“Roads are seeds of tropical forest destruction“.
(Estradas são as sementes da destruição da floresta tropical.)
Thomas Lovejoy
Desde a primeira vez que ouvi esta frase em uma palestra entendi que uma recém-proposta disciplina, a Ecologia de Rodovias, ramo da grande Ecologia, seria bastante aplicável no Brasil, pois, entre tantas coisas trazidas da América do Norte e Europa, o Brasil adotou o Sistema Rodoviário como o principal modal de transporte para o desenvolvimento socioeconômico do país.
A origem das Rodovias no Brasil se deve ao slogan de campanha “Governar é abrir estradas” de Washington Luís – o estradeiro – que em 1920 utilizou esta marca em sua campanha para Governador do Estado de São Paulo (1920 – 1924) e posteriormente para Presidente da República (1926 – 1930). Durante suas gestões, foi responsável por grandes marcos no desenvolvimento do modal rodoviário no país, mas principalmente no Estado de São Paulo. Seus próximos cinco sucessores do governo paulista perpetuaram a abertura de estradas e rodovias durante suas gestões, com destaque a importantes obras interligando cidades do interior paulista.
A década de 1930 foi marcante pelo surgimento de importantes rodovias, como a Rio-São Paulo, Rio-Petrópolis e Itaipava-Teresópolis. Estas marcaram o início da implantação de uma malha rodoviária moderna no país, que ganharia impulso nas décadas seguintes, espelhando-se em exemplos de países com economias bem sucedidas, como as autobahns alemãs e highways norte americanas que escoavam mais facilmente seus produtos, barateavam mercadorias e integravam cidades.
Ao mesmo tempo em que nas décadas de 1920 e 30 foram abertas as primeiras estradas e rodovias¹ brasileiras, nos Estados Unidos da América, foram publicados os primeiros artigos científicos sobre impactos destes empreendimentos sobre o meio ambiente natural – um abismo temporal no conhecimento teórico e aplicado sobre o assunto. Estes estudos apontavam uma grande perda de biodiversidade causada pelo atropelamento de animais silvestres na malha rodoviária do país².
Pesquisadores de países desenvolvidos começaram a reconhecer impactos ambientais decorrentes da implantação e operação das rodovias – como citado por Willian Laurence, “estava aberta a caixa de pandora”.
Danos generalizados
Da mesma forma que na mitologia grega, a abertura da caixa libertou – ou melhor, escancarou – todos os males do mundo, a implantação de Rodovias afeta direta ou indiretamente a integridade biótica, causando danos significativos. Estes incluem a dispersão de espécies invasoras por meio dos corredores lineares, alterações de ciclos hidrológicos devido a interrupções na drenagem, mudanças microclimáticas devido à pavimentação – que tende a aumentar as temperaturas locais e diminuir a umidade do ar – poluição atmosférica devida à produção de gases tóxicos e material particulado, produção de ruído, contaminação das águas e do solo, perda e degradação de habitats e fragmentação de ambientes naturais.
Especificamente para a fauna silvestre, há dois impactos principais: a perda de espécies por atropelamento, que é direto, visível e mensurável por conta das carcaças presentes em faixas de rolamentos e acostamentos, e o efeito barreira, um impacto indireto e não mensurável que resulta do não encorajamento dos indivíduos em atravessar rodovias, consequentemente trazendo problemas relativos ao isolamento e perda de variabilidade genética, eventualmente ocasionando extinções locais e regionais.
Países como Estados Unidos e Canadá, e da União Europeia, possuem um robusto acervo de estudos, de longo prazo inclusive, monitorando animais em rodovias. Estes produziram estimativas assombrosas, como 1 milhão de vertebrados terrestres sendo atropelados diariamente na malha rodoviária dos Estados Unidos, um dado perturbador mas justificável pela alta densidade de rodovias e animais do país.
Mas, e no Brasil? Sendo a Ecologia de Rodovias uma disciplina tão recente e ainda com poucos estudos conclusivos por aqui, o que está acontecendo com a nossa fauna desde o slogan retumbante do Presidente Washington Luis? Quais espécies são as mais afetadas? Os atropelamentos ocorrem mais com a fauna generalista porque são mais encorajadas a atravessar as rodovias? E as espécies especialistas, as essencialmente florestais, que evitam rodovias e ficam isoladas, separadas por 20-40 metros de plataforma pavimentada? Qual a viabilidade populacional de algumas espécies afetadas por rodovias seja por quaisquer dos impactos citados? O que acontecerá com o lobo guará, a onça parda, uma vez que, p. ex. para algumas rodovias paulistas é conhecida a significativa perda de indivíduos por atropelamento?
Estas questões são importantes não só pela dimensão da malha rodoviária brasileira, mas também porque rodovias já impactam áreas protegidas únicas. Por exemplo, o Parque Estadual do Morro do Diabo é cortado pela SP-613, enquanto as Reservas Biológicas de Sooretama (ES) e União (RJ) o são pela BR 101.
