Depois de um período de silencio, desde a última matéria publicada no blog, em 09/07/2014, segue mais um texto, agora escrito por Allison Devlin, bióloga norte-americana que está fazendo o seu projeto de doutorado sobre as onças-pintadas do Pantanal. Para que ela pudesse se sentir mais à vontade para escrever, eu pedi que o fizesse inicialmente em Inglês, depois eu traduzi o artigo, da forma mais fiel possível, preservando o seu estilo próprio de escrever. Para melhor acomodar as ricas informações que ela nos passa, eu dividi a matéria, mais uma vez, em dois textos. Na primeira, conforme ela mesma colocou, ela escreve “com a mente”, apresentando dados sobre a metodologia usada no projeto e os aspectos estudados. A segunda parte, a ser publicada na semana que vem, ela escreve “com o coração”, contando suas vivências pessoais, ocorridas durante o tempo que ela tem permanecido em campo, em Acurizal, convivendo e aprendendo com as onças.
Antes de passar a palavra para ela, no entanto, aproveito para contar um episódio que mostra o que é conviver com as onças, literalmente, no seu quintal. Quanto chegamos em Acurizal, agora no dia 14 de julho, vi que havia um casal de caseiros novos, Claudinei e Malvina, e que eles tinham três cachorros de porte pequeno a médio. Perguntei se eles estavam fechando os cachorros dentro de casa, durante a noite, ao que eles responderam que não, pois “o patrão não deixava”. Eu os avisei que, desta forma, eles não durariam muito, pois fatalmente iriam atrair uma onça, que nessa região tem uma predileção por cachorros, e tem o hábito de vir buscá-los junto às casas. Eles não acreditaram muito no que falei, e deixaram os cachorros para fora. Pois não é que na noite seguinte a Allison acordou com os gritos da Malvina e com um alvoroço junto à casa dos caseiros? distante uns 100 metros da casa da pesquisa, onde estávamos hospedados. Dormindo em um quarto do outro lado da casa, não escutei nada, e só de manhã cedo foi que a Allison me contou que foi verificar o que estava acontecendo e a Malvina, aos prantos, disse que a onça quase tinha levado o cachorro predileto dela! Na verdade, os três cachorros só se salvaram porque a onça se atrapalhou com as cadeiras que estavam na varanda e eles conseguiram fugir para o mato, só voltando quando os seus donos os chamaram. A partir desse dia, os cachorros foram trancados em um quarto seguro durante a noite. Apesar do susto, acho que entenderam que eles é que estão morando “na casa da onça” e, portanto, são eles que tem a responsabilidade de tomar medidas que não permitam ou incentivem a aproximação excessiva desses animais nas suas casas. Só assim, com uma boa disposição das pessoas que convivem com “elas”, é que as onças vão poder continuar existindo fora das áreas protegidas.
E agora, segue o texto da Allison:
Acurizal: Passado e Presente
Água encontra montanha que encontra céu. O canto oeste mais extremo da maior área alagadiça do mundo, o Pantanal, é remoto, com uma beleza de tirar o fôlego e abriga uma riqueza impressionante de plantas e animais. A Serra do Amolar, a coroa do Pantanal, está localizada em uma região regida pelo subir e descer das águas dos rios Paraguai e Cuiabá. Aninhada na base das montanhas e limitada pelo rio Paraguai, Acurizal é rica em história natural e cultural. Aproximadamente um terço dos seus 137 km² é composto de baías, um terço de terras planas e vales e um terço de encostas e picos da serra do Amolar. Como muitos outros locais do Pantanal, Acurizal foi uma fazenda de pecuária. Aqui, no final da década de 70, foi conduzido o primeiro estudo da onça-pintada, por George Schaller e Peter Crawshaw. Agora uma reserva particular do patrimônio privado (RPPN), Acurizal está em um período de transição. Inicialmente manejada pela Fundação Ecotrópica, desde a sua compra em conjunto com a TNC-Brasil (The Nature Conservancy), a prioridade era a preservação e a recuperação de sua vegetação, depois dos anos de pecuária.
