à África para enfrentar os efeitos da mudança climática, que parecia consensual, gerou decisão muito aquém do esperado. A ajuda será voluntária e, provavelmente, em volume inferior ao necessário. Mas nas correntes mais profundas que se pode sentir na política do clima há sinais de provável avanço nas próximas reuniões.
A aprovação de um estudo sobre os efeitos da mudança climática e seus custos muda a visão sobre o clima: primeiro, porque reconhece a existência de mudança presente e futura no clima; segundo, porque deixa de olhar apenas para a mitigação do efeito e começa a levar a sério a adaptação aos efeitos que não poderão ser mitigados ou evitados. As correntes que movem a política do clima são turbulentas e contraditórias. Há muitos conflitos de interesses e ideologias envolvidos, entre países, entre setores econômicos, entre grupos sociais e entre ambientalistas e decisores. O tema é complexo. Mas a nossa compreensão coletiva sobre ele está progredindo. Talvez estejamos avançando mais lentamente do que seria preciso, mas ainda assim, tem havido progresso.
Desgovernança
A reunião da Convenção do Clima (COP 12), que inclui a reunião do Protocolo de Kyoto (MOP 2), terminou em compromisso sobre o impasse central. O conflito de interesses e a rigidez ideológica impediram um acordo que levasse a um novo modelo global para lidar com a mudança climática. O que no jargão mais técnico chamamos de governança climática. A idéia é relativamente simples, mas envolve complexidades que ameaçam a humanidade a gastar, no futuro não muito distante, uma parcela considerável da renda global apenas para se adaptar aos efeitos da mudança climática, porque já terá passado o prazo para evitar – ou adiar significativamente – ou mitigar esses efeitos.
O mundo precisa de regras, respeitadas por todos, para reduzir em perto de 80% as emissões de gases estufa, o mais rapidamente possível e garantir que esse novo nível sirva como teto daí em diante. Para tornar essas regras operacionais e regular sua aplicação, é preciso ter uma agência global para o clima, que tenha mais poderes e mais efetividade do que o Bureau e o Secretariado do Clima da ONU.
Um modelo apropriado de governança do clima consistiria em duas partes principais: primeiro, um acordo, contrato se preferirem, global, em que todos os países se disporiam a aceitar obrigações no esforço de evitar a mudança climática, comprometendo-se em aplicar modelos de desenvolvimento – uso de recursos e energia – que sejam, no limite, neutros em relação à emissão de gases estufa. Segundo, uma agência com autonomia e soberania garantidas nesse contrato, com poderes para operacionalizar a implementação equânime das obrigações contratuais, a avaliação da eficácia das ações nacionais e para regular e arbitrar as relações político-econômicas globais associadas à observância das obrigações contratuais e dos mecanismos operacionais.
Governar é possível
Um exemplo de mecanismo operacional é o MDL (mecanismo de desenvolvimento limpo), que permitiu a criação do mercado de carbono. Por ele, quem elimina emissões e tem balanço de carbono positivo, pode vender créditos, para quem precisa compensar as emissões que não pode eliminar para ficar na cota que lhe foi atribuída. Para a efetiva institucionalização desse mecanismo, ele precisa de regras estáveis e previsibilidade quanto ao futuro, papel que deveria ser cumprido pelo contrato – a convenção do clima e o Protocolo de Kyoto – mas que está prejudicado pelo impasse que se repete desde, principalmente, a COP 10, em Buenos Aires.
