Apesar de tudo, o sudeste de Quênia e o centro norte de Tanzânia, ainda têm a capacidade de surpreender e maravilhar seus visitantes. Apesar de tudo, pois, a cada visita, se observam mais e mais ameaças ao já muito maltratado patrimônio natural e cultural desses países. Ainda assim, nem o mais exigente profissional ou amador da natureza pode ficar indiferente ou insatisfeito daquilo que as áreas naturais protegidas dessa região da África oferecem. Neste texto, complemento relatos e conceitos em colunas anteriores O ilustrativo caso dos Masai (16/09/09) e Lula e as savanas africanas (24/11/09), ambas publicadas em ((o))eco e faço comparações entre a situação das áreas protegidas e da fauna no Quênia e na Tanzânia.
Masais e as áreas protegidas
Os Masai são possivelmente o grupo mais estudado e melhor conhecido da África. É um povo orgulhoso e guerreiro, de origem nilótica, que migrou progressivamente ao sul pelo vale do Rift, chegando às savanas do que hoje é parte de Quênia e Tanzânia em fins do século XVIII. Desde sempre estão associados à criação de gado bovino, dos quais obtêm a maior parte dos seus alimentos e recursos para intercâmbio ou comércio. Durante muito tempo os Masai praticaram ataques aos seus vizinhos nos territórios ocupados, em especial os Nandi e Samburus, para furtar gado. Por isso, na atualidade, seus animais perderam as caraterísticas originais e são muito semelhantes à mistura conhecida como zebu-queniano. Embora ocupassem amplos territórios onde campeava a enfermidade do sono sabe-se que o gado masai é menos susceptível que outros às infecções do tripanosoma que, de outra parte, desestimulou a ocupação das savanas.
As autoridades coloniais alemãs e britânicas não eram insensíveis aos temas ambientais. Perceberam que a população Masai crescia e que o número dos seus animais domésticos crescia ainda mais, já por então complementado com ovinos, caprinos e até camelos. Por isso, consideraram o estabelecimento de áreas protegidas que, assim mesmo, pretendiam frear os abusivos safaris de caça dos europeus, tão em moda até meados do século anterior. Os alemães foram os primeiros a estabelecer áreas protegidas em Tanganyka (hoje Tanzânia após a independência e a anexação da ilha de Zanzibar), incluindo o Serengeti e o Ngorongoro. Os britânicos continuaram o trabalho. Nos anos 1950 e começos dos 1960, estabeleceram ou confirmaram uma série de reservas de fauna e parques nacionais, dentre outras categorias protegidas em ambas as colônias. Assim nasceram, entre várias outras, Nakuru, Amboseli, Masai Mara e Tarangire, ademais dos já mencionados Serengeti e Cratera do Ngorongoro. O número de áreas protegidas em Quênia é grande (68), mas, na sua maior parte, são áreas pequenas. Na Tanzânia existem bem menos (14), mas são maiores. Deve-se esclarecer que não todas as áreas protegidas destes países estão nas savanas do Rift, nem em terra alguma vez ocupada pelos Masai.
Atualmente grande parte da área originalmente protegida pelo poder colonial, na forma de reservas de fauna ou parques, tem sido desclassificada e devolvida aos próprios Masai, ou é considerada como “áreas de conservação” (uma espécie de “áreas de proteção ambiental”), onde o pastoreio e outras atividades econômicas são permitidos ou, pelo menos, tolerados. No Quênia, a gestão dos espaços ainda protegidos nas terras dos Masai é feita diretamente por eles (como na Reserva Nacional Masai Mara), ou em outros casos é compartilhada. Todas as áreas protegidas do Quênia cobrem apenas 7,8% de seu território e a Reserva de Masai Mara tem somente 151.000 hectares, ou seja, que é uma área protegida pequena. A fauna sobrevive porque a área está conectada ao grande Parque Nacional Serengeti da Tanzânia e, também, devido ao fato que do lado queniano se conecta a outros territórios Masai que, na teoria, ainda são usados de modo tradicional.
