O Canal Energia traz hoje uma notícia sobre a avaliação da consultoria PSR de que a “afluência” em março e abril terá de ser equivalente a 100% da média para evitar que o risco de racionamento de energia elétrica no país chegue também a 100%. “Afluência”, no jargão dos barrageiros, significa água chegando dos rios nos reservatórios das usinas hidrelétricas no Sudeste e no Centro-Oeste, que são as caixas d’água do país. Salvo em hipótese de intervenção divina, a chance de que isso ocorra é 0%. Como Deus não existe (algo que é facilmente demonstrável pela existência do Estado Islâmico e do Eduardo Cunha), em algum momento entre o alalaô e o coelhinho da Páscoa o ministro Eduardo Braga aparecerá em rede nacional de rádio e televisão anunciando que o gato caiu do telhado.
A essa altura, e espero que antes de primeiro de abril, o governo paulista também já terá sido forçado a vir a público dizer que, er…, vejam, vamos passar mesmo cinco dias sem e dois com água. O epicentro da indústria e do agronegócio nacionais estará, assim, privado de dois insumos vitais, cuja conservação tem sido tratada, por essa mesma indústria e por esse mesmo agronegócio, como uma “externalidade”. Num país que já estaria em crescimento zero sem essa dupla pancada, o efeito de mais essa crise sobre inflação, empregos, segurança e estabilidade política pode ser apenas imaginado. Eu é que não queria ter cargo eletivo em 2015.
Para que as vazões dos rios que alimentam os reservatórios ficassem na média em 2015, a estação chuvosa que começou em outubro teria de ter tido precipitações muito acima da média. Isso porque nem toda a água que cai do céu vai para os rios; parte dela é absorvida pelos solos, que estão muito secos: lembre-se de que desde 2012 o Centro-Sul vem recebendo menos água do que deveria, o que fez o governo acionar termelétricas fósseis a rodo e de forma permanente para tentar evitar o apagão inevitável, torcendo por um milagre. Numa conta feita pelo climatologista Carlos Nobre para o Sistema Cantareira, que poderia ser mais ou menos generalizada para o Sudeste, a precipitação teria de ser pelo menos 60% maior do que a média entre fevereiro e abril para que os reservatórios pudessem chegar ao fim de 2015 com o volume morto minimamente reencarnado.
Até aqui, porém, Giorgio, nada no comportamento desta triste temporada nos permite antever o dilúvio manauara que o amazonense* Eduardo Braga e seus eletrocratas esperam que caia nas latitudes mais altas do país. Como indicam dados de um assustador relatório do Cemaden (Centro de Nacional de Monitoramento e Alertas de Desastres Naturais) sobre a situação de São Paulo, as chuvas de outubro a dezembro foram 40% menores que a média histórica. Janeiro foi seco, apesar das enchentes em São Paulo.
Muita gente tem corrido a apontar o dedo para Dilma e Alckmin: dizem que os dois são desonestos, mentirosos, péssimos planejadores, empurraram o racionamento com a barriga para poder faturar a eleição e negaram-se a adiantar um programa de economia de energia que poderia ou não ter-lhes custado os novos mandatos, mas que teria poupado o país de uma conta que virá salgada em 2015 porque será cobrada toda à vista. Tudo isso é verdade, e espero que PT e PSDB, para usar a frase célebre do meu amigo Zé Dirceu, “apanhem nas ruas e nas urnas”. Só que isso não é toda a verdade. O que o apagão-secadão de 2015 traduz é uma incapacidade dos governos de lidar com uma nova realidade climática no país. E também simboliza, numa escala menor, a opção errada que o mundo fez ao não agir contra as mudanças climáticas enquanto o custo da ação era manejável.
O erro é mais embaixo
Dilma e Alckmin foram induzidos a erro por uma questão de “mindset”, por assim dizer. Ocorre que o planejamento energético e de abastecimento no Brasil segue uma tradição de gerações de hidrólogos que professam a fé no chamado estado estacionário de vazão. Trata-se de um conhecimento empírico segundo o qual tudo aquilo que se observou no passado também se aplica ao presente e ao futuro. Tirando uma seca extrema ou outra, que se repetem de tantos em tantos anos, ou um ano de extremo de chuva ou outro, que também se repetem de tantos em tantos anos, os rios brasileiros pulsam com constância quase matemática, registrada em décadas e décadas de observações meticulosas de réguas de nível, guardadas em antigos alfarrábios. O clima, para essa escola de pensamento, é algo dado e constante. Com oscilações, mas constante. É por esse credo que rezam alguns hidrólogos do Centro de Pesquisas em Energia Elétrica da Eletrobras, interlocutores privilegiados do pessoal que decide as coisas no governo.
O erro dessa turma tem sido ignorar que o próprio fundamento sobre o qual suas observações se baseiam – a constância do clima – não vale mais. As mudanças climáticas, que ainda são objeto de controvérsia entre pesquisadores do Cepel, mandaram o estado estacionário para o vinagre. Os planejadores de energia não enxergaram isso porque as lentes pelas quais eles olham o mundo, os rios e a chuva não foram feitas para detectar os tons em geral sutis da mudança climática. Faltou-lhes preparo epistemológico. Daí nunca terem dado bola para os alertas do IPCC, por exemplo – que, justiça seja feita, também têm muita incerteza sobre o total de precipitação no Brasil ao longo deste século, embora o sinal de temperatura modelado e verificado nas últimas décadas seja inequívoco.
A incerteza agora é o novo normal. Isso é uma péssima notícia para tomadores de decisão, mas é preciso quantificá-la e incluí-la no planejamento. “Não gosto de falar em segurança hídrica, porque dá ideia de previsibilidade. Prefiro falar em gestão de risco”, diz o hidrólogo Francisco Assis, da Universidade Federal do Ceará.
Talvez o drama que aflorará no Brasil nas próximas semanas e meses ensine alguma coisa aos formuladores de políticas públicas sobre a realidade da mudança climática e a necessidade de gerenciar riscos. A proposta de financiar a compra de painéis solares para geração doméstica de energia é uma dessas boas medidas que chegam tarde, se chegarem. Mas antes tarde do que nunca. O problema é se ano que vem a chuva voltar a normalizar e a lição do apagão-secadão de 2015 for esquecida, como foi a do apagão de 2001, sem uma mudança no software mental dos planejadores de água e energia.
* Sim, manauaras, eu sei que ele é nascido no Pará. Mas ele é problema de vocês.
** Esse texto foi originalmente publicado no blog O Curupira.
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