É uma idéia parecida à que tenta estabelecer um novo padrão de governança para o comércio internacional. O “contrato” é definido nas rodadas de negociações diplomáticas entre os países, uma vez decidido, cabe à Organização Mundial do Comércio operacionalizá-lo, implementá-lo e regulá-lo. Nos últimos anos, a “Rodada de Doha”, que permitiu avanços em algumas áreas, empacou também em um tema central para o estabelecimento definitivo de uma nova governança comercial global: os subsídios agrícolas. Um impasse que deriva de contradições de interesses entre os países membros da OMC, movidos pelo grau diferenciado de centralidade que a agricultura tem em suas economias e por sua competitividade comparativa sem subsídios. A esses interesses econômicos estão associadas, também, visões ideológicas conflitivas sobre desenvolvimento econômico e social dos países que se reúnem para desobstruir os canais de comércio mundial e permitir mais livre circulação de produtos e serviços sob a forma de mercadorias.
Nairobi: última parada?
Da mesma forma, as “cúpulas do clima” (as COPs), são rodadas de negociação, em busca de uma solução global efetiva para a mudança climática. E têm esbarrado em um impasse central, determinado pela resistência de vários países em assumir as suas obrigações e, principalmente, em acertar logo, um regime estável de governança do clima, para ser implementado a partir de 2012, quando termina o acordo provisório sob o Protocolo de Kyoto.
A solução de compromisso para o impasse, em Nairobi, foi, tipicamente, empurrar para a frente a observância do artigo 9 do Protocolo, que mandava fazer agora a revisão de desempenho no cumprimento de suas metas e, à luz dessa revisão, revisar os parâmetros para as metas a serem buscadas após o fim da sua vigência, a partir de 2012. A revisão foi adiada para 2008 e, pior, limitada apenas à vigência do Protocolo de Kyoto, deixando de fora o futuro, que é a parte relevante.
Foi a terceira vez que a rodada do clima termina em impasse. Na próxima, dentro de um ano, em Bali, talvez haja mais avanço. Há mudanças em processo ou sinais de mudanças próximas em três dos quatro principais agentes do impasse no clima: Estados Unidos, Austrália e Canadá. O Brasil, o quarto do contra, não parece que vá mudar. Ao contrário, a idéia do presidente reeleito Lula de editar uma Medida Provisória para detonar o licenciamento ambiental em nome do desenvolvimento, mostra um governo cada vez mais retrógrado e reacionário no campo ambiental.
Mudança doméstica muda diplomacia do clima
A vitória dos democratas nas eleições de meio de mandato no EUA, se deu em um clima de demanda majoritária por mudança na política de segurança nacional, nas políticas para educação, saúde, ciência e tecnologia e na política ambiental de Bush. O presidente, numa reação até surpreendente diante da personalidade autoritária que exibiu até agora, deu sinais concretos e positivos de mudança na atitude do governo que comanda, em relação ao Iraque e, também, ao clima. Demitiu o arquiteto da invasão do Iraque, Donald Rumsfeld, Secretário de Defesa e chefe do Pentágono e abriu um canal de consulta com Al Gore, democrata e seu adversário, sobre o clima. Não será surpresa se o Congresso aprovar, ainda durante seu governo, legislação federal limitando as emissões de carbono.
O primeiro-ministro australiano, John Howard, está enfrentando oposição interna crescente, por causa de seu alinhamento às posições de Bush. Ficou fora do Protocolo de Kyoto, do mesmo modo que o EUA, e participou da invasão do Iraque. A Austrália enfrenta há dois anos, a pior seca dos últimos 100 anos e há cientistas australianos dizendo que essa seca anômala já é resultado da mudança global. Ela está devastando a agricultura do país, destruindo patrimônio de produtores, muitos desesperados com as dívidas que não podem pagar, e chega à mesa dos eleitores com a elevação dos preços da comida.
A Ameaça do voto verde
Mas a opinião pública australiana não está reagindo apenas aos efeitos econômicos do clima. Está realmente preocupada com a mudança climática em si. Uma pesquisa recente da AC/Nielsen mostrou que 91% consideram que o aquecimento global é um problema e 63% estão dispostos a pagar mais impostos para reduzir os gases estufa. Uma outra pesquisa, do IPSOS, revelou que 0 voto de 60% dos eleitores tende a ser determinado pela questão climática. Mas mostrou, também, que eles estão divididos com relação a que partido seria melhor para lidar com o aquecimento global. Mais ou menos a mesma proporção aponta os Liberais – no poder – o Partido Verde e os Trabalhistas.
