A expressão “derramar lágrimas de crocodilo” denota falsidade, hipocrisia. Afinal, como poderiam ser verdadeiras as lágrimas escorridas de um crocodilo comendo sua presa? O que acontece, na verdade, não é nenhum estado emocional por parte do réptil: o movimento de engolir empurra o ar dentro de dutos em seu crânio, pressionando as glândulas lacrimais; por vezes, isso libera lágrimas e faz parecer que o bicho está chorando.
Lágrimas fake. Mas há sim outros motivos para o choro.
Um grupo historicamente importante
Os crocodilianos, isto é, o grupo de animais ao qual pertencem os crocodilos, jacarés e gaviais, resumem-se atualmente a cerca de 27 espécies quase que completamente restritas às regiões tropicais do mundo. Você provavelmente já ouviu dizer que essas criaturas são fósseis vivos, imutáveis desde a época dos dinossauros. E, apesar da aparência pré-histórica, isso não poderia estar mais longe da verdade.
Crocodilianos são membros de uma linhagem de répteis Archosauria que foi muito, muito diversa no passado, especialmente durante o Mesozoico, surgindo há cerca de 250 milhões de anos. Tal linhagem, denominada Pseudosuchia, foi representada por uma ampla gama de organismos que incluía espécies pequenas e grandes (por vezes gigantes), que viviam em terra, em rios e lagos ou no mar; algumas eram carnívoras, outras, piscívoras. Havia mesmo formas herbívoras e por aí vai…
No meio desse balaio, estava a linhagem que originou os crocodilianos modernos, por volta de 100 milhões de anos, no finalzinho do Mesozóico. Por motivos ainda desconhecidos, foram os únicos de toda essa turma que sobreviveram até os dias de hoje. Então, considere: de uma das mais diversas dinastias de vertebrados que o mundo já viu, apenas 27 espécies (muito similares entre si, diga-se de passagem) restaram para contar a história. E cerca de metade dessas espécies enfrenta sérios riscos de extinção.
Crocodilianos em perigo
Atualmente, diversas causas estão por trás da extirpação das populações de jacarés, crocodilos e gaviais mundo afora. A principal é, sem nenhuma surpresa, a perda de habitat. Cada vez mais esses bichos estão vendo ambientes propícios para sua vida serem transformados por ações antrópicas. Limitados a viverem em espaços reduzidos e distantes entre si, acabam perdendo a possibilidade de movimentação e, consequentemente, sua diversidade genética, além de ficarem suscetíveis a eventos catastróficos como secas severas e incêndios.
A caça ilegal e o impacto da pesca vêm em segundo e terceiro lugar, respectivamente. Em muitas regiões, os crocodilianos são caçados como forma de subsistência, sem nenhum manejo sustentável. Considerando que várias populações já estão ameaçadas pela perda de habitat, a remoção indiscriminada de indivíduos pode levar a colapsos populacionais.
O impacto da pesca vai na outra direção, afetando diretamente as populações de peixes e outros organismos que também servem de alimento para os crocs. Além disso, muitos crocodilianos são pegos em redes, podendo se incapacitar, afogar ou serem sacrificados.
Outras ameaças incluem o risco de hibridização, introdução de espécies exóticas, poluição e transformação dos ambientes aquáticos por atividades antrópicas (criação de barragens, canalização de rios etc.) e, claro, mudanças climáticas e todas as secas e enchentes que ela acarreta.
Historicamente, algumas espécies de crocodilianos foram muito perseguidas por motivos comerciais. Artigos customizados com a chamada “pele de crocodilo” são considerados luxo e, por muito tempo, caçadores pilharam populações inteiras desses animais para saciar as necessidades desta indústria e, em menor escala, a comercialização de sua carne e gordura. Entre 1850 e 1833, cerca de 3,5 milhões de aligátores (Alligator mississippiensis) foram mortos nos Estados Unidos. Isso não é nada comparado com o que aconteceu no Amazonas, que possui um registro de exportação de 7.517.226 peles de jacarés num período de quinze anos (1950 e 1965).