Em anos recentes, os estudos das onças tem continuado sob a coordenação do Dr. Crawshaw. As campanhas para captura de animais para colocação de colares GPS até o momento resultaram em dados críticos coletados nos movimentos e seleção de habitat dos diferentes indivíduos aparelhados. Esses dados fornecem aos biólogos e às pessoas responsáveis pelo manejo de áreas protegidas informações importantes de como melhor garantir a proteção da onça-pintada, incluindo aspectos da legislação necessária para atingir esses objetivos. Por esse motivo, estudos de campo devem ser guiados por perguntas com objetivos claros e executados com técnicas tradicionais rigorosas e os métodos mais atualizados disponíveis. Dessa forma, pesquisadores podem desenvolver projetos eficientes que produzem uma riqueza de dados, enquanto permitindo tempo para novas atividades exploratórias em campo.
Foi com essa visão em mente que o atual Projeto Onça-Pintada do Pantanal foi planejado, em uma colaboração entre o ICMBio, o CENAP/ ICMBio, o Instituto Pró-Carnívoros, a Fundação Ecotrópica e a Fundação Panthera. O objetivo é estudar e proteger as onças-pintadas ao longo do corredor do rio Cuiabá, estendendo para todo o Pantanal. Para isso, estamos usando dados coletados através de colares GPS, levantamentos realizados com armadilhas fotográficas e análises genéticas para procurar entender a dinâmica das populações dessa espécie nesta região única, incluindo a RPPN Acurizal. Esses objetivos formam o tema da minha tese de doutorado, em andamento na Faculdade de Ciências Ambientais e Florestais da Universidade Estadual de Nova York, SUNY (Syracuse, NY, EUA).
VHF e Colares GPS
No final da década de 70, os Drs. Schaller e Crawshaw capturaram, aparelharam e monitoraram duas onças-pintadas adultas na fazenda Acurizal e na vizinha Bela Vista do Norte. Os colares consistiam de um conjunto de bateria e transmissor VHF (do inglês Very High Frequency), que emitia um sinal de ‘beep’ escutado apenas através de um canal específico, por um receptor. O animal usando o colar podia então ser seguido utilizando-se o receptor e uma antena direcional.Para se obter mesmo uma simples localização no animal eram necessárias horas de caminhada através de riachos, morros, e vegetação densa. Os desafios do monitoramento com o sistema VHF ainda aumentam quando o animal está em movimento, fazendo com que o sinal se torne inconsistente, entrando e saindo do campo de detecção do equipamento. Outros fatores que ainda dificultam a recepção do sinal são: vegetação muito fechada, deflecção do sinal em encostas de morros e montanhas, e condições do tempo.
“Essas coordenadas do GPS permitem que se colete informações incrivelmente detalhadas sobre os movimentos e seleção de habitats pelos animais, anteriormente impossíveis de se obter com os sinais VHF apenas.”
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Hoje em dia, colares modernos são equipados, além do transmissor VHF, também com um receptor GPS, que registra as coordenadas do animal. Além disso, a tecnologia permite ainda que essas coordenadas do GPS sejam retransmitidas a satélites várias vezes por dia, conforme uma programação prévia feita pelo pesquisador. Essas coordenadas do GPS permitem que se colete informações incrivelmente detalhadas sobre os movimentos e seleção de habitats pelos animais, anteriormente impossíveis de se obter com os sinais VHF apenas. Essas coordenadas são enviadas diretamente para o email do pesquisador, como uma mensagem SMS. O pesquisador pode então transferir os pontos para um mapa e conferir os movimentos do animal.
