Reportagens

Agonia da fauna pantaneira chega à sede do Dnit

Organizações ambientalistas transportam carcaças de animais mortos em rodovias até a sede da autarquia federal, em Mato Grosso do Sul, para cobrar soluções

Michael Esquer ·
15 de maio de 2023

Mais de 10 mil colisões veiculares contra animais silvestres. Este foi o número registrado em estudo de pesquisadores do Instituto de Conservação de Animais Silvestres (Icas) após a análise dos dados de três anos (2017-2020) de monitoramento em rodovias de Mato Grosso do Sul. Desse índice, 40% envolveu animais que poderiam causar danos materiais significativos – e igualmente perigosos – para seres humanos, como o tamanduá-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) e a anta (Tapirus terrestris). 

Para cobrar soluções e protestar contra a realidade que aflige a fauna do estado, organizações ambientalistas depositaram animais mortos na sede do Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes (Dnit), em Campo Grande (MS), nesta segunda-feira (15). “É importante lembrar que estes acidentes ameaçam também a vida humana”, disse Luciana Leite, coordenadora geral da Chalana Esperança, organização que realizou a intervenção na sede da autarquia federal juntamente com o Instituto SOS Pantanal, Instituto LiBio e o movimento Fridays for Future Brazil

“O Mato Grosso do Sul, por exemplo, entre abril de 2013 e novembro de 2018 registrou 470 atropelamentos de anta em 32 rodovias estaduais. Neste período, foram 55 pessoas feridas e 23 óbitos resultantes destas colisões com antas. Além do risco à vida e à integridade física dos motoristas, os acidentes também provocam prejuízos materiais”, completou Leite. 

As carcaças utilizadas no protesto, contam as organizações, foram coletadas nos últimos meses na BR-262, também conhecida como “rodovia da morte” — justamente pelo alto índice de atropelamento de fauna. O ato dá início à campanha “Estradas Seguras Para Todos”, que procura chamar a atenção do poder público para a colisão entre veículos e animais silvestres nas estradas nacionais.

Segundo a coordenadora geral da Chalana Esperança, motoristas que cumprem suas obrigações legais e fiscais têm veículos danificados por conta da negligência e inação do poder público. “Esta falta de vontade política e investimento tem custado caro aos motoristas e à vida silvestre. E nós, na condição de cidadãos e biólogos da conservação, estamos cansados de pagar esta conta”, enfatizou Luciana.

BR-262: a rodovia da morte

A campanha denuncia, sobretudo, a inação do Dnit diante da realidade vivida pela fauna do estado na BR-262, rodovia gerida pela autarquia federal que corta o Pantanal sul-mato-grossense – o estudo que abre este texto também monitorou trechos da rodovia. Como mostrou ((o))eco, uma onça-pintada foi encontrada morta na BR-262 no início do ano. Mais recentemente, outro felino da mesma espécie também foi morto na rodovia. 

Segundo o Instituto Homem Pantaneiro (IHP), pelo menos 17 onças-pintadas morreram atropeladas na BR-162 entre 2016 e janeiro de 2023. A campanha denuncia que o Dnit já possui relatórios com dados robustos sobre atropelamento de fauna, além de um plano de mitigação já estruturado para a rodovia. Entretanto, nada teria sido feito até então. 

Em carta, as organizações endereçam três exigências à autarquia federal: a implementação do plano de mitigação de colisões veiculares com fauna já submetido ao Dnit para a BR-262; a consideração por novos empreendimentos rodoviários e futuros investimentos de estradas mais seguras para todos, seguindo orientações consistentes baseadas em evidências técnico-científicas – como o manual desenvolvido pelo governo de Mato Grosso do Sul em parceria com o Icas –; e que as considerações feitas também sirvam à construção da Rota Bioceânica.

Para coletar assinaturas e endossar o pedido e apelo ao poder público, a campanha “Estrada Segura para Todos” também lançou um abaixo-assinado. A plataforma contava com cerca de 200 assinaturas nesta tarde.

“Um dos argumentos para a inação do Dnit é o custo da implementação de medidas de segurança nas nossas estradas. Entretanto, o custo desses acidentes está atualmente sendo pago pelos motoristas e pela nossa fauna. A estimativa é que os acidentes custam, em média, aos motoristas brasileiros que sofrem acidente com a fauna silvestre, cerca de R$4,5 mil por colisão, com valores variando a depender do tamanho do animal e velocidade do veículo. Por ano, os prejuízos somados ultrapassam os 5 milhões de dólares”, diz a carta, que também foi assinada pelo Observatório Pantanal, Grupo de Resgate de Animais em Desastre (Grad), Icas, Instituto Espaço Silvestre, Onçafari e outras instituições e coletivos que juntos somam mais de 50 organizações. 