Todas as categorias de áreas protegidas da Tanzânia abarcam 10% do seu território e não estão todas nas savanas do Rift. O Parque Nacional do Serengeti, que é a continuação do ecossistema de savana de Masai Mara, tem ao redor de 4 milhões de hectares. Contíguo a ele se encontra a Zona de Conservação de Ngorongoro que tem 828.000 hectares dos quais a própria cratera tem 26.400 hectares. A pecuária é permitida na Zona de Conservação. Na cratera só se permite que o gado tenha acesso à água. O Parque Nacional de Tarangire tem uns 250.000 hectares. Os parques de Tanzânia são administrados diretamente pelo Serviço de Parques Nacionais. Mas a área do Ngorongoro dispõe de uma autoridade autônoma. Todas essas áreas protegidas ou não, dentre outras, tanto em Quênia como na Tanzânia formam parte do espaço que suporta a famosa migração dos gnus.
Impactos humanos sobre a fauna
A fauna africana é de grande porte e abundante. Antigamente sua população se movia livremente pelas savanas seguindo as chuvas e o consequente verdor das pastagens de acordo com as estações. O ciclo dos nutrientes se mantinha estável já que o pastoreio de herbívoros selvagens e domésticos (o gado), com base no grande espaço disponível não era abusivo e também devido à adubação natural dos dejetos orgânicos da fauna. Ademais a região tem influência vulcânica e os solos, apesar da falta de água, são relativamente férteis. A fauna selvagem era o principal sustento dos povos tradicionais da região, mas, como na Amazônia, as populações destes eram pequenas e se mantinham em equilíbrio com as presas apesar de alguns hábitos de caça inadequados, como o uso do fogo. Os Masai não eram caçadores já que sua alimentação dependia essencialmente do gado.
Os colonos europeus, assim como outros grupos nativos não se instalaram diretamente nas planícies do Mara e do Serengeti devido à enfermidade do sono propagada pela mosca tse tse. Porém, alteraram as condições de vida ao redor delas e terminaram influindo grandemente nas savanas, pressionando diretamente nos seus limites, criando fazendas ou, indiretamente, empurrando outros grupos tribais sobre ela. Essa maior pressão aumentou os conflitos entre o povo Masai e seus vizinhos e também criou mercado para o seu gado. Além disso, os europeus iniciaram sem piedade uma caça comercial e esportiva. Para resolver esses problemas é que as autoridades estabeleceram áreas protegidas.
A independência trouxe “modernidade” e, obviamente, os Masai não foram imunes. Como relatei nos artigos mencionados acima, é evidente a mudança de hábitos dos Masai e a degradação do ecossistema entre a minha primeira visita à região nos anos 1970 e às feitas em 2006 e, agora, em 2013, quando se compara a situação da vegetação dentro e fora das áreas protegidas e, também, comparando com o observado antes, dentro das mesmas. A observação empírica é complementada por estudos técnicos que demonstram claramente a redução drástica da população das principais espécies da fauna fora das áreas protegidas e dentro delas.
As causas da diminuição da população da fauna e da degradação das áreas protegidas são múltiplas e complexas. Como dito, a fauna das savanas precisa migrar para se alimentar. A espécie migratória por definição é o gnu, mas não é a única. As áreas protegidas apenas garantem parcialmente a possibilidade de migrar. A maior parte da área natural de migração está fora dos limites de parques e reservas. O problema é que fora das áreas protegidas existe população humana que cria animais domésticos que usam os pastos da savana, os Masai dentre eles, e outros que praticam agricultura inclusive intensiva. A passagem ou presença da fauna, para todos eles é pelo menos um estorvo (macacos ou elefantes destroem suas colheitas, leões atacam o gado); frequentemente um risco (elefantes, hipopótamos ou crocodilos, por exemplo); e sempre é uma competidora por pastos escassos (com todos os herbívoros). Ademais, as populações humanas afetadas, como quase todas na África, são muito pobres e nenhuma resiste à tentação de comer e/ou vender a carne ou outros produtos desses animais. Búfalos e gnus são particularmente perseguidos por sua carne, mas qualquer animal selvagem é caçado ou capturado. Ao anterior há que se somar outro problema, a cada dia mais sério e que se produz dentro e fora das áreas protegidas. Refiro-me à caça comercial, em especial em procura de marfim de elefantes e chifres de rinocerontes, dentre outros produtos, e a caça de gnus e búfalos em grande escala para a comercialização de carne.
