Há uma década, o Brasil desconhece o quanto é pescado em suas regiões costeiras e marinhas. Desde então, determinadas espécies se tornaram mais vulneráveis, a frota pesqueira ainda não conta com vigilância eletrônica e a lista de peixes ameaçados recebeu novas críticas do empresariado e até do governo federal.
A cegueira sobre a pesca começou em 2009, quando foi criado o Ministério da Pesca. Problemas orçamentários e burocráticos afogaram a divulgação de estatísticas que mostravam o tamanho da pesca no país. Até então, a responsabilidade pela publicação dos números era do Ibama. Balanços realizados nos 2 anos seguintes não alcançaram todos os estados e, depois, foram congelados.
“A expectativa era de avanços no conhecimento sobre a pesca com a criação do Ministério, mas o trabalho foi descontinuado, por alegada falta de recursos. Isso impacta o setor e o governo. Não sabemos o quanto se pesca e quanto isso geraria de renda e arrecadação de impostos, e também o tamanho da atividade informal”, destacou Guilherme Dutra, diretor da Estratégia Costeira e Marinha da Conservação Internacional.
A Lei 11.958/2009 transformou a Secretaria Especial de Aquicultura e Pesca da Presidência da República em Ministério da Pesca e Aquicultura. A Secretaria havia sido instituída em 2003, a partir de uma Medida Provisória convertida em lei federal. Já em 2015, o Ministério da Pesca foi extinto e incorporado ao Ministério da Agricultura. Esse, em seguida, deu vida a uma nova Secretaria de Aquicultura e Pesca.
Manejar a pesca com olhos vendados também pode prejudicar os estoques de peixes nativos. Desde a extinção dos balanços pesqueiros no país, saltou o nível de ameaça para espécies como o budião-azul, típico do litoral sul baiano. Na região, a cerca de 70 quilômetros da costa, está o Parque Nacional Marinho de Abrolhos. Na área protegida, pescar é proibido.
A pressão que outros peixes ameaçados sofrem com a captura excessiva também segue fora das estatísticas, dizem os especialistas ouvidos pela reportagem. Uma delas é a sardinha, presença certa na cesta básica de muitos brasileiros.
“A pesca da sardinha caiu de 80 mil toneladas anuais para cerca de 15 mil toneladas ao ano. Com demanda muito maior que a oferta, quase todo o consumo interno depende de importação, de países como Marrocos e Iêmen. Isso torna o monitoramento para a espécie ainda mais importante”, ressaltou Ademilson Zamboni, diretor-geral da Oceana.
O descontrole também atingiu em cheio a pescaria da tainha. Como a indústria retirou do mar o dobro do fixado para 2018, este ano a captura do peixe foi vetada pelo Tribunal Regional Federal da 4ª Região, a partir de uma ação do Ministério Público Federal.
“Sem dados técnicos e científicos não se tomam decisões qualificadas para a gestão da pesca no país e, assim, cresce a tendência de sua judicialização. Todo esse trabalho depende de informação de base. Sem geração de dados como política pública não teremos um manejo sustentável da atividade no Brasil”, destacou Zamboni.
São justamente as pesquisas e a geração continuada de estatísticas que retroalimentam a lista de peixes ameaçados, publicada em 2014. Ela traz o risco de extinção para peixes marinhos e continentais do país. Participaram do balanço 300 especialistas do Brasil e Exterior. Mesmo assim, ela é alvo de críticas do setor privado e, agora, do governo federal.
No final de Abril, o Ministério da Agricultura pediu ao Ministério do Meio Ambiente (MMA) a suspensão da Lista Oficial de Peixes e Invertebrados Aquáticos Ameaçados de Extinção no Brasil. A justificativa foi de que ela teria gerado “grande repercussão negativa no setor pesqueiro”.
Já em maio, como mostrou ((o))eco, o secretário da Aquicultura e Pesca, Jorge Seif Junior, afirmou que a listagem de espécies aquáticas ameaçadas de eliminação foi elaborada com dados “não confiáveis”. Seif é ligado ao setor comercial e uma das empresas de sua família foi multada por transporte ilegal de cherne-poveiro, espécie criticamente ameaçada de extinção.
Em carta endereçada ao MMA, a Sociedade Brasileira de Ictiologia atacou as críticas de Seif e lembrou que ignorar a lista de peixes ameaçados “colocará em risco a conservação e uso sustentável de parcela significativa da Biodiversidade Brasileira” e pediu a “implementação de Políticas de Gestão Pesqueira participativa (…) que a longo prazo permitam o levantamento de dados cada vez mais adequados para (…) o uso sustentável da biodiversidade aquática brasileira”.
