Análises

Padre, biopiratas variados e um duque inglês salvaram o Milu

Uma rara espécie de cervos, original da China e na Manchúria, escapou da extinção graças a práticas que vão contra o manual brasileiro.

Fabio Olmos ·
26 de novembro de 2013 · 11 anos atrás

Um grupo de Milus descansa sob o sol do sul da Inglaterra, país onde estes refugiados ambientais foram salvos da extinção. Foto: Fabio Olmos
Um grupo de Milus descansa sob o sol do sul da Inglaterra, país onde estes refugiados ambientais foram salvos da extinção. Foto: Fabio Olmos

O Milu (Elaphurus davidianus) é o único representante vivo do seu gênero, um grupo de cervos amantes dos pântanos originalmente encontrados no que é hoje o leste da China, Manchúria e sul do Japão.

Alterações ambientais na transição Pleistoceno-Holoceno e a expansão das populações humanas que converteram a maior parte das áreas inundáveis em plantações (os arrozais da China datam de pelo menos 8.300 anos atrás) e sua fauna em itens da variada culinária chinesa.

O último ato de um longo declínio aconteceu quando o último Milu selvagem foi morto no litoral do Mar Amarelo em 1939. Felizmente, os imperadores chineses gostavam de ter parques murados onde bichos ornamentais passeavam e podiam ser ocasionalmente caçados e no século XI a dinastia Yuan estabeleceu um parque imperial em Nanyuang, uma área brejosa de 200 km² ao sul de Beijing (Pequim). Esta foi murada e protegida do mundo exterior. Foi ali que uma manada de Milus sobreviveu em semi-cativeiro.

Em 1864 o missionário lazarista e grande naturalista Père Armand David “descobriu” os Milus em Nanyuan, segundo consta, pulando o muro. Um entusiasta da natureza (foi o descobridor do panda-gigante, entre outros bichos), Armand rapidamente percebeu que estava diante de um animal desconhecido e convenceu (alguns dizem subornou) os guardas imperiais para obter as peles e esqueletos de um casal adulto e um macho jovem. Este ato de espionagem científica por parte de uma potência colonial contra um poder submergente rendeu a Armand a homenagem de ter seu nome associado ao do Milu, também conhecido como Cervo do Padre David.

Mais convencimentos permitiram que mais Milus, desta vez vivos, fossem exportados para coleções e zoológicos na França, Reino Unido e Alemanha. No Brasil de hoje isso seria chamado de biopirataria.

O que foi uma boa coisa porque, em 1894-95, uma inundação destruiu o muro do parque e os cervos, fugindo das águas, acabaram na barriga do campesinato. Apenas 20 ou 30 sobreviveram.

O golpe final veio durante a Rebelião Boxer em 1900, quando tropas ocuparam o parque e comeram os últimos Milu. Parece que sobrou um ou outro, e algumas versões da história dizem que o último Milu na China morreu em 1922.


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O fim do Milu não passou despercebido e Herbrand Russell, 11º Duque de Bedford, conseguiu reunir os últimos 18 exemplares vivos (apenas 11 se mostraram férteis) para formar um núcleo de reprodução em sua propriedade em Woburn Abbey.

Note que estamos falando de um indivíduo, e não de governos, tomando a iniciativa de salvar uma espécie.

Contra as expectativas, as agruras de duas guerras mundiais e o que entendidos modernos diriam sobre diversidade genética e populações mínimas viáveis, a manada cresceu e indivíduos foram enviados a outras coleções. Na verdade, os Milu ou Père David’s Deer, como os chamam no Reino Unido, são hoje criados em fazendas para produzir venison (como os bichos de minha foto).

Foi apenas em 1985 que os primeiros Milus foram enviados de volta à China para estabelecer populações semi-cativas, a primeira em Nanyuang. Outros núcleos foram estabelecidos e hoje há 53 manadas de Milu na China, onde a taxa de crescimento populacional é de 15 a 20% ao ano (Milus não estudaram genética e não devem saber o que é depressão endogâmica).

A história do Milu mostra que o estabelecimento de populações cativas pode salvar espécies da extinção. E como a “biopirataria” (pelo menos como definida por aqui) em países que não dão a mínima para a conservação devido à sua situação política, social e econômica pode ser uma boa coisa para os bichos e plantas em questão.

Há inúmeros casos onde a coleta de animais e plantas para o cativeiro ajudou a dizimar populações e levou espécies à extinção na natureza, como aconteceu com a famosa ararinha-azul, embora a hidrelétrica de Sobradinho tenha muita culpa nessa história ou quase (veja aqui, aqui e aqui).

Mas quando a situação é desesperada, como em países onde o negócio é o tal “progresso” no estilo anos 70, o biopirata de hoje pode ser o herói de amanhã, salvando algo que não pode ser substituído. Seja um Milu ou um fungo de solo que produz um fármaco que salva vidas.

No Brasil, o curioso é que espécies locais não valem o suficiente para que um órgão licenciador negue a conversão das poucas áreas onde vivem em condomínios ou hidrelétricas superfaturadas. Por outro lado, provocam um circo envolvendo a Polícia Federal, IBAMA e palhaços nacionalistas caso alguém seja pego contrabandeado peixinhos, aranhas, serpentes, fungos, solo, etc. para o exterior.

Lamento que bichos como o mutum-de-alagoas, extinto na natureza graças ao Proálcool e à cultura local de matar o que se move, não tenham sido contrabandeados para fora do país e populações cativas estabelecidas lá fora. Teríamos mais com que recuperar a espécie que os três indivíduos salvos por um empresário do Rio de Janeiro. O governo, como de praxe, ficou olhando a espécie desaparecer.

Muito coerente este nosso Brasil, que gosta de apontar o dedo para “ameaças” vindas do exterior que cobiçam nossa biodiversidade, mas onde governos “de vanguarda” demonstram absoluta e completa falta de vergonha ao deixarem nossas áreas protegidas na penúria enquanto gastam os tubos em agências de publicidade, estádios de futebol. O futuro julgará quem são os vilões da história.

 

 

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  • Fabio Olmos

    Biólogo, doutor em zoologia, observador de aves e viajante com gosto pela relação entre ecologia, história, economia e antropologia.

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