Howard está definitivamente na contramão da opinião pública de seu país. Agora, com a perspectiva de perder as eleições, quer convencê-la de que tem uma proposta mais eficiente do que a de Kyoto. A mais recente pesquisa eleitoral, do Morgan, dá vitória aos trabalhistas de 55% a 45%. Se acontecer, muda a política australiana para o clima. Os trabalhistas estão propondo que a Austrália assine Kyoto, estabeleça cotas baixas de emissões de gases estufa, crie um imposto sobre carbono e que o governo invista mais em energias renováveis.
O Canadá, ao contrário da Austrália, está de governo novo, eleito na primavera – deles – de 2005, em uma eleição muito dividida. Nenhum partido teve maioria clara, e o Primeiro-Ministro Conservador, Stephen Harper, não tem base parlamentar suficiente para mantê-lo no governo sem apoio popular. Apoio que parece já começa a faltar, pois ele está perdendo espaço nas pesquisas e sua política para o clima é uma das razões. Apresentou uma proposta de lei do ar limpo (Clean Air Act), de controle de emissões, que está sendo duramente criticada pela oposição e pelos ambientalistas, além de ter exposição muito negativa na mídia. Pesquisa de opinião pública recente registrou crescimento da preocupação dos canadenses com o clima, que passou para o segundo lugar na lista de problemas, ficando atrás apenas de saúde pública.
Harper está sendo duramente criticado pela posição canadense em Nairóbi. O Canadá não abandonou o Protocolo de Kyoto, como se especulava que faria, mas a ministra do Meio Ambiente, Rona Ambrose, disse em Nairobi que seu país não cumprirá as metas com as quais se comprometeu.
Pôs a culpa nos governos anteriores, mas está claro para os canadenses que os Conservadores (tories) são da ala dos contra na questão do clima. Essa atitude e posições igualmente controvertidas aumentam a esperança da oposição em novas eleições federais na próxima primavera e as pesquisas mostram que o Partido Liberal pode ganhar. Este mês haverá eleições para escolha do novo líder Liberal (no Canadá o líder do partido é escolhido pelo voto direto), ao qual caberá conduzir a campanha, se as eleições de fato ocorrerem. Os Liberais criticam as posições ambientais do governo tory e propõem uma nova política ambiental.
Com ou sem eleições, é pouco provável que o Canadá se mantenha por muito tempo na linha de frente dos contra, na política global do clima.
Com a mudança provável na posição do EUA, Austrália e Canadá, a COP 13, em Bali, pode ser o começo de uma nova rodada, que teria melhores chances de romper o impasse do clima.
Outros poderes
O Brasil, que está andando para trás nessa e em várias outras áreas, ficaria isolado e, isolado, ficará fraco. A posição brasileira, hoje, é fortalecida pelo bloco diplomático dos contra. Desse bloqueio nossa diplomacia retira recursos para usar um poder de veto que, normalmente, não teria. Faz isso como se estivesse confrontando as grandes potências, mas está colaborando com aquelas que querem o impasse, lideradas pelo EUA de Bush. Por outro lado, a posição brasileira conta com a grata satisfação da China e da Índia, que vêem na ação diplomática do governo Lula o melhor biombo para se livrarem de maiores obrigações na política do clima. Principais emissores potenciais nos próximos anos, escondem-se atrás da política brasileira, que exerce, com orgulho, um dos mais reacionários papéis no teatro da diplomacia mundial do clima.