Na terça-feira (25), em audiência pública na Câmara dos Deputados, Elielma Borcem, coordenadora de Ordenamento e Desenvolvimento da Pesca Marinha da Secretaria de Aquicultura e Pesca, amenizou as críticas da pasta à lista de peixes ameaçados, mas avisou que revisá-la é uma prioridade do órgão federal. Segundo ela, a pesca não é a única fonte de impactos sobre espécies ameaçadas e a lista não pode ser usada isoladamente para o ordenamento da atividade.
“Reconhecemos o trabalho feito pelos pesquisadores, mas a portaria não poderia ter sido publicada (em 2014) de forma unilateral, mas de forma conjunta pelos órgãos de Meio Ambiente e da Pesca, além de ter sido precedida por debates públicos e setoriais que levassem a um melhor ordenamento da pesca e não a simples proibição para algumas espécies. A solução para esse impasse não será maniqueísta, pois cavar trincheiras só aprofundará o problema”, destacou.
Mãos à obra
Conforme Guilherme Dutra, da Conservação Internacional (CI), a relação de peixes ameaçados é hoje a principal ferramenta para a gestão da pesca no país, onde muitas espécies estão listadas justamente pela falta de estatísticas pesqueiras. Para ele, ou fazemos gestão qualificada e sustentável ou pescaremos “até o último peixe”.
“Cancelar a lista sem alternativa para controle da pesca é um absurdo completo. Sairemos de algo que sem dúvida precisa de atualização para o ‘nada’. Sem a lista, teremos uma exploração de rapina. Isso irá piorar a situação dos peixes e dos pescadores a partir da exaustão das espécies com maior valor comercial. E depois, recuperar estoques a partir de seu colapso é o pior cenário, pois exigirá ainda mais tempo e mais recursos”, avaliou.
“Há exemplos no Brasil de recuperação de estoques, como do pirarucu, em Mamirauá (uma Reserva de Desenvolvimento Sustentável, no Amazonas). Ele deixou a lista de ameaçados para uma exploração manejada e até exportação. Uma pesca regulada é melhor do que a ilegal”, destacou Dutra.
De olho no mar
Em operação há 12 anos no Brasil, o monitoramento da pesca por satélite permite que órgãos de fiscalização e controle saibam se um barco está apenas cruzando ou pescando dentro dos limites de uma área protegida. Caso esteja atuando em local impróprio, por exemplo dentro de um Parque Nacional, um alerta é emitido e a empresa ou pescador podem ser multados. Cada barco é identificado com um aparelho especial.
No país, há cerca de 23 mil barcos de pesca, de todos os tamanhos, e 5 mil deles deveriam estar ligadas ao Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite, gerenciado por órgãos dos ministérios da Agricultura, do Meio Ambiente e da Defesa. Com sua implantação atrasada, o PREPS está de olho em cerca de 1.500 barcos, aqueles com maior volume de carga e com pelo menos 15 metros de comprimento.
Cada embarcação usa aparelhos para rastreamento que custam R$ 5 mil, com manutenção mensal de R$ 300. Até 2020, barcos menores também devem se conectar ao programa. Um sistema testado pela Oceana, no litoral de Santa Catarina, está acompanhando 30 pequenos barcos com a ajuda de um aplicativo para celular. O modelo reduziu os valores do equipamento e da assinatura mensal para R$ 600 e para R$ 50, respectivamente.
Se o PREPS for totalmente implantado, ajudará a fiscalizar também as grandes áreas protegidas marinhas criadas em março de 2018, nos arquipélagos de Trindade (ES) e São Pedro e São Paulo (PE). Os mosaicos fizeram do país um líder em proteção de ambientes marinhos. Todavia, metas internacionais de conservação não pesam apenas o tamanho dessas áreas, mas também a qualidade de suas implantação e gerenciamento.
“A grande maioria das embarcações monitoradas respeita os limites das Unidades de Conservação. No entanto, o monitoramento é importante para que as providências cabíveis sejam adotadas contra quem comete infrações. Isso evita que a impunidade incentive novas infrações, garantindo melhores resultados para a conservação e para a pesca”, ressaltou Leandro Zago, servidor do Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade cujo mestrado, pela Universidade Federal de Santa Catarina, se debruçou sobre a operação do PREPS.
Todos os Parques Nacionais e outras Unidades de Conservação federais acessam o sistema. Áreas protegidas estaduais e municipais ainda não. Não ser aberto ao público e não enxergar embarcações ilegais, sejam nacionais e estrangeiras, são outras pedras no caminho da implantação do programa de rastreamento no país.