Como proteger o seu dragão
Felizmente, para muitos casos, uma vez que deixadas em paz, as populações de crocodilianos costumam se recuperar, por vezes em apenas 25 anos. Mas, dado ao avanço das ações antrópicas em ampla escala e a somatória de diversas ameaças agindo simultaneamente, esse “deixar em paz” tem sido cada vez mais impraticável.
Algumas espécies de crocodilos estão tão ameaçadas que apenas o que pode ser chamado de “conservação tradicional” evitaria a extinção. Tais medidas envolvem a proteção total da espécie em questão e de seu habitat, geralmente em unidades de conservação. No Vietnã, o Parque Nacional Cat Tien é um dos últimos redutos onde crocodilos-siameses (Crocodylus simensis), um dos mais ameaçados vertebrados da Ásia, ainda pode ser encontrado na natureza, gozando de proteção total dentro dos limites da unidade de conservação.
Um dos principais pontos negativos dessa estratégia é que, uma vez começando a se recuperar, os indivíduos tendem a se espalhar para além das áreas de conservação, invariavelmente entrando em contato com humanos. Conflitos entre humanos e crocodilianos existem e são um problema considerável.
Algumas espécies de crocodilianos, especialmente as de grande porte, têm uma característica chave que torna sua proteção difícil, uma característica que micos-leões, pandas e baleias não possuem: eles podem matar pessoas. No conforto de nossas casas urbanas, é difícil lembrar que, em muitos locais do mundo, uma ida ao rio para banho ou coleta de água pode representar um grande risco.
Em locais com uma boa infraestrutura, como o Norte da Austrália, crocodilos “problemáticos” costumam ser removidos por equipes especializadas quando entram em áreas de atividade humana. Isso não é uma realidade para comunidades ribeirinhas em boa parte da Bacia Amazônica, ou na África Central, ou no Sudeste Asiático, por exemplo.
Imagine então chegar nessas comunidades e dizer que um animal que pode ser um perigo a seus familiares precisa ser protegido? Quando se trata de um predador que pode implicar uma ação direta na população humana, tal necessidade de proteção estrita gera um efeito contrário, uma imagem negativa que pode (e vai) atrapalhar qualquer tentativa de conservação, como David Quammen tratou longamente em seu ótimo livro Monstro de Deus.
Uma solução interessante é o manejo sustentável das espécies que possuem interesse comercial. Basicamente, num mundo onde a lógica do lucro vale mais do que qualquer coisa, monetizar crocodilianos pode, em alguns casos, ser uma saída. Uma das estratégias mais utilizadas são fazendas, onde os bichos são criados do ovo ao abate para suprir o comércio de carne e pele, tal qual galinhas. O ponto fraco desse plano é que tais fazendas não têm nenhuma relação com as populações selvagens: se o bicho se extinguir na natureza, isso não vai afetar a produção, logo… por que se importar?
Alternativas para esse problema são a caça controlada e a captura de ovos e filhotes em seus ambientes naturais para criação posterior em cativeiro. Essas estratégias, chamada de ranching, dependem diretamente da saúde de populações em estado natural: uma população maior na natureza garante mais retorno comercial. Para concluir a abordagem sustentável, uma porcentagem dos filhotes que nascem em cativeiro deve ser devolvida ao ambiente natural, ajudando a manter a saúde populacional.
Além disso, diversas pessoas podem se beneficiar dessa estratégia: dos coletores de ovos e caçadores aos rancheiros que criam os filhotes, e mesmo os proprietários das terras onde esses bichos são capturados, que podem cobrar taxas para coleta em suas terras. Como prova do sucesso dessa abordagem temos o caso do crocodilo-marinho (Crocodylus porosus) na Austrália. No período entre 2014-15, no Território do Norte da Austrália, cerca de 2,3 milhões de dólares australianos foram pagos às populações locais que praticavam a coleta sustentável de ovos de crocodilos-marinhos.
Além disso, a Austrália exportou nada mais, nada menos do que 71.142 peles de crocodilo-marinho em 2015, e mesmo assim as populações no país são tidas como saudáveis. O que era uma espécie ameaçada de extinção em meados do século passado não apenas escapou de desaparecer da face da Terra como passa muito bem, obrigado, graças a uma série de medidas de conservação das quais a caça controlada e captura de indivíduos selvagens e ovos é parte importante. Ta aí um belo exemplo de conciliação entre as agendas ambiental e socioeconômica que poderia muito bem ser repetida em outros lugares.