Mais que isso, a proposta para reabertura da Estrada do Colono, no Parque Nacional do Iguaçu (PR) mostra como a ciência ainda passa longe das políticas públicas, uma simples inclusão do termo “estrada-parque” na Lei do SNUC – Sistema Nacional de Unidades de Conservação, “resolve” todos os problemas e impactos ambientais de uma estrada dentro da área inatingível de um Parque Nacional, simples assim.
Segurança em risco
Além da necessidade de estudos e diagnósticos, temos problemas recorrentes com fauna silvestre e doméstica, todos os dias nas nossas rodovias, os animais adentram as faixas de rolamento, colocando em risco a segurança do usuário. Este é um erro grave tanto da administração pública como privada de Rodovias, e é neste aspecto que há possibilidades de tomadas de decisões efetivas em relação à implantação de medidas mitigadoras para atropelamentos: a segurança do usuário. A administração rodoviária está preocupada, acima de tudo, em diminuir acidentes.
A pesquisa científica gerou diversas medidas de mitigação, como as passagens de fauna inferiores e superiores, cercas, placas de sinalização, redutores de velocidade físicos e eletrônicos, sistemas de detecção animal e várias práticas de conserva da própria rodovia que colaboram para evitar atropelamentos e reestabelecer a conectividade estrutural e funcional entre ambientes cortados por empreendimentos rodoviários.
Com certeza tais medidas, muitas delas trazidas de outros países, deverão ser aos poucos ajustadas para cada grupo faunístico específico e para cada bioma brasileiro. Com quase um século de pesquisas, o profissional da conservação e os engenheiros rodoviários brasileiros não precisam inventar a roda, eles somente devem ajustá-la e inová-la, quando necessário.
Apesar dos problemas relatados, ainda temos um freio cultural. De forma geral, os profissionais da conservação, principalmente, tem tanto medo de testar, errar e de ser criticado que, no fim das contas (uma conta cara por sinal), o argumento de “não fazer” baseado na falta de publicações, insuficiência de dados e validações estatísticas é maior do que o fato real de que “a nossa biodiversidade está se esvaindo no asfalto”. Isso é difícil de ser compreendido uma vez que no universo da Ecologia de Rodovias, novos conhecimentos devem ser aplicados, testados e ajustados, como em um ciclo virtuoso, até que se atinja o objetivo planejado.
É recorrente iniciar um assunto sobre medidas de mitigação para atropelamentos e ouvir: “mas e os predadores que vão ficar espreitando e predando animais dentro das passagens de fauna? Li um relato de uma onça parda comendo tatus nessas passagens!” – como se isso – se e quando ocorre – justificasse não implantar as estruturas e fosse pior que deixá-las sendo atropeladas e causando acidentes.
“Os custos de implantação de cercas e passagens oneram muito a obra.” Pois é, e quantos anos uma rodovia permanece na paisagem? É uma cicatriz permanente que impacta a fauna desde a sua implantação até quanto durar a sua operação. Implantação de medidas de mitigação não é um luxo exclusivo de grandes obras rodoviárias ou rodovias concessionadas, elas são urgentes, necessárias e na verdade oneram, no máximo, uma casa decimal do valor total do empreendimento.
Estudos sobre o custo benefício da implantação de medidas mitigatórias para atropelamentos mostram que os empreendedores poupam dinheiro com a diminuição de acidentes³, pois nesses casos eles devem, impreterivelmente, indenizar os usuários.
A única certeza que temos é que “governar é abrir estradas” está arraigado nas nossas gestões públicas nos âmbitos federais e estaduais. Em pleno século XXI, frequentemente testemunhamos a abertura de novas rodovias e, principalmente obras de duplicações, ampliando, sobremaneira, o avanço do pavimento impermeável nas áreas naturais do nosso país. Enquanto isso, pessoas e animais morrem todos os dias em acidentes rodoviários perfeitamente evitáveis.
1. O nome “Ecologia de Estradas” é a tradução exata do inglês Road Ecology. Entretanto, o Código Brasileiro de Trânsito diferencia “estrada” de “rodovia”. Estrada é classificada como uma via rural sem pavimentação, enquanto que a rodovia é necessariamente uma via rural pavimentada. Dessa forma, o termo “Ecologia de Rodovia” é mais bem empregado para tratar das vias principais e secundárias no âmbito municipal, estadual e federal e é com base nessas rodovias que a maioria dos estudos sobre atropelamento de fauna silvestre e implantação e monitoramento de medidas de mitigação são realizados.
2. STONER, D., 1925. The toll of automobile. Science 61, 56-58.
3. HUIJSER, M.P., ABRA, F.D., DUFFIELD, J.W., 2013. Mammal road mortality and cost benefit analyses of mitigation measures aimed at reducing collisions with Capybara (Hydrochoerus hydrochaeris) in São Paulo State, Brazil. Oecologia Australis, 17: 129-146.
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