Os benefícios da natureza são múltiplos e as áreas protegidas são o melhor instrumento já inventado para a sua conservação e acesso aos seus benefícios. Mas, o sistema federal de unidades de conservação, sob responsabilidade do ICMBio, encontra-se com orçamentos e quadro de pessoal várias vezes menor que o recomendado. E precisa ser reforçado em sua autoridade, ter autonomia administrativa e responsabilidades de Estado.
1. Importância das áreas protegidas e conservadas
Como consta na Constituição Brasileira, “todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida”. O direito de acesso dos benefícios da natureza conservada também é considerado nos direitos humanos fundamentais de terceira geração. Como os direitos são de todos, eles devem ser considerados com equidade. Não é mais aceitável que poucos usufruam da natureza, ampliando as diferenças sociais e socioeconômicas do país. (Considera-se também, cada vez mais, os direitos da própria natureza.) Considerar tais direitos representa buscar e promover uma sociedade melhor. Mas essa sociedade melhor precisa se reconectar com a natureza. Dessa forma, a possibilidade de reconexão precisa estar aberta a todas as partes interessadas, pessoas individuais, coletivos e organizações.
Considerando as unidades de conservação como foco de análise, é importante apontar que, em praticamente todos os países com importantes sistemas de áreas naturais protegidas, eles são geridos por instituições especializadas, frequentemente, com relativa autonomia. Entre os casos que podemos mencionar nesse tema, podem ser citados a África do Sul, a Austrália, o Canadá, o Quênia, os Estados Unidos, a Argentina, o Peru, a Tanzânia, a Colômbia, o Chile, a Costa Rica, a Nova Zelândia e a França, por exemplo. Mas a comparação entre países não é simples, pela carência de estudos a respeito, pelas diferenças dos modelos de gestão dos sistemas de áreas protegidas e pelas especificidades culturais e ambientais em cada caso. Entretanto, é clara a necessidade de uma instituição especializada, com relativa autonomia, para a gestão do (sub)sistema federal de áreas protegidas.
É importante considerar que as unidades de conservação têm múltiplas funções. Por exemplo, embora menos lembrado em relação ao controle, esse crescimento em área de UCs significou cerca de 1/3 da redução do desmatamento na Amazonia brasileira naquela mesma década, com a consequente redução das emissões de gases do efeito estufa resultantes do desmatamento e da degradação florestal. Para isso foi necessária uma significativa ampliação da cobertura das unidades de conservação, assim como do reconhecimento dos territórios indígenas, como mostra a figura 1. Nesse período mais importante o Brasil se destacou com recordes mundiais nesses temas, para o que contou com importantes projetos e programas, como Áreas Protegidas da Amazonia (Arpa), que apoiou 60 milhões de hectares de unidades de conservação, e o Projeto Integrado de Proteção às Populações e Terras Indígenas da Amazônia Legal, que viabilizou condições para uma política pública de apoio do reconhecimento do direito dos povos indígenas ao seu território.
Dessa forma, naquele momento, o Brasil foi responsável pelo maior impacto global, em termos de conservação da biodiversidade, de reconhecimento dos direitos dos povos indígenas e comunidades tradicionais e, também, por consequência, na mitigação das mudanças climáticas.
Mas o valor econômico das unidades de conservação também é muito significativo. “A contribuição das unidades de conservação para o desenvolvimento econômico e social é considerável, com retornos muito superiores aos valores investidos na sua gestão.” As unidades de conservação movimentam ou representam valores econômicos entre R$ 67 e 76 bilhões anuais e promovem muito mais de 300 mil ocupações de trabalho, considerando apenas o relativamente pouco que é possível contabilizar hoje em dia. (YOUNG; MEDEIROS, 2018.)
“Entre suas funções definidas pela legislação também está o apoio às populações tradicionais extrativistas, para as quais são criadas as reservas extrativistas e similares. Hoje [em 2018] são estimadas em mais de 350 mil pessoas diretamente apoiadas pelas reservas geridas pelo ICMBio. São seringueiros, ribeirinhos, pescadores artesanais, extrativistas de castanha-da-Amazônia, de óleos e essências, de açaí, de frutas e outros produtos, que vivem do que lhes oferecem os ecossistemas e prestam importante serviço ambiental à sociedade pela conservação dos seus territórios.” (MARETTI et al. 2018.)
