Não é novidade que a Mata Atlântica perdeu uma área enorme e que muito do que resta está fragmentado e ainda em regeneração. De fato, é provável que muito pouco do que sobrou possa ser considerado como florestas maduras que chegaram ao pico de sua riqueza, diversidade e biomassa.
À perda de habitat se soma à perda de espécies devido à caça, muitas vezes justificada com base em razões sociais ou culturais (como a praticada por grupos indígenas). Afinal, no Brasil a pobreza justifica tudo, até caçar usando cartuchos que valem, cada um, mais que um quilo de frango…
O resultado é que muitas espécies estão ausentes de unidades de conservação que poderiam perfeitamente manter populações, caso um número adequado de indivíduos reintroduzidos e caçadores fossem reprimidos. Entre as espécies regionalmente extintas em áreas protegidas da Mata Atlântica estão araras, queixadas, antas, cotias, jacutingas, macucos, muriquis, pacas, papagaios e outros que, além de representarem parte importante da biomassa de uma floresta saudável, também têm um papel importante em moldar sua dinâmica como predadores e dispersores de sementes.
Reintroduções de espécies localmente extintas não são novidade, com exemplos brasileiros como micos-leões-dourados no Rio de Janeiro e bugios no Parque Nacional de Brasília, além de araras, papagaios e outras aves em propriedades privadas em São Paulo (veja as publicações aqui). Há um belo projeto em andamento com papagaios-de-peito-roxo no Parque Nacional das Araucárias. O último chama a atenção por ser um dos poucos em andamento em uma unidade de conservação federal, já que, por questões burocráticas, a vasta maioria das solturas para reforço de populações reduzidas e reintroduções (pelo menos as feitas de forma adequada) ocorre em áreas privadas.
Uma das espécies para a qual reintroduções são a chave para a sobrevivência no longo prazo é o mutum-do-sudeste (Crax blumenbachii). Originalmente encontrado nas florestas de baixada e encostas baixas entre os arredores da cidade do Rio de Janeiro e o Recôncavo Baiano, incluindo áreas hoje em desertificação nos vales do Rio Doce e do Jequitinhonha mineiros, essas grandes aves sofreram um declínio brutal desde que o pirata Anthony Knivet as encontrou nos arredores de Cabo Frio no final do século XVI.
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Essa região foi tremendamente destruída na esteira da “abertura” de áreas para a pecuária, plantações de açúcar e cacau, e mais recentemente, principalmente no Espírito Santo e na Bahia, com o “desenvolvimento” atrelado à abertura das rodovias BR 116 e BR 101. O resultado é que a antiga “hiléia bahiana” (na realidade também capixaba e fluminense) que ainda existia na década de 1940, com árvores gigantescas onde pousavam araras-vermelhas, hoje é um fragmento do que já foi. E com a floresta se foram seus habitantes.
Os mutuns existem hoje apenas no conjunto formado pela Reserva Biológica de Sooretama, Reserva Natural da Vale e algumas propriedades adjacentes, como a Fazenda Cupido (onde fiz esta foto), no Espírito Santo, e na Reserva Biológica de Una, Parque Nacional do Descobrimento, além de uma área privada em Ituberá, na Bahia. Talvez existam exemplares em outras áreas, como os parques nacionais Pau Brasil e Monte Pascoal (onde a espécie ocorreu no passado), mas não há registros recentes. Apenas os mutuns capixabas são numerosos, com algumas estimativas superando 500 exemplares, uma rara boa notícia para uma espécie considerada em perigo.
Não precisaria ser assim. Os mutuns estariam melhor se uma experiência mineira fosse amplamente replicada. A Crax – Sociedade de Pesquisa da Fauna Silvestre tem um histórico de tremendo sucesso na reprodução dos mutuns (e outras aves) em cativeiro e na sua reintrodução na natureza, com populações estabelecidas em três áreas, conforme descrito no Plano de Ação elaborado em 2004 pelo atual ICMBio e especialistas.
O mesmo plano reconheceu a importância das reintroduções como estratégia para melhorar as perspectivas da espécie, inclusive sugerindo várias unidades de conservação que poderiam receber aves produzidas pelos criadores licenciados. Infelizmente, depois de cinco anos de implementação do plano, apenas um projeto de reintrodução foi iniciado.
Como tantas iniciativas do tipo, o projeto contou apenas com financiamento privado e foi desenvolvido em uma área privada (a fantástica Reserva Ecológica Guapiaçu – REGUA) com aves produzidas pela Crax, uma instituição privada. A participação estatal se resumiu à nem sempre ágil emissão de guias de transporte.
No final, o projeto libertou um total de 48 aves equipadas com rádio transmissores, com um notável índice de sobrevivência e com o primeiro mutum fluminense nascido em vida livre em talvez mais de meio século registrado este ano.
Infelizmente o projeto foi interrompido no meio por um desacordo entre as partes. Isso é ruim para os mutuns, pois a população na REGUA ainda é pequena demais para ser autossustentável, e também levanta a questão de espécies que têm a maior parte de sua população em mãos privadas. Há necessidade de uma participação realmente efetiva do ICMBio e seus centros para assegurar que projetos deste tipo tenham tanto os recursos de que necessita como continuidade — afinal se gasta dinheiro de compensação ambiental com tanto papel e bobagem.
Talvez um dia mutuns-do-sudeste sejam vistos por visitantes não apenas em Sooretama e Una, mas também no Monte Pascoal, Descobrimento, Poço das Antas, União e mesmo Tijuca, além de diversas RPPNs. Mas para isso acontecer é preciso mais vontade.
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