Outra fonte do impasse é a contrariedade entre técnicos oficiais e ONGs ambientalistas sobre o prazo para o acordo pós-Kyoto. Os ambientalistas, porque não confiam nos compromissos assumidos pelos países, querem acordos qüinqüenais. Os técnicos, preocupados com a institucionalização do mercado de carbono, querem acordos de longo prazo. As ONGs têm razão em chamar atenção para a baixa credibilidade do arranjo atual. Mas a solução que defendem está errada e mostra um inviável viés anti-mercado. Sem parâmetros de longo prazo, o mercado de créditos de carbono não pode prosperar. O que se precisa é de regras mais estáveis e de um horizonte de tempo muito mais amplo, para se comprometer com esse mercado em emergência. As regras básicas têm que ser, mesmo, de longo prazo. Só um sistema de governança que construa a confiança necessária, tanto, para satisfazer aos ambientalistas com relação à seriedade das obrigações contraídas, quanto aos investidores quanto à estabilidade das regras, pode lidar com o problema da mudança climática de forma durável e efetiva.
No limite, os ganhos de confiança e credibilidade atenderão a ambos. Mas cabe aos ambientalistas adotar uma atitude mais construtiva. Eles são agentes que optam por uma atitude de ação – ter cada vez mais voz e influência no processo decisório – enquanto os investidores adotam, por sua natureza, uma atitude de saída, abandonar os mercados em que não confiam e buscar outras alternativas de investimento. Ambientalistas agem por convicção e interesse. Investidores apenas por interesse. Os ambientalistas podem influenciar o processo positivamente, os investidores, se não confiarem no mercado, simplesmente preferem abandoná-lo. E o mercado de carbono é um instrumento essencial, dada a hegemonia global da economia de mercado, na luta contra o efeito estufa.
Mudança de paradigma
Mas nem tudo é impasse. A decisão de encomendar um relatório sobre os custos da adaptação, isto é dos efeitos da mudança climática presente e futura, representa um avanço conceitual e uma mudança no paradigma político de tratamento do clima. Antes, só se falava em mitigar os efeitos e, ainda assim, havia dúvida sobre se e quando a mudança climática produziria efeitos negativos. Agora, não apenas se reconhece que a mudança climática é real, como também que tem efeitos negativos, presentes e futuros. Há efeitos futuros que ainda podem ser evitados, se reduzirmos forte, rápida e sustentadamente a emissão de gases estufa. Mas os efeitos presentes e aqueles que emergirão nas próximas três décadas, são inevitáveis. Já estão “contratados”, dado o efeito estufa já produzido pelo que acumulamos de gases estufa na atmosfera nas últimas quatro ou cinco décadas.
Esses efeitos inevitáveis requerem imenso esforço e vultosos investimentos de adaptação. Populações litorâneas terão que ser relocalizadas, por causa da elevação do nível do mar. Áreas férteis serão desertificadas ou perderão produtividade. O aquecimento expande a área de abrangência de vetores de doenças contagiosas. Áreas de interesse turístico por causa da presença de gelo e neve que se imaginava perenes, verão desaparecer a cobertura gelada dos montes. Atividades econômicas terão que ser recicladas para serem adaptadas às novas condições ambientais. Vai se perder grande quantidade de biodiversidade, com conseqüências ecológicas que certamente terão custos, ainda desconhecidos. Como alertou o relatório Stern, recentemente divulgado, as regiões, populações e setores mais pobres são os mais vulneráveis a esses efeitos.
A apresentação do relatório sobre os desafios e custos da adaptação aos efeitos da mudança global pode ser um marco na mudança no paradigma por meio do qual se trata a questão climática no mundo. A ciência começa a ter parâmetros econômicos quantificados e o custo econômico é sempre mais fácil de apreender e entender do que os efeitos físicos de processos como esse. Essa quantificação começou com o exercício contido no relatório Stern e pode ter uma nova contribuição importante no relatório sobre os custos da adaptação, a ser apresentado na COP 13, em Bali.
Vamos, portanto, não só cruzar os dedos, mas nos preparar para a Rodada de Bali do clima.
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