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A Esquerda Predatória

Uma parte da esquerda nega a mudança climática e defende um modelo de desenvolvimento que atende interesses dos setores mais atrasados do capitalismo brasileiro e internacional.

13 de abril de 2007 · 18 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Andando pela blogoesfera e processando as centenas de e-mails não solicitados que recebo, tenho encontrado uma farta coleção de bobagens escritas por gente da esquerda brasileira sobre meio ambiente e desenvolvimento. Analisando o comportamento dos parlamentares brasileiros, no Senado e na Câmara, o que se observa na banda esquerda é que para cada Gabeira, há pelo menos quatro parlamentares de esquerda que defendem visões ultrapassadas em relação ao meio ambiente e desenvolvimento, imaginando que estão defendendo os interesses populares.

É a esquerda predatória. Um parte significativa da esquerda nunca defendeu, no Brasil, os interesses populares. Sempre foi defensora de privilégios corporativos, dos “com carteira”, dos “com grupo organizado”, ainda que se intitulem “sem” alguma coisa. Os setores da esquerda que realmente são solidários aos interesses dos verdadeiramente despossuídos, os pobres “sem carteira”, os verdadeiros “sem” eira, nem beira, sabem há muito, na sua maioria, que a deterioração ambiental atinge mais a essas classes que à dos “com”, que a esquerda predatória defende.

Quando alguém da esquerda fala que o alerta sobre mudança climática global ou a preocupação ambiental, ou a defesa da Amazônia não passam de manobra imperialista, mais um truque do EUA, mostra apenas atraso e ignorância. E com atraso e ignorância, não vamos nem proteger, nem emancipar os despossuídos.

É tão óbvia a vulnerabilidade dos mais pobres (verdadeiramente pobres) às mudanças ambientais, que nem seria preciso lançar mão da hipótese de mudança do clima, de aquecimento global. Basta pensar na poluição das águas, na falta de saneamento, na desertificação de terras de agricultura, na proliferação de vetores transmissores de doenças. É evidente que os mais vulneráveis a todos os efeitos humanos negativos da perda de qualidade ambiental são os pobres. Os ricos e os remediados têm mobilidade – podem deixar áreas de risco – têm recursos para recorrer à ciência e à tecnologia para se defender. Mas não é essa a regra da sociedade desigual, que a esquerda deveria sempre consultar? Os setores dominantes se safam e os dominados se danam?

Também não faz sentido imaginar que tudo se resuma aos países ricos e dominantes transferirem o ônus ambiental para os países pobres. Imaginar que o Brasil faz parte dos países pobres e dominados é cometer o mesmo erro de confundir os trabalhadores “com” e os despossuídos. Do ponto de vista geopolítico e diplomático, o Brasil é uma potência intermediária. Tem voz e voto. Não faz parte dos países despossuídos. Faz parte dos países “com” voz e voto em todas as arenas internacionais relevantes. Só não tem assento permanente no Conselho de Segurança da ONU. Do ponto de vista econômico, o Brasil é um país de classe média. Está entre os 20 maiores PIBs do mundo.

Quando o Brasil se curva aos interesses dos países mais poderosos, não é porque não tem força ou meios para resistir. É porque há uma constelação de interesses domésticos associados a esses interesses externos, que têm força e poder para impô-los domesticamente. Às vezes, essa força vem da omissão de outros grupos da sociedade e da política brasileira. Dou um exemplo ambiental: os Europeus querem nos mandar seus pneus usados. É lixo. Não devemos aceitá-los. Mas o governo brasileiro aceitou uma imposição do moribundo Mercosul, para que recebamos esse lixo de pneu de países membros. Os interesses domésticos, associados à reciclagem de pneus, têm conseguido fazer avançar seus negócios aqui, por inércia dos demais. Eles não teriam força para nos impor essa importação de lixo, se os setores que se julgam progressistas dessem mais importância aos problemas ambientais. O que acontece com o descuido com pneus usados? Viram abrigo para o mosquito da dengue, entopem bueiros, poluem rios. Quem paga o pato? Os “sem”. São mais vulneráveis às doenças, têm menos acesso a serviço médico com qualidade mínima, consomem água poluída.