De outra parte a população nacional e em especial a dos Masai têm aumentado consideravelmente e os governos nacionais têm feito enormes esforços diretos e indiretos (educação, por exemplo) para modernizar seus hábitos tribais. Os Masai não eram nem são populares nos seus próprios países e têm pouca representação nos governos atuais. À inimizade tribal tradicional na atualidade se soma a percepção de que eles são um povo atrasado que não contribui ao progresso do país. O resultado dessas e outras pressões da globalização se manifestam em mudanças. Por exemplo, quase todo Masai que se usa vestimenta mais ou menos tradicional, embora carregue telefone celular. Primeiramente os rebanhos vão se multiplicando em número e em diversidade e seu propósito comercial é cada vez mais evidente. De outra parte, a área de pastoreio fora das áreas protegidas tem se reduzido consideravelmente devido às lideranças Masai estarem cedendo muita terra para cultivos industriais de grãos (ver os artigos acima citados). Porém, ainda, o complexo sistema de posse da terra desse povo está criando, cada vez mais, uma loteamentos da terra com cercas. Muitas são para agricultura, outras são para empreendimentos de turismo. Algumas pertencem aos Masai, embora seja cada vez mais frequentes que os beneficiários sejam de outras regiões que “alugam” a terra. De outra parte, cedendo à demanda, muitos Masai estão transformando as poucas árvores da savana em carvão. O somatório tem efeito gravíssimo sobre o pastoreio, com evidente destruição da capacidade de regeneração da vegetação natural e a consequente falta de água. Isso aumenta a pressão dos Masai mais tradicionais sobre as áreas protegidas, os únicos espaços onde os pastos se ainda mantêm um pouco melhores. Não muito, pois a fauna agora forçada a não sair desses espaços também causa impactos negativos.
O que acontece dentro das áreas protegidas
Nesse quadro geral, as áreas protegidas são o único refúgio mais ou menos seguro da fauna, que sustenta o turismo, a principal fonte de divisas de ambas as nações. Mas, elas não estão imunes às mudanças e, pelo contrário, apesar das tremendas pressões externas mencionadas, sofrem de graves problemas internos. Alguns desses problemas são semelhantes em ambos os lados da fronteira, mas, outros, são diferentes. O problema comum é o mau manejo ou a falta de manejo do turismo o que é particularmente notório em Masai Mara. Nessa reserva os veículos de turismo não respeitam nada e não têm ninguém para fazer cumprir as regras. Usando o rádio ou os telefones celulares, os motoristas-guias empreendem verdadeiras corridas para mostrar os melhores espetáculos aos seus passageiros, já que disso podem depender as normalmente avultadas gorjetas. Assim, ao redor das passagens dos gnus pelo rio ou ao redor de guepardos ou leões, principalmente se algum deles está caçando, podem se acumular dezenas de veículos na mais absoluta desordem. Deste jeito, as trilhas dos veículos motorizados se multiplicam e ocasionam evidentes danos à vegetação natural. A poeira levantada e o barulho de motores e de gente tiram grande parte do desfrute de observar a natureza em ação. Nos parques da Tanzânia a situação é muito mais controlada e é raro ver carros fora das trilhas oficiais. Mas, não deixa de acontecer.
