Análises

Cada m² importa: é preciso conservar e restaurar as diversas Matas Atlânticas

Estratégias de preservação e restauração precisam focar em todos os múltiplos habitats do bioma, e essa estratégia inclui seus ecossistemas marginais, como floresta estacional e áreas de restinga

Danilo Neves ·
17 de março de 2022 · 2 anos atrás

Entramos na Década da ONU para Restauração dos Ecossistemas. Poucos foram os sucessos na Década da Biodiversidade (2011-2020), e cientistas hoje enfatizam a importância de um maior comprometimento de agentes públicos com ações globais de proteção da biodiversidade remanescente e restauração dos ecossistemas que foram destruídos por ações antrópicas. A Mata Atlântica é reconhecida mundialmente como um dos 36 hotspots de biodiversidade, dada sua excepcional diversidade de animais e plantas, bem como o sério status de ameaça de seus ecossistemas como consequência da degradação que vem sofrendo desde os períodos da colonização. Para muitos grupos de organismos, como as plantas, a Mata Atlântica é o bioma terrestre com maior riqueza de espécies, mesmo se comparada à Amazônia. Apesar disso, menos de 10% da área original da Mata Atlântica permanece com integridade suficiente para sustentar a sua biodiversidade e o funcionamento dos seus ecossistemas.

Cientistas dedicados à biologia da conservação costumam se perguntar: Quais áreas devemos priorizar em estratégias de proteção e restauração? Apesar de ser uma pergunta complexa e que requer anos de pesquisas, um consenso sobre a Mata Atlântica é que cada metro quadrado importa. Em outras palavras, não precisamos mais discutir onde priorizar proteção e restauração deste bioma, mas quando! A manutenção da expressiva biodiversidade da Mata atlântica depende, portanto, de dois fatores: 

(i) maior celeridade do poder público na expansão da rede de Unidades de Conservação, como os Parques Nacionais e Reservas Biológicas, que hoje cobrem menos de 2% dos remanescentes naturais da Mata Atlântica; e 

(ii) projetos de restauração ecológica que contemplem a heterogeneidade de habitats existentes neste bioma.

Habitats da Mata Atlântica

Das restingas do nordeste às exuberantes florestas pluviais do Corcovado, cada habitat da Mata Atlântica tem sua importância como abrigo e refúgio de biodiversidade única. Abrangendo regiões equatoriais, tropicais e subtropicais ao longo dos seus mais de 3.500 km de extensão latitudinal, a Mata Atlântica compreende uma considerável diversidade de habitats, com sua ocorrência e distribuição sendo determinadas por diferentes condições climáticas e de solo. Climas moderadamente quentes e úmidos representam as condições ideais para seu habitat predominante: as florestas tropicais pluviais. Este habitat é distribuído ao longo de quase toda a porção tropical costeira da Mata Atlântica, abrangendo as florestas que cobrem do sopé ao topo das principais cadeias montanhosas do leste do Brasil. Exemplos conhecidos são as florestas pluviais da Serra do Mar em São Paulo e o Parque Nacional da Tijuca, no Rio de Janeiro.

Conforme saímos destes ambientes quentes e úmidos da Mata Atlântica, nos deparamos com mudanças na paisagem e em sua vegetação associada. Essas mudanças estão relacionadas a extremos de condições climáticas e edáficas (do solo), que determinam o surgimento de habitats ambientalmente marginais. As condições extremas, ou marginais, de clima e solo ao longo do bioma moldam não apenas diferentes formas de vegetação, mas também abrigam um número considerável de espécies de animais e plantas endêmicas: espécies que não são encontradas em nenhum outro habitat ou região do mundo, nem mesmo nas florestas pluviais da Mata Atlântica.

Cada metro quadrado deve ser considerado em políticas públicas de conservação deste hotspots mundial de biodiversidade. Mais precisamente, cada metro quadrado de todos os habitats da Mata Atlântica deve ser considerado!

As condições ambientalmente marginais da Mata Atlântica podem ser sumarizadas em cinco fatores: geadas, rochosidade, salinidade, saturação hídrica do solo, e sazonalidade da precipitação (ou estiagem). Ocorrência de geadas representa uma condição comum em florestas das regiões subtropicais da Mata Atlântica. Nas regiões tropicais, florestas acima de 1.100 metros acima do nível do mar (altomontanas) também registram múltiplos dias de geada. Exemplos bem conhecidos destas florestas são as Matas de Araucária do sul do Brasil, mas também representadas nas icônicas cadeias montanhosas da Serra da Mantiqueira, em Minas Gerais e São Paulo.