“As informações do PREPS são sigilosas, acessadas apenas por órgãos governamentais. Assim, são pouco usadas para uma gestão ampla da pesca no país. Mas, a tendência global é a de que seja oferecida maior transparência para esses dados, mesmo que muitos pescadores ainda vejam os sistemas de rastreamento apenas como geradores de multas”, destacou Zamboni, da Oceana.
Aberta ao público, a Global Fishing Watch exibe a movimentação mundial de pesqueiros associando vários sistemas de rastreamento. Peru, Chile e Indonésia já estão conectados, enquanto Costa Rica, Panamá e Namíbia se movimentam para fazer o mesmo. “Alguns países alegam segredo industrial, soberania e segurança nacionais para não abrir suas informações. Mas Chile e Peru, grandes produtores mundiais de pescado, abriram seus dados e não foram prejudicados”, contou o diretor da organização não governamental.
Outro desafio é conter a pesca ilegal, inclusive de embarcações estrangeiras, na faixa de mar sob responsabilidade do Brasil. São cerca de 3,6 milhões de quilômetros quadrados, área maior do que a Índia. A fiscalização sobre estrangeiros nessas águas cabe à Marinha. Barbatanas de tubarões e atum são alguns dos itens buscados pelas frotas piratas. Países como Argentina, Uruguai e Indonésia costumam abrir fogo contra barcos estrangeiros pescando em suas águas. O Atlântico Sul é muito procurado por barcos de países asiáticos, como China e Japão.
No Brasil, o atum é desembarcado especialmente no Rio Grande do Norte e no Ceará, onde são produzidas cerca de 30 mil toneladas ao ano, somando mais de R$ 600 milhões. A captura do peixe para a elaboração de sushi e sashimi quintuplicou entre 2010 a 2017, aponta a Comissão Internacional para a Conservação do Atum do Atlântico. Fim do ano passado, um barco de pesca brasileiro foi atacado por uma embarcação chinesa em uma disputa por atum, em águas internacionais.
No mesmo período, também como reportou ((o))eco, a Pará Alimentos do Mar Ltda, de Belém (PA), foi condenada pela Justiça Federal a pagar R$ 20 mil a entidades ambientalistas ou culturais públicas por comercializar ilegalmente barbatanas de tubarão. Pratos exóticos como sopas com barbatanas e a venda da cartilagem matam estimados 100 milhões de tubarões ao ano, no mundo todo. Das 88 espécies brasileiras, 38 estão ameaçadas de extinção.
“A Marinha do Brasil opera nas águas jurisdicionais brasileiras, com emprego de navios, helicópteros e, eventualmente, conta com apoio de aviões da Força Aérea Brasileira, atuando em apoio aos órgãos responsáveis pela repressão desses ilícitos. As fiscalizações e o combate à pesca por embarcações estrangeiras não autorizadas na Zona Econômica Exclusiva são práticas constantes das instituições responsáveis”, explicou o capitão de Fragata Rodrigo Pinheiro Padilha, encarregado da Divisão de Sistemas do Comando de Operações Navais.
Até o fechamento desta reportagem, a Secretaria de Aquicultura e Pesca não explicou sobre eventuais planos para qualificar o monitoramento da atividade no país e nem comentou quanto a uma possível retomada da publicação das estatísticas anuais para o pescado nacional.
Atualização: resposta da Seap
A Secretaria de Aquicultura e Pesca preferiu não conceder entrevista e, por email, informou que, até Dezembro deste ano, será publicada uma portaria pelo Ministério da Agricultura para a retomada do levantamento e da publicação de estatísticas pesqueiras no país. No mesmo período, segundo o órgão federal, serão homologadas novas empresas para a venda de equipamentos e também serão habilitadas mais embarcações junto ao Programa Nacional de Rastreamento de Embarcações Pesqueiras por Satélite.
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Realmente, a falta de controle sobre a pesca no Brasil, que começou com a criação do Ministério da Pesca, trouxe consequências profundas para a preservação das espécies e a sustentabilidade das práticas pesqueiras. É lamentável ver como a burocracia e as mudanças nas estruturas governamentais impactaram a transparência e a gestão da pesca.
Mais uma raposa cuidando de um galinheiro…
É necessário um trabalho sério e talvez paralparalelo junto aos pescadores, às IES e outros órgãos de pesquisa para balisar os dados reais, a exemplo dos aspectos sócias, estrutura/configuração da Pesca, reestruturação das associações/cooperativas/colônias etc. Para que haja um fortalecimento do setor como um todo, em especial da Pesca artesanal que também está sob o risco de sua extinção.