E o potencial do turismo é muito significativo: “Os brasileiros querem mais contato com a natureza – dizem 90% das pessoas entrevistadas em pesquisa do Ibope de setembro de 2018. E os nossos parques e reservas são a melhor forma de viabilizar isso. As áreas protegidas prestam muitos e importantes serviços à sociedade, pois são a melhor forma de conservar a natureza e os serviços ambientais e de permitir o acesso da população a eles.” (MARETTI et alii, 2018.) O ICMBio tem identificado uma significativa contribuição ao desenvolvimento local: “cada R$ 1 investido no ICMBio em 2018 produziu R$ 15 em benefícios econômicos para o Brasil” (ICMBIO, 2019). Outro estudo concluiu que, no cenário desejado: “Os parques naturais brasileiros concentram um valor que vai muito além do que existe dentro de seu território. A visitação nessas unidades de conservação possui o potencial de gerar um milhão de empregos, além de um impacto substancial no PIB brasileiro: entre R$ 36 bilhões e R$ 44 bilhões. Nesse cenário, o número de visitas a nossos parques aumentaria cerca de quatro vezes, atingindo a quantidade de 56 milhões ao ano.” (SEMEIA, 2021.)
2. Quadro de pessoal
Mesmo que a ‘ciência da gestão da conservação’ não tenha suficiente atenção, recentemente um estudo científico global foi publicado sobre pessoal ocupado nas áreas protegidas (APPLETON et al., 2022). Infelizmente, nele o Brasil é identificado como um dos países com menor contingente de pessoal para esse fim. Efetivamente, considerando dados oficiais disponíveis, no ICMBio, em 2022, pode-se dimensionar 146.516 hectares por servidor (excluindo-se aqueles alocados na presidência e nas diretorias). Segundo esse estudo internacional, idealmente, a relação deveria ser de 1 servidor para cada 1.333 hectares (terrestres). Assim, seguindo as recomendações internacionais, deveriam estar disponíveis 128.600 servidores para os 171.424.192 hectares de unidades de conservação federais – ou seja, um número de servidores 110 vezes maior do que o atual. (Ressaltando que o total de unidades de conservação cadastradas no CNUC nos três níveis de governo, é de cerca de 256,5 milhões de hectares.)
Sem dúvida uma estimativa inviável, na atual conjuntura. No entanto, vale considerar que, mesmo sem levar em conta a recomendação ideal da pesquisa internacional, mas comprando com países com algum grau de similaridade com o Brasil, seriam necessários para a superfície sob responsabilidade do ICMBio, minimamente:
- entre cerca de 4 mil e 43 mil servidores pelo padrão dos países vizinhos da América do Sul (como Venezuela, Uruguai, Equador, Argentina, Suriname, Colômbia, Guiana, Peru, Chile, Paraguai e Bolívia);
- entre cerca de 24 e 182 mil servidores quando comparado com a média de servidores por ha de alguns países da África e da Ásia (como República Democrática do Congo, Congo, Indonésia, Nigéria, África do Sul, Quênia e Tanzânia);
- entre cerca de 10 mil e 53 mil servidores se comparados as médias de outros países de grandes dimensões (como Austrália, Canadá, China e Rússia); e
- entre 40 e 118 mil quando comprando com alguns países desenvolvidos (como Alemanha, Espanha, França, Reino Unido e Estados Unidos).
Vale lembrar que alguns desses países são megadiverso, como o Brasil, e alguns também são de grandes dimensões, mas alguns têm importante turismo de natureza, o que seria desejável por aqui.
Ainda segundo o Portal da Transparência, o Ministério do Meio Ambiente detém pouco mais de 1% dos servidores do governo federal. Mesmo reconhecendo importantes diferenças de responsabilidade e tipo de funções, pode-se ter uma base se comprado com os Ministérios da Defesa e da Educação, com mais de 40% do total cada um em relação ao total. Igualmente, com os Ministérios da Saúde, da Justiça e Segurança Pública, do Trabalho e da Agricultura, Pecuária e Abastecimento, os quais tem entre cerca de 2,5 e mais de 5% do total do corpo de servidores federais. (Incluindo órgãos vinculados em todos os casos.)
Em tese, o total de pessoal dedicado às áreas protegidas deveria estar relacionado com a dimensão territorial, o tipo e o número de UCs envolvidas e as ameaças sobre as mesmas, além da pressão de uso (como o turismo ou uso sustentável, por comunidades locais ou a pesquisa, por exemplo). Assim, pode-se considerar que, de acordo com o quadro nacional de UCs seria necessário pelo menos triplicar o número de servidores do ICMBio a curto e médio prazos, além de conceber um plano estratégico para alcançar os padrões internacionalmente adequados em termos de pessoal, especialmente considerando a altíssima diversidade biológica existente no país. Mas essa estratégia a ser construída deveria considerar o estabelecimento de múltiplas parcerias, de diversos tipos, com comunidades locais, organizações da sociedade civil, universidades e outros órgãos governamentais, inclusive das esferas estadual e municipal, além de abrigar algumas concessões onde for indicado e pactuado.