Onça-pintada morta após atropelamento, em janeiro, na BR-262, em Mato Grosso do Sul. Foto: Polícia Militar Ambiental (PMA)

O que diz o Dnit

A reportagem entrou em contato com o Dnit para questionar sobre os pedidos feitos no documento e pela intervenção desta segunda. Por meio de nota, a assessoria da autarquia federal informou que, para os casos de atropelamento de fauna nas rodovias federais, investe nos Programas Ambientais de Atropelamento de Fauna, “no qual a sensibilização, o monitoramento e as medidas mitigatórias são abrangidas”.  

Para isso, segundo o Dnit, são identificadas previamente as características faunísticas e interação rodoviária. “Por meio de estudos para verificar a presença de habitats especiais e espécies de vertebrados a eles associadas, sítios reprodutivos, áreas de aglomerações da fauna, bem como a adoção de medidas como sinalização nas rodovias, passagens de fauna, (adaptadas às necessidades) artes especiais, corredores ecológicos e ações socioambientais”, acrescentou. 

No caso da BR-262, em Mato Grosso do Sul, o Dnit informou que foram instalados redutores de velocidade, placas de sinalização, cercas condutoras e passagens superiores de fauna. “Nesse trecho, a rodovia passa pela região do Pantanal sul-mato-grossense, onde o monitoramento dos casos de atropelamento da fauna demonstrou a necessidade de intervenção do poder público, visando a diminuição do conflito entre fauna e os veículos que trafegam pela rodovia”, explicou. 

Por fim, a autarquia disse que está em andamento, por iniciativa da Superintendência Regional de Mato Grosso do Sul (SR/MS), a contratação de monitoramento dos atropelamentos no segmento entre Campo Grande (MS) e Anastácio (MS). 

Sobre o assunto, o superintendente regional do Dnit em Mato Grosso do Sul, Euro Nunes Varanis Júnior, disse que o plano de mitigação de colisões veiculares contra fauna na BR-262 ainda não foi executado pela falta de avaliação e autorização do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e Recursos Naturais Renováveis). 

“Ano passado apresentamos o plano de mitigação de acidentes de Aquidauana até Corumbá. Ele foi feito pela empresa Via Fauna. Agora, estamos esperando a aprovação do Ibama para saber se aquelas medidas propostas podem ser implementadas ou não”, disse o superintendente à mídia local. 

Superintendente regional do Dnit em Mato Grosso do Sul disse que plano de mitigação de colisão veiculares contra fauna na BR-262 aguarda análise do Ibama. Foto: Hei Nascimento

Atualização: Ibama responde

((o))eco procurou o Ibama para questionar se há previsão para a análise do plano de mitigação de atropelamento de fauna na BR-262. À reportagem, o órgão federal confirmou o recebimento do plano apresentado pelo Dnit. “O Ibama analisou o conteúdo apresentado e solicitou complementação de informações, que já foi apresentada”, disse em nota. 

Neste momento, a equipe do órgão que é responsável por conduzir o licenciamento ambiental da rodovia analisa o plano de “forma prioritária”, sendo a autorização de sua execução “prevista para ocorrer ainda em maio”, informou. 

Problema crônico no estado 

“Esse problema é sistêmico, não se limita apenas à rodovia BR-262. Diversas outras estradas federais e estaduais pelo Mato Grosso do Sul acumulam acidentes envolvendo a fauna silvestre. Se o poder público não se sensibiliza com os milhares de animais mortos todos anos, deveriam ao menos se preocupar com as inúmeras vidas perdidas nestas rodovias”, denunciou o biólogo Gustavo Figueirôa, que é diretor de Comunicação e Engajamento do Instituto SOS Pantanal.

Nesse sentido, a campanha denuncia que o atropelamento de fauna persiste em toda a malha rodoviária estadual de Mato Grosso do Sul, sendo este problema agravado pela expansão crescente das obras nas estradas – o que, consequentemente, aumenta o fluxo de carros e caminhões em áreas de concentração de fauna silvestre. Como mostrou ((o))eco, o Fundo de Desenvolvimento do Sistema Rodoviário do Estado de Mato Grosso do Sul (Fundersul) movimentou R$ 4,75 bilhões entre 2015 e 2022. Apenas para 2023, o Fundo prevê R$ 1,4 bilhão, sendo R$ 1 bilhão (72%) para implantar, asfaltar e reformar rodovias.

