Reportagens

Ibama tenta frear avanço da degradação dos campos gaúchos

Multas do órgão ambiental já somam R$ 21,8 milhões no Estado. Os campos nativos dos biomas Pampa e Mata Atlântica são os mais ameaçados do país

Fernanda Wenzel ·
3 de outubro de 2018 · 6 anos atrás
Supressão de vegetação nativa no Pampa para produção de soja. Foto: Ibama.

A Operação Campereada, que teve início em 2013, já resultou no embargo de quase 7 mil hectares e na aplicação de multas que somam R$ 21,8 milhões no Rio Grande do Sul. O objetivo é frear a degradação campos nativos dos biomas Pampa e Mata Atlântica, os mais ameaçados do país.

Rodrigo Dutra da Silva, Chefe de Divisão Técnico-Ambiental do Ibama no Rio Grande do Sul, explica que a competência primária para este tipo de fiscalização é do governo do Estado, o que não impede o Ibama de atuar na região. A decisão do órgão federal de agir por conta própria decorre do aumento da pressão da agricultura sobre os campos nativos, sem que haja qualquer fiscalização por parte do governo estadual: “Não temos visto estas operações a nível estadual. E o bioma Pampa perde de 80 a 100 mil hectares por ano, que é um ritmo três vezes maior que o da Amazônia”.

No Pampa, que ocupa toda a porção sul do Estado, a supressão da vegetação está predominantemente associada ao avanço da soja, como ((o))eco mostrou em junho. Já os Campos de Cima da Serra – como são chamados – estão inseridos no bioma Mata Atlântica, na região nordeste do Estado. Ali, as lavouras de soja dividem espaço com outros tipos de produção agrícola, especialmente a batata.

O Ibama localiza os maiores polígonos de supressão vegetal através de imagens de satélite e em seguida as equipes vão a campo. No Pampa, os fiscais verificam se o proprietário tem autorização do órgão estadual para converter a área em lavoura. Já na Mata Atlântica qualquer tipo de supressão vegetal é proibida.

73% das áreas embargadas pela Operação Campereada estão no bioma Pampa, enquanto a região de Mata Atlântica concentra os outros 27%. Mesmo assim, este bioma responde por 68% do valor total das multas aplicadas pelo Ibama no Rio Grande do Sul. “O Pampa tem menor proteção, e as multas são menores. As multas no Pampa são de R$ 300 por hectare. Já na Mata Atlântica, que é um bioma protegido por lei específica, a multa é de R$ 7 mil por hectares”, explica Dutra.

Decreto tenta acabar com a reserva legal do Pampa

Supressão de Mata Atlântica nos Campos de Cima da Serra para produção de batata. Foto: Ibama.

O bioma Pampa já tem a menor exigência de reserva legal dentre todos os biomas brasileiros. Enquanto na Amazônia o proprietário é obrigado a preservar 80% da área, no Pampa essa obrigação cai para 20%. Mas um decreto de junho de 2015 do governo de José Ivo Sartori (MDB-RS) pode reduzir a zero esse percentual.

O decreto, que tratava sobre a implementação do Cadastro Ambiental Rural (CAR) no Rio Grande do Sul, classificava como área rural consolidada toda a “área com ocupação antrópica preexistente a 22 de julho de 2008”, mesmo que essa ocupação fosse a atividade pastoril.

Ou seja, a categoria englobava todo o bioma Pampa, em que a atividade pastoril é realizada há séculos. Como as áreas rurais consolidadas não precisam ter reserva legal, o decreto simplesmente acabava com a reserva legal do Pampa. “É muito grave”, afirma Dutra.

O decreto gerou reação do Ministério Público Estadual, que em dezembro de 2015 obteve uma liminar proibindo a Secretaria do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável de emitir CARs no Pampa sem a previsão de reserva legal. O mérito da questão, no entanto, ainda aguarda julgamento: “Se essa interpretação [da área rural consolidada] vingar, ninguém mais vai precisar recuperar o que já suprimiu”, alerta o Chefe de Divisão Técnico-Ambiental do Ibama.

Para o professor do Instituto de Biociências da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Valério Pillar, a interpretação presente no decreto não encontra respaldo técnico. Ele faz a comparação com uma floresta nativa cujo proprietário retirou madeira de forma sustentável: “Essa área continua sendo uma área de floresta nativa, e não uma área de uso consolidado. O mesmo vale para o campo nativo que foi pastejado desde a colonização europeia. Nunca deixou de ser uma área de vegetação nativa campestre, mesmo sendo usada pela pecuária. Porque [a pecuária] não destrói a vegetação nativa, assim como a remoção sustentável de madeira de uma floresta não a destrói”.