Essa tecnologia, no entanto, não significa que o pesquisador pode ou deve simplesmente ficar em seu escritório, esperando os pontos de GPS em seu computador. A vantagem do colar de GPS é que ele libera mais tempo para que o pesquisador possa fazer levantamentos ainda mais detalhados em campo. Por exemplo, um aglomerado de pontos de GPS pode indicar que a onça matou alguma presa naquela área, e permanece nas imediações para se alimentar da carcaça.O pesquisador, de posse das coordenadas, pode então localizar os restos da carcaça, tendo acesso a dados que de outra forma seriam extremamente difíceis de obter, sobre a espécie predada, método de abate, partes consumidas, tempo que o predador permaneceu se alimentando, presença de outros animais adultos ou filhotes (através de pegadas). Para isso, é preciso que ele alcance o lugar antes que essas informações se percam. Podemos também entender melhor os tipos de habitats mais usados pelas onças, melhor calcular o tamanhos das áreas utilizadas, ou mesmo identificar o local escolhido por uma fêmea para parir seus filhotes. E nessas atividades de monitoramento direto, o sinal VHF ainda é necessário, como também para localizar o colar, em caso de sinal de mortalidade, conforme mencionado no artigo de Fernando Tortato, em publicação anterior neste blog. Só em se seguindo fisicamente os animais, no solo, é possível entender como a onça-pintada utiliza e se relaciona com o ambiente onde vive, tanto físico quanto social.
Colares GPS: A Captura do Macho 08 “Big George”
Em 2011, um time composto por Peter Crawshaw, a veterinária Selma Onuma, analista ambiental do ICMBIO lotada na Estação Ecológica de Taiamã, no Pantanal do Mato Grosso, Joares May, veterinário colaborador do CENAP, Thiago Brito, estagiário do projeto e a autora, Allison Devlin, capturaram um macho grande de onça-pintada em Acurizal, batizado M08, e também “Big George”, em homenagem ao Dr. George Schaller. O Big George foi a mais conhecida das onças residentes na região. Ele foi também a primeira onça aparelhada com rádio-colar em Acurizal em mais de 30 anos. Com a ajuda dos funcionários da Ecotrópica, Wolf Eberhardt e Paulinho da Silva, o time capturou o Big George, utilizando um laço, armado junto à carcaça de um cavalo morto por ele. Big George era visto com frequência trotando pela pista de pouso da sede da reserva, pausando para observar garças e perseguir cutias de volta à mata. Infelizmente, informações de fontes confiáveis indicam que ele pode ter sido morto durante uma de suas incursões muito próximas aos moradores locais, fora da área protegida da reserva. Seu desaparecimento se deve, provavelmente, ao seu hábito de predar animais domésticos, incluindo cavalos e gado. Essas informações coincidem com o período a partir do qual ele não foi mais fotografado em nossas armadilhas fotográficas, em meados de 2012.
Levantamentos com Armadilhamento Fotográfico: Estimativas do Tamanho Total da População e Densidade
Estudos de fauna, principalmente de mamíferos, também utilizam técnicas não-invasivas. Os pesquisadores não precisam capturar e manipular animais para ter acesso as informações importantes sobre diversidade de espécies presentes em uma área, número de indivíduos na área de estudo ou densidade da população. Um importante avanço nesse sentido são as armadilhas fotográficas que detectam movimento de um animal. Um equipamento assim foi desenvolvido pela Panthera (“Pantheracams”). Quando um animal passa na frente da câmera, o sensor de movimento é ativado, tirando uma foto digital. Uma simples fotografia contém uma gama de informações, permitindo a identificação da espécie, sexo, idade aproximada, e, para algumas espécies que tem marcas individuais, como a onça-pintada, até especificar indivíduos.
Da mesma forma que as pessoas tem impressões digitais únicas, as manchas e pintas nos lindos padrões de pelagem das onças-pintadas não se repetem, são individuais. Comparando-se esses padrões entre as fotos tiradas dos diferentes animais, é possível se distinguir cada um deles, com suas manchas características. O registro minucioso de fotos dos indivíduos permite que se saiba o total de animais fotografados e através de modelos matemáticos fazer estimativas da densidade da população. Esses cálculos são usados com frequência para avaliar e ressaltar a importância de uma determinada área, com estimativas altas de densidade, enfatizando a necessidade de se proteger a mesma.