Substratos rochosos representam outra característica marcante de regiões montanhosas, sendo uma condição importante para o surgimento de uma vegetação bem peculiar: as florestas rupícolas ou florestas-anãs. Estes ambientes abrigam florestas de menor estatura devido aos solos mais rasos. São também ambientes de características rupestres, com afloramentos de rocha geralmente entremeados na vegetação. Diferentemente das florestas altomontanas, as florestas rupícolas se encontram em menores elevações e raramente sofrem com geadas. Por outro lado, são ambientes esporadicamente afetados por queimadas que se originam em formações campestres adjacentes.

Outra condição edáfica importante na Mata Atlântica são os solos com alto nível de salinidade das faixas costeiras. Esta condição determina a ocorrência e distribuição das restingas, encontradas em substratos arenosos que podem se estender a 20 km de distância do oceano. As restingas apresentam uma notável diversidade de formas, variando de vegetações dominadas por plantas arbustivas a florestas, com árvores que atingem mais de 15 metros de altura. Estas diferentes vegetações, ou fitofisionomias, abrigam um número considerável de espécies endêmicas, principalmente plantas. São espécies adaptadas a tolerar condições extremas de salinidade não apenas do solo, mas também da maresia. Apesar desta diversidade de formas, espécies e adaptações, as restingas representam o habitat mais ameaçado da Mata Atlântica. Dentre os múltiplos motivos que levam a este status de ameaça, destacam-se atividades mal planejadas das indústrias do turismo e imobiliária.

Por fim, destacam-se também os habitats da Mata Atlântica que se misturam com outro importante bioma brasileiro: o Cerrado. Adentrando boa parte do Brasil central, as florestas ribeirinhas, ou ripárias, são compostas por várias espécies de plantas comuns a outros habitats da Mata Atlântica, mas também abrigam espécies únicas e adaptadas a solos com saturação hídrica sazonal. Também entremeadas no Cerrado e ao longo da fronteira deste bioma com a Mata Atlântica, encontram-se as florestas estacionais, caracterizadas por condições climáticas com um período de seca bem definido. Estas florestas compreendem espécies com adaptações específicas para tolerar múltiplos meses de estiagem, sendo comum espécies de árvores que perdem suas folhas durante os meses mais secos.

Incorporando heterogeneidade ambiental em estratégias de proteção e restauração

Cada metro quadrado deve ser considerado em políticas públicas de conservação deste hotspots mundial de biodiversidade. Mais precisamente, cada metro quadrado de todos os habitats da Mata Atlântica deve ser considerado! Apesar de ter sofrido com níveis de devastação que degradaram cerca de 90% da sua cobertura original, a Mata Atlântica ainda abriga milhares de espécies de animais e plantas que não existem em nenhum outro lugar no mundo. Este alto nível de endemismo, no entanto, não significa que as espécies estão amplamente distribuídas por todo o território do Bioma. Muitas destas espécies endêmicas só existem em pequenas porções da Mata Atlântica, e estão geralmente confinadas às condições climáticas e de solo que caracterizam seus habitats.

Estratégias de preservação e restauração que sejam balanceadas para os múltiplos habitats da Mata Atlântica são de fundamental importância para a manutenção da excepcional diversidade deste bioma e do funcionamento dos seus ecossistemas.

Seja a competição por luz onde as chuvas são abundantes ao longo do ano, ou a capacidade de sobreviver em regiões com múltiplos dias de geada, a diversidade em habitats da Mata Atlântica depende de as espécies terem adaptações que permitam sua ocorrência e manutenção nesses habitats. Como consequência, quantidades marcantes de espécies endêmicas são hoje reconhecidas não apenas nas exuberantes florestas pluviais da Mata Atlântica, mas também em cada um dos seus habitats ambientalmente marginais. Em alguns casos, como plantas, quase metade das espécies endêmicas da Mata Atlântica são encontradas apenas nos habitats marginais. Apesar disso, habitats como as restingas e florestas estacionais recebem pouca atenção em políticas públicas ambientais… na verdade, a área total dos múltiplos habitats marginais da Mata Atlântica que são encontrados dentro de Unidades de Conservação não chega à metade da área destinada para proteção de florestas pluviais.