3. Necessidades econômicas
Infelizmente ainda não temos um estudo global consistente, atualizado e adequado sobre as necessidades financeiras, permitindo comparações entre países ou recomendando padrões mínimos.
Segundo Pereira (2021), no critério de dispêndio orçamentário por hectare de área terrestre protegida, “o país mais biodiverso do mundo [o Brasil] também fica anos-luz atrás dos EUA, onde o gasto das quatro agências deverá alcançar o equivalente a R$ 273,00 em 2021. Considerando o orçamento total previsto para o ICMBio, a despesa em 2021 não passará de magros R$ 4,42 por hectare. As quatro agências dos EUA respondem pela gestão de aproximadamente 249 milhões de hectares, ou 28% do território terrestre do país. Já o Instituto Chico Mendes administra em torno de 79 milhões de hectares, 9% da área terrestre do Brasil.” Portanto, comparando, o orçamento das áreas protegidas nos EUA é equivalente a mais de 60x (sessenta vezes) o orçamento do ICMBio naquela análise. Segundo outra avaliação, a previsão, pelo orçamento de 2022, seria de R$ 1,20 por hectare! Totalmente insuficiente.
Seguindo um estudo global sobre orçamentos das áreas protegidas (JAMES; GREEN; PAINE, 1999; relativamente um pouco defasado), pela média global, seriam necessários cerca de R$ 8 bilhões para a superfície sob responsabilidade do ICMBio, sendo R$ 18,5 bilhões por padrões dos países desenvolvidos R$ 2,7 bilhões pelas necessidades médias da América do Sul. Ou seja, mesmo considerando valores despendidos com pessoal, o orçamento atual do ICMBio precisara multiplicar por aproximadamente 15x para chegar à média mundial e umas 5x para a média das necessidades da América do Sul (considerando aproximadamente o orçamento do ICMBio de 2021 em Freitas et al., 2022).
Uma avaliação relativamente recente sobre o Brasil (SILVA et al., 2021) considerou que, em 2016, 282 unidades de conservação federais terrestres apresentavam necessidade de cerca de R$ 2,5 bilhões para suas necessidades desse ano, estimando o déficit em 84,5% desse montante. (Ainda, déficits ocorreram em 76,5% das UCs avaliadas, sendo o déficit pior nas UCs maiores e menos grave naquelas das regiões com maior IDH.) Portanto, a partir desses valores se pode estimar, grosseiramente, uma necessidade anual de algo ao redor 2,5x maior, considerando a área total sob responsabilidade de gestão pelo ICMBio. Ou seja, algo ao redor de R$ 6 bilhões por ano, portanto cerca de 11x maior que o orçamento do ICMBio (considerando aproximadamente o orçamento do ICMBio de 2021 em Freitas et al., 2022).E o estudo indica que a tendência tem sido de piora nos últimos anos.
Estudo associado (SILVA et al., 2019) mostrou uma variação muito expressiva de dispêndios entre regiões e sobretudo entre unidades de conservação, caracterizando que aquelas consideradas nesse estudo como de uso múltiplo (mais que o grupo de categorias de uso sustentável) receberam significativamente menos recursos que aquelas de proteção estrita (poucas categorias).
Em 2018, a estimativa nacional para as áreas protegidas marinhas (MARETTI et al., 2019) estimou uma necessidade de recursos complementares de cerca de R$ 1,8 bilhões (US $340 milhões) para um período de 8 anos (para posterior consideração das necessidades posteriores). O Programa Arpa – Áreas Protegidas da Amazônia, com apoio de mais de 60 milhões hectares em unidades de conservação, federais e estaduais, estimou somente para sua terceira fase a necessidade de centenas de milhões de dólares estadunidenses, tendo captado logo no seu início mais de R$ 1,1 bilhões (US $215 milhões – sempre convertendo em taxas atuais), da cooperação internacional governamental (Fundo Amazônia, Alemanha, Fundo Global do Meio Ambiente – GEF etc.) da filantropia privada nacional e internacional. Outros exemplos poderiam ser citados (Lira, na Amazônia, GEF Mar, GEF para Cerrado, Pantanal e Caatinga, GEF da Conservação Privada, GEF Paisagens Sustentáveis da Amazônia etc.), mas o importante é a noção de que, além de um orçamento adequado, há necessidade de apoio complementar de projetos da casa de dezenas de milhões de dólares estadunidenses por ano.