Logo, feito com parcimônia, a técnica de ranching é uma das maneiras mais viáveis de garantir a sobrevivência de algumas espécies de crocodilianos na natureza. Ironicamente, a demanda por pele e carne que quase dizimou crocodilianos no passado é, hoje em dia, uma das principais atividades que evitam sua extinção.
Zoológicos, a última esperança
Se nenhuma das opções anteriores funcionarem, ainda existe um último recurso: zoológicos. Felizmente, a reprodução em cativeiro para a maioria das espécies de crocodilianos viventes já é uma realidade. Se não fosse por essa criação ex situ, ou seja, fora do ambiente natural, algumas espécies já seriam coisa do passado.
É o caso do aligátor-chinês (Alligator sinensis), descrito como funcionalmente extinto na natureza. Isso significa que as populações selvagens minguaram tanto que não conseguem crescer naturalmente, lentamente entrando num vórtice inevitável à extinção. Embora não haja mais que 90 aligátores-chineses livres, centros de conservação abarcam mais de 10.000 indivíduos.
E, como já dizia um certo David Attenborough, as pessoas precisam conhecer para se importar. Um dos pivôs de qualquer projeto de conservação, seja ele tradicional, in situ, ex situ ou por manejo sustentável, é a educação ambiental. Crocodilianos não possuem o apelo carismático da “fofofauna” (apesar de que dizer que eles não possuem carisma é uma heresia). Ainda assim, é possível se identificar com eles, basta conhecê-los.
É o que está acontecendo, por exemplo, nas Filipinas, lar do endêmico e ultra ameaçado crocodilo-das-filipinas (Crocodylus mindorensis). Antigamente visto com hostilidade pela população local, projetos de educação conseguiram transformar sua imagem de maneira positiva. Hoje em dia, ter um “crocodilo nacional” é motivo de orgulho e apreço para muitos. No Brasil, projetos similares buscam o mesmo objetivo, como o Projeto Caiman.
O futuro dos crocodilianos é tudo, menos certo. Ainda que algumas espécies se destaquem por continuarem comuns, lidando bem com o avanço do mundo moderno, essa não é a realidade para a maioria. Como constatado acima, metade das espécies de crocodilianos viventes estão em risco de extinção. Perder metade de uma diversidade já minguada de um dos grupos de vertebrados mais notáveis da história do planeta não poderia ser uma opção. As lágrimas de crocodilo, no caso, seriam sinceras.
Leia Mais:
Quammen, D. (2007). Monstro de Deus: feras predadoras: história, ciência e mito. Editora Companhia das Letras.
Stevenson, C. (2019). Crocodiles of the world: A complete guide to Alligators, Caimans, Crocodiles and Gharials. New Holland Publishers.
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
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Aprendi na escola, na 3° Série escolar em 1992, na Conferência do Rio92 (1992 foi o ano da gênese do conhecimento ambientalismo) que não devemos matar os jacarés, para não aumentar o número de piranhas nos rios !!!!
O homo-sapiens é um ser estranho mesmo; ao mesmo tempo em que segue dizimando espécies mundo a fora, levando várias à extinção, vem agora se preocupando com “restaurar a memória” de dinossauros, para isso promovendo feiras, criando parques temáticos e outras baboseiras. Bem, pelo memos já desenvolve estratégias para, quem sabe, daqui a alguns anos, fazer o mesmo com baleias, tubarões, grandes felinos, gorilas, rinocerontes, mabecos, etc…
Matéria super educativa, cheia de informações interessantes e atualizadas! Muito legal observar isso em um jornal, uma materia sobre conservação com contexto paleontólogico do grupo!
Parabéns pelo texto, que, além de muito bem escrito (coisa quase rara em textos jornalísticos de hoje), traz à luz um tema importantíssimo e sistematicamente negligenciado.
Obrigado!
Sorte e sucesso!