Estratégias de preservação e restauração que sejam balanceadas para os múltiplos habitats da Mata Atlântica são de fundamental importância para a manutenção da excepcional diversidade deste bioma e do funcionamento dos seus ecossistemas. Colocando de forma simples, a proteção ou restauração com foco em um habitat não garantem a manutenção de espécies naturalmente confinadas, endêmicas a outro habitat. Estratégias que visem a manutenção de espécies e ecossistemas de restinga, por exemplo, só serão efetivos se desenhados especificamente para (i) proteger seus remanescentes; e (ii) restaurar restingas degradadas, desde que este processo leve em consideração as características ambientalmente únicas encontradas em restingas preservadas. Portanto, ressalta-se a importância de estudos preliminares em áreas ainda protegidas do mesmo habitat onde seria possível estabelecer os parâmetros ambientais necessários para processos de restauração ecológica que levem em conta, por exemplo, características de textura, salinidade, nutrientes e saturação hídrica do solo.

Complexidade necessária?

Estratégias efetivas para a manutenção da biodiversidade da Mata Atlântica e do funcionamento dos seus ecossistemas são dependentes de múltiplos eixos de ação. Além de celeridade nas políticas públicas de expansão da ainda incipiente rede de áreas protegidas, programas efetivos de restauração devem ser concomitantemente implementados. Ambas as ações necessitam levar em conta a complexidade de habitats, suas peculiaridades de clima e solo, bem como o expressivo número de espécies endêmicas que cada um abriga. Outro eixo ainda pouco explorado em estratégias de proteção e restauração ecológica de ambientes biodiversos, como no caso da Mata Atlântica, é a inclusão de formas de mensurar diversidade biológica que vão além do número total de espécies ou número de espécies endêmicas.

Interesse em incorporar a dimensão evolutiva em biogeografia da conservação reflete a intenção de maximizar a proteção de todos os ramos evolutivos da árvore da vida.

Uma abordagem que vem atraindo grande interesse dentre cientistas com foco em biologia da conservação é a inclusão de diversidade filogenética em estratégias de proteção de remanescentes e restauração ecológica. Esta forma de mensurar biodiversidade considera não apenas as espécies de uma paisagem, mas também se estas espécies representam variados grupos evolutivos. Para entender como mensurar diversidade filogenética, ou evolutiva, podemos imaginar uma floresta com duas espécies icônicas da Mata Atlântica: o pau-brasil e a braúna. Estas duas espécies são integrantes do mesmo grupo de plantas: a família das leguminosas. Agora imaginemos uma floresta com árvores de pau-brasil e palmeira-juçara. Esta segunda floresta também abriga duas espécies, porém de famílias diferentes, sendo uma leguminosa e uma da família das palmeiras (Arecaceae). Bom, é claro que florestas tão diversas como as da Mata Atlântica compreendem centenas de espécies, mas o raciocínio ainda é o mesmo: priorizar estratégias de conservação em áreas que protejam a maior diversidade de linhagens evolutivas possível! Em estratégias de restauração ecológica, a aplicação do componente evolutivo também segue a proposta de reintroduzir espécies que sejam representativas dos principais grupos evolutivos.

Interesse em incorporar a dimensão evolutiva em biogeografia da conservação reflete a intenção de maximizar a proteção de todos os ramos evolutivos da árvore da vida. Teoria ecológica e dados empíricos indicam uma forte relação entre diversidade evolutiva, resiliência e funcionamento de importantes aspectos do ecossistema. Da estocagem de carbono à provisão de água, das nascentes nas montanhas às matas ribeirinhas, paisagens com maior diversidade evolutiva de animais, plantas e até mesmo microorganismos do solo, apresentam maior eficácia no funcionamento de múltiplos aspectos ecossistêmicos. Portanto, proteger remanescentes de campos e florestas com alta diversidade evolutiva, bem como investir em restauração considerando o componente evolutivo, são estratégias que representam a proteção e restauração não apenas dos ramos evolutivos da árvore da vida, mas também da proteção e restauração das múltiplas dimensões ecológicas que compõem uma paisagem natural e em amplo funcionamento.

Apesar de estarmos engatinhando, de forma geral, na implementação de políticas públicas efetivas de proteção e restauração, essa complexidade em linhas de ação é necessária para garantir que todas as formas e funções sejam mantidas nos variados habitats e regiões deste esplendor que é o hotspot de biodiversidade da Mata Atlântica!

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

O projeto Mata Atlântica: novas histórias é apoiado pelo Instituto Serrapilheira.

  • Danilo Neves

    Professor de Ecologia da Vegetação na Universidade Federal de Minas Gerais. Desenvolve pesquisas nas áreas que permeiam a ecologia de comunidades, biogeografia e macroecologia da biodiversidade de plantas.

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