A campanha alerta que não há informação sobre qual fração deste recurso foi utilizado para mitigação de colisões veiculares com fauna silvestre. 

A inação e falta de transparência do “Estrada Viva” — programa do governo de Mato Grosso do Sul — também é outra pauta denunciada pelas organizações. Lançado oficialmente há cerca de sete anos, a iniciativa prevê o monitoramento e ações de redução de atropelamento de animais selvagens nas rodovias do estado. Entretanto, pouquíssimas ações mitigatórias teriam sido implementadas, denunciam as organizações.

Organizações enfatizam que a mitigação de colisões veiculares contra fauna beneficia não apenas os animais, mas também motoristas e passageiros, que muitas vezes são vítimas fatais nestes mesmos acidentes. Foto: Leonardo Merçon

O que diz o estado

((o))eco entrou em contato com a Agência Estadual de Gestão de Empreendimentos (Agesul) de Mato Grosso do Sul, que foi quem desenvolveu o programa Estrada Viva. À reportagem, a Agência disse que a iniciativa trabalha em dois eixos: monitoramento de rodovias e novos projetos rodoviários. “Atualmente trechos de nove rodovias são monitorados pelo Estrada Viva: MS-040, MS-382, MS-178, MS-339, MS-345, MS-450, MS-180, MS-473 e MS-258”, informou a Agesul, por meio de nota.  

Através desse trabalho, disse a Agência, técnicos do programa contabilizam espécies atropeladas para identificar os principais pontos de passagem dos animais e propor medidas preventivas de mitigação. “Na MS-040, que liga Campo Grande a Santa Rita do Pardo, por exemplo, esse monitoramento já resultou na implantação de cercas de passagem de fauna no km 30, além da instalação de placas de sinalização vertical e de LRVs (Linhas de Redução de Velocidade)”, acrescentou. 

Na MS-382, que liga Guia Lopes da Laguna à Bonito, a Agesul disse que foram instaladas cercas guias condutoras de fauna silvestre. “No trecho entre os rios Formoso e Formosinho”, explicou a Agência à reportagem. 

Quanto a novos projetos rodoviários, a Agesul disse que já utiliza o manual de orientações técnicas para mitigação de colisões veiculares com a fauna silvestre nas rodovias de Mato Grosso do Sul, que foi desenvolvido pelo Estado em parceria com o Icas.  

“Entre as obras que já utilizam as diretrizes do manual estão a MS-345 (Estrada do 21), a MS-382 (Baía das Garças) e a Rodovia do Turismo, todas na cidade de Bonito. Nessas três rodovias estão sendo instalados dispositivos de segurança”, concluiu a Agência. 

“Temos de dar um basta”

Para o ativista do movimento Fridays for Future Brasil, Gabriel Adami, “as pessoas não podem mais aguentar caladas a pavimentação das rodovias sem as devidas medidas de mitigação no Mato Grosso do Sul”. “Temos de dar um basta nessa tragédia e o ato em defesa de Estradas Seguras Para Todos é, justamente, uma das vozes coletivas que se propõe a isso, a escancarar o problema por meio da mobilização da sociedade civil”, declarou.

Segundo os idealizadores da campanha “Estradas Seguras Para Todos”, a intervenção das carcaças dos animais mortos foi o primeiro passo para trazer à tona a realidade que aflige centenas de quilômetros da BR-262. A carta encaminhada ao Dnit e o abaixo-assinado dão seguimento a esse objetivo, assim como a denúncia quanto à sistemicidade do atropelamento de fauna nas demais rodovias do estado — parte delas estaduais. 

“É desolador assistir tantos animais atropelados nas estradas todos os dias. O pior é saber que esse número é subestimado, pois mais da metade dos animais morrem longe da pista e raramente são encontrados. Já passou da hora de o poder público implementar as medidas de mitigação para evitar que nossa fauna continue sendo exterminada”, completou Raquel Machado, presidente do Instituto LiBio. 

Em carta encaminhada ao Dnit, mais de 50 organizações cobram a implementação do plano de mitigação contra atropelamento de fauna na BR-262. Foto: Hei Nascimento

*Atualizada às 18h, do dia 15/05/2023, com manifestação do Ibama

  • Michael Esquer

    Jornalista pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), com passagem pela Universidade Distrital Francisco José de Caldas, na Colômbia, tem interesse na temática socioambiental e direitos humanos

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