Supressão de Mata Atlântica para produção de batata nos Campos de Cima da Serra. Foto: Ibama.

O Sistema Farsul (Federação da Agricultura do Rio Grande do Sul), por sua vez, concorda com o decreto. O assessor técnico de desenvolvimento sustentável, Eduardo Condorelli, afirma que a atividade humana na área – através da pecuária – transformou os campos gaúchos a ponto de estes não poderem mais ser considerados como remanescentes de vegetação nativa: “Por conta disso entendemos que há uma interpretação equivocada da parte órgão ambiental ao tratar essa área como uma área de vegetação nativa, independente da presença humana, imaginando então que estas seriam áreas praticamente com características pré-jesuíticas, anteriores à presença do homem com atividade econômica nesta região do país”.

Para Condorelli, o entendimento de que a conservação do Pampa está relacionada à pecuária tem consequências que extrapolam as questões ambientais: “[Nesse caso] estamos passando ao entendimento de que temos que obrigar as pessoas a serem pecuaristas na área, porque se eu tirar a pecuária de lá a área não fica igual. Estamos ultrapassando as questões ambientais e entrando em questões econômicas e sociais. Essa é a nossa preocupação”. Apesar de discordar da atual legislação, a Farsul diz que orienta os produtores a só suprimirem a vegetação com autorização do órgão de fiscalização estadual.

O abandona da pecuária

A degradação dos campos sulinos está diretamente associada ao gradual abandono da pecuária – atividade que durante séculos dominou a região – pela soja. “A soja substitui a vegetação nativa, a pecuária mantém a vegetação nativa”, explica o professor Pillar.

Supressão de Mata Altântica nos Campos de Cima da Serra para plantação de batata. Foto: Ibama.

Ele explica que estas regiões conviveram com animais pastadores até o final do Pleistoceno. Por isso, o gado introduzido pelos colonizadores espanhóis se adaptou tão bem à região, ao mesmo tempo em que não prejudica o ecossistema.  “Pelo contrário, a remoção do gado causa uma redução da diversidade, nós temos dados que comprovam isso. A remoção da atividade pecuária faz com que a vegetação nativa tenha um predomínio de espécies de maior altura, e aí há a exclusão de muitas espécies que exigem para a sua sobrevivência áreas mais abertas. Isso vale para plantas e para algumas espécies de aves”.

O professor não condena a introdução da soja nessas regiões como forma de diversificar a produção, mas garante que a escala em que isso está acontecendo é insustentável: “É o mesmo processo que já aconteceu no Planalto Médio. Restam pouquíssimas áreas de campos nativos no Planalto Médio, e em algumas regiões do Pampa nós estamos indo pro mesmo caminho”.

Do ponto de vista econômico, a pecuária também pode ser mais sustentável que a soja no Pampa, desde que sejam aplicadas técnicas de manejo. Conforme o estudo comparativo publicado por Pillar e outros pesquisadores no livro Os Campos do Sul, a pecuária de corte com manejo pastoril melhorado gera uma renda líquida de R$ 812 por hectare. A renda líquida do arrendamento para lavoura de soja gera uma média de R$ 406 por hectare, enquanto a produção de soja em si rende R$ 296 por hectare.

Pillar lembra que a produção de soja é um investimento de alto risco na metade sul do Rio Grande do Sul, onde a falta de chuvas durante o verão gera frequentes quebras de safra.

Por e-mail, a Secretaria do Ambiente e Desenvolvimento Sustentável (Sema) do Rio Grande do Sul afirma que vem realizando sistematicamente, através da Fundação Estadual de Proteção Ambiental (Fepam), ações de fiscalização e combate às condutas lesivas ao meio ambiente.

Segundo a Sema, “somente nos últimos meses deste ano mais de 2 mil hectares dos biomas Pampa e Mata Atlântica foram vistoriados, os quais resultaram em embargos de área e multas que somadas ultrapassam R$ 2 milhões”. O órgão afirma ainda que “algumas propriedades fiscalizadas já haviam sofrido sanções do Ibama e não foram autuadas novamente”, e que novas ações deste tipo estão previstas para este ano.

 

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  • Fernanda Wenzel

    Fernanda Wenzel é jornalista freelancer especializada em Amazônia e meio ambiente.

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