A administração de Masai Mara é, na atualidade, inteiramente Masai, e isso é parte do problema. Relações pessoais e obrigações tribais desrespeitam a lei e, na verdade, a única medida que os guardas tomam é cobrar ingresso e aplicar multas, principalmente aos seus desafetos. Em três dias de visita, apenas uma vez foi visto um veículo dos guarda parques. Já na Tanzânia, onde a administração é do governo nacional, eles são mais presentes e, por exemplo, após duras batalhas, conseguiram recuperar áreas ao oeste do Parque Nacional Serengueti que os caçadores regionais haviam ocupado. Os caçadores, que não são Masais, já mataram vários guardas, usando inclusive flechas envenenadas. Agora, os funcionários do Parque nesse setor ocupam uma série de fortes com altas muralhas, a partir dos quais fazem o controle da área.
Um problema que é comum a ambos os países, embora sempre com vantagens para a Tanzânia, é o destino das enormes somas de dinheiro que são cobradas aos visitantes. É óbvio que elas não são investidas nas áreas protegidas que, excetuando os guardas, carecem de quase tudo. A corrupção alcança, em ambos os países, níveis estratosféricos. Nisso, é enorme a diferença destes parques com a dos sul-africanos, que oferecem excelentes serviços e que desenvolvem uma alta qualidade de manejo.
A falta de manejo se constata inclusive no Serengeti, onde se sabe que os próprios funcionários do Parque queimam propositadamente enormes extensões de savana, apenas para garantir o retorno dos gnus, que por sua vez garantem a renda do turismo. A esses incêndios intencionais se somam os que provocam vizinhos e caçadores e os que são de origem natural. O resultado é calamitoso.
O futuro provável e possível
Nas condições descritas o futuro das áreas protegidas e da fauna das savanas de Quênia e Tanzânia não é brilhante. A conclusão não é que as áreas protegidas não servem. Bem ao contrário, a cada dia é mais evidente que, apesar de tudo, elas são e continuarão a ser a única barreira ou, quiçá, o único freio contra a extinção. Evidente é que na medida em que o desenvolvimento continue impregnando a sociedade nacional e a dos Masai, a fauna perderá gradativamente qualquer possibilidade de sobrevivência fora das áreas protegidas. Isso ocorrerá inclusive se os Masai abandonarem a prática da pecuária extensiva, pois, como visto, nesses casos dedicam suas terras a usos ainda mais incompatíveis com a conservação do ecossistema.
Para que as áreas protegidas continuem cumprindo a sua função será necessário achar novas fórmulas de manejo das áreas e da sua fauna, devido a esta última estar circunscrita a um âmbito cada vez mais limitado. Isso implica obviamente reduzir proporcionalmente as populações de animais. Neste processo, é provável que algumas espécies desapareçam e outras se tornem mais raras do que são hoje. Mas, ainda se salvará muito se o manejo for adequado.
Não tudo o que, hoje, acontece com os Masai é negativo. A má gestão que fazem das áreas protegidas sob sua administração não implica que seja errado dar a eles esse privilégio ou direito, como se prefira. Ao contrário. Apenas é indispensável que cumpram bem e honestamente essa tarefa que, mais que a qualquer outro, deve beneficiar a eles mesmos. Chegar a isso levará tempo, embora não seja impossível.
Na minha visita ao Quênia de seis anos atrás não vi nenhum Masai com roupa tradicional servindo de guia ou motorista. Eles apenas faziam graça para chamar a atenção dos turistas para visitar uma aldeia ou para vender bugiganga. Nesta visita de 2013, não só tivemos excelentes guias e motoristas Masai, e muitos deles usavam com orgulho a sua vestimenta tradicional. A minha maior surpresa foi ver em duas ocasiões mulheres Masai servindo de guias-motoristas e, em outra ocasião, uma família Masai completa, evidentemente rica, fazendo turismo. Dentre os Masai existem já muitos profissionais altamente qualificados e, é de se esperar, que progressivamente ajudem aos demais a se incorporarem à sociedade nacional preservando seus valores culturais e reconhecendo que a degeneração atual da sua atividade pecuária tradicional não conduz a nada de bom. Pior, claro, é a cessão das suas terras para produzir commodities. Existe, sem dúvida, um caminho certo para esse povo simpático e acolhedor, que passa bem no meio entre a tradição já obsoleta pela força do crescimento e as distorções do modernismo esgotante.
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