Mas o fato é que a mudança climática global não é um artefato da dominação imperialista. Nem a proteção ambiental é antagônica ao desenvolvimento. Sobretudo ao desenvolvimento que emanciparia os “sem”, os despossuídos. A evidência científica é “trans-ideológica”. Conheço cientistas de ponta, aqui e no exterior, de direita e de esquerda, das várias direitas e das várias esquerdas, que atestam que as evidências físicas e biológicas da mudança climática são inequívocas e incontestáveis. Na negação, a esquerda predatória está de braços dados com a direita mais reacionária. George W. Bush também nega a mudança climática. Tem até censurado os cientistas dos laboratórios estatais do EUA – é lá também tem disso – para evitar que façam a cabeça da opinião pública sobre a realidade do aquecimento global.

Aí, voltamos ao óbvio, uma mudança desse tipo atinge muito mais dramaticamente os “sem” do que os “com” cujos interesses a esquerda predatória defende. Internacionalmente, os países e as populações mais despossuídas – no continente africano e asiático – serão as principais vítimas da mudança climática global. No Brasil, a região mais dramaticamente atingida será o semi-árido nordestino. Quem é realmente de esquerda, quem deseja a emancipação das principais vítimas da exclusão social, da discriminação e da exploração – trabalho escravo, sub-remuneração, lumpenproletarização – não pode desconsiderar a ameaça que a mudança ambiental representa e representará para esses setores da sociedade.

A questão ambiental é uma questão de classe social. Ela desprotege, agride e expropria os setores dominados, subalternos da sociedade. A ideologia do desenvolvimento à base da cópia do desenvolvimento capitalista do Século XX é um instrumento de alienação moral da classe dominada. Defende um padrão de desenvolvimento tecnológico, econômico e social, que produz a exclusão e a fragilidade dos “sem”, dos despossuídos.

Não existe antagonismo entre o desenvolvimento e o meio ambiente, se adotarmos para o desenvolvimento um padrão distinto daquele que presidiu a acumulação global de capital no último século. O padrão capitalista excludente, centrado da economia do carbono e nos oligopólios que dela se nutrem nada tem a ver com a emancipação dos despossuídos, nem global, nem localmente. A esquerda que defende a manutenção desse padrão promove uma coalizão com os piores interesses do capitalismo nacional e internacional. Esse padrão ambientalmente destrutivo é que nos foi imposto pelos países dominantes, no processo de internacionalização do capital e seus mercados.

O desenvolvimento de baixo carbono, na verdade, abre uma extraordinária oportunidade para implantação de um modelo diferenciado de desenvolvimento, com um padrão de produção e consumo diferentes daqueles que tipificam o capitalismo carbono intensivo. E para um país como o Brasil, abre a possibilidade de desenvolver uma bioindústria avançada, que ao mesmo tempo que proteja nossa biodiversidade, faça uso amigável dela e, associada a uma política científica, tecnológica e educacional focalizada, leve à emancipação dos despossuídos das regiões de grande biodiversidade. Isso vale para a Amazônia, o Pantanal e o Cerrado. No semi-árido, o desafio é maior, mas ele só poderá ser vencido em um novo padrão de desenvolvimento. Nunca com a extensão e o aprofundamento desse padrão que beneficia apenas a uma pequena fração da sociedade brasileira e a uma parte da elite econômica que é predatória, suga renda coletiva do aparelho de estado e oprime os setores despossuídos, oferecendo-lhes trabalho subumano a salário vil.

O papel da esquerda consciente é discutir as bases desse novo modelo de desenvolvimento, desses novos padrões de produção e consumo, que além de ambientalmente sustentáveis, reforçariam a independência da economia brasileira no âmbito global e emancipariam, finalmente, os despossuídos da opressão da pobreza, da exclusão, da discriminação, da fome, do analfabetismo funcional e do trabalho escravo. O padrão atual, além de nocivo às gerações futuras, por causa de seus impactos ambientais, congelou a desigualdade, que começou a cair na última década, mas não na velocidade, nem na qualidade necessárias para que atinjamos níveis civilizados de justiça social. Quem o defende, também defende, mesmo que não tenha essa intenção, a reprodução das condições sociais em que vivem grande parcela da população nas áreas ambientalmente críticas, como a Amazônia, a Caatinga e o Cerrado. Defende os setores mais atrasados do capitalismo brasileiro e internacional.

A adequada compreensão, por toda a esquerda, dos desafios e das oportunidades estratégicas postos pela mudança climática, permitiria que ela participasse do debate sobre o desenvolvimento de uma forma muito mais progressista e transformadora. O desafio ambiental permite uma mudança paradigmática na abordagem do desenvolvimento e abre uma nova frente para que a esquerda possa tomar dos setores conservadores o monopólio das soluções econômicas. O debate ficaria mais pluralista e sem dúvida mais inteligente do que é hoje.

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