Até um passado recente, informações detalhadas como essas demandavam horas incontáveis de trabalho de campo para seguir, capturar, e marcar indivíduos de uma espécie, para conhecer seus aspectos demográficos. As armadilhas fotográficas fornecem informações similares, senão até mais detalhadas, e operam ininterruptamente, de dia e de noite, debaixo de sol ou chuva, bastando apenas revisar periodicamente os dispositivos de armazenamento de memória e baterias. Dessa forma, a eficiência é maximizada, permitindo cobrir áreas de estudo muito grandes, e melhor que uma equipe de pesquisadores poderia fisicamente monitorar, em um mesmo período de tempo. Por exemplo, nós podemos monitorar toda a área de Acurizal incluindo ainda baías remotas no Parque Nacional em um período de 40 dias. Cada campanha dessas rende mais de 2 mil fotos de mamíferos, aves, e répteis – entre elas, muitas fotos de indivíduos de onças-pintadas.
Armadilhas Fotográficas: O Segundo Vale e o Saleiro
“Para armar algumas estações é preciso um esforço considerável, o que nos abre um mundo de aventura e beleza natural que dificilmente se mostraria em outras situações.”
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Nós estamos desenvolvendo atualmente um levantamento com armadilhas fotográficas que cobre mais de 300km², com mais de 20 estações (com duas câmeras cada), incluindo tanto Acurizal como o Parque Nacional do Pantanal Matogrossense. Essas estações são colocadas na beira de baías, em matas de galeria, e em trilheiros de fauna. Para armar algumas estações é preciso um esforço considerável, o que nos abre um mundo de aventura e beleza natural que dificilmente se mostraria em outras situações.
Existem em Acurizal dois vales principais, que foram chamados, desde os primeiros estudos de Schaller e Crawshaw, Primeiro e Segundo Vales. O Primeiro Vale é formado principalmente de cerradão e cortado por um riacho de águas límpidas, com duas piscinas naturais. Para o Segundo Vale, o acesso é bem mais difícil, e eu diria que é um dos lugares mais bonitos do mundo. Pessoas que estejam bem dispostas tem que enfrentar uma caminhada de quase 9 horas no total, seguindo os meandros de um riacho bem para o fundo das colinas no final do vale, já nos contrafortes das encostas íngremes da Serra do Amolar. Durante o pico da estação das chuvas, quando o vale é inundado pelas correntes que descem as montanhas, árvores enormes e rochas são arrastados pelo leito dos rios, grandemente aumentados pelo volume das chuvas. Distante do rio Paraguai, o riacho é alimentado por uma nascente natural. Assim, durante toda a estação de seca, ele mantém água mesmo nas profundezas do Segundo Vale. E aqui, graças às sempre atentas armadilhas fotográficas, temos registrado a presença de onças.
Na entrada do Segundo Vale, depois de uma caminhada de 4 horas, existe uma maravilha da Natureza: um saleiro natural, muito utilizado pela fauna. George Schaller e Peter Crawshaw registraram o saleiro durante seu estudo na fazenda na década de 70 e, desde então, ele não havia mais sido monitorado. Esse saleiro atrai várias espécies, como araras vermelhas e verdes (Ara chloropterus), tamanduás-bandeira (Myrmecophaga tridactyla) e veados (Mazama spp.). Os animais são atraídos pela terra arenosa rica em minerais. Com as armadilhas fotográficas, podemos monitorar essa região sem interromper o vai-e-vem diário de toda essa diversidade de fauna. No ano passado, foram fotografados três indivíduos diferentes de onças-pintadas – incluindo uma fêmea e seu filhote– passando pelo saleiro durante a noite, talvez para tentar surpreender alguma presa incauta. Nas próximas semanas, nós estaremos percorrendo todas as estações com armadilhas fotográficas, e estamos ansiosos, antecipando as novidades que iremos descobrir…
Mais histórias pessoais e observações sobre o futuro de Acurizal por vir na Parte II! Aguardem!
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