4. Considerações finais
Os benefícios da natureza, ou da natureza conservada, para a sociedade são múltiplos, como já exploraram vários estudos, manuais e documentos sobre os serviços dos ecossistemas (inclusive organizando-os em conjuntos ou categorias). Como as áreas protegidas são o melhor instrumento já inventado para a conservação da natureza, e também um dos melhores para o acesso aos seus benefícios, pode-se associar os benefícios da natureza, ou da natureza conservada, aos benefícios das próprias áreas protegidas. Os quais incluem, por exemplo, a melhor saúde e o bem-estar, opções de lazer, conhecimento e sociabilidade em família ou outros grupos sociais, a redução dos impactos dos eventos climáticos drásticos (adaptação ou enfrentamento às mudanças climáticas – inclusive a chamada ‘adaptação baseada em ecossistemas’), uso sustentável dos recursos naturais, desenvolvimento socioeconômico com base nos ecossistemas, direitos a territórios tradicionais, possibilidades de pesquisa, inclusive ecológica e socioeconômica, possibilidades de reconexão, individual ou coletiva, pessoal (física e mental), mística ou religiosa, vivências (experiências…), com a natureza, aproveitamento de valores culturais (como arqueologia, história, valores místicos etc.), inclusive paisagens culturais, entre outros. Tais benefícios, todos, são especialmente importantes para as cidades e a população local. Com a situação e tendência do mundo, é cada vez mais importante a conservação da natureza e a melhor interação entre sociedade e natureza, para benefício de ambas, como demonstram os estudos dos Painéis Intergovernamentais Internacionais sobre Biodiversidade e Ecossistemas e Mudanças Climáticas (IPBES e IPCC) e as avaliações cada vez mais consistentes sobre a importância dessas relações para o bem-estar da sociedade.
Ao mesmo tempo temos o sistema federal de unidades de conservação, sob responsabilidade do ICMBio, francamente desvalorizado, com orçamentos e quadro de pessoal várias vezes menor, chegando a dezenas de vezes menor, que o recomendado e mesmo que os países vizinhos. Assim, como as demais as instituições da agenda socioambiental, para cumprir os seus objetivos, o ICMBio precisa ter pessoal capacitado, recursos econômicos, e estratégias adequadas. E também ter relativa autonomia administrativa, com responsabilidades de Estado, como a fiscalização e tem papel de polícia administrativa.
Nota:
Nós, especialistas, cientistas, ex-dirigentes de instituições e representantes de organizações, preparamos este documento sobre as instituições responsáveis por apoiar a agenda socioambiental (como ICMBio, Ibama, Funai, Incra, Fundação Palmares, MMA, ANA e SFB, entre outras) de forma a refletir, com base em informações técnicas, e recomendar decisões e ações para melhor servir à sociedade brasileira.
Consideramos a agenda socioambiental incluindo principalmente a conservação da natureza, ou dos sistemas naturais e da biodiversidade, com distribuição equitativa dos seus benefícios à toda sociedade, e os direitos e políticas públicas voltadas aos povos indígenas e outros povos e comunidades tradicionais. Isso inclui as unidades de conservação e outros tipos de áreas protegidas e conservadas, territórios tradicionais, assentamentos ambientalmente diferenciados e fiscalização ambiental, entre outros.
Consideramos importantes as várias instituições do governo federal responsáveis pela agenda socioambiental (ICMBio, Funai, Incra, Fundação Palmares, Ibama, ANA, SFB, MMA etc.) e defendemos a sua recuperação, mas este documento dá mais atenção para algumas delas, seja por acesso a informações em tempo hábil, seja por especialidade ou conhecimento dos/as coautores/as.
Este é o segundo de uma série de três artigos, baseados em um documento técnico (disponível, com mais detalhes), de reflexão e difusão, que considera a organização das melhores informações e argumentos técnicos e científicos, entre outros, para orientar e fundamentar as ponderações e recomendações aqui apresentadas (também enviadas ao GT de Meio Ambiente da Transição Nacional). O primeiro artigo tratou da situação trágica da agenda socioambiental. O terceiro apresentará uma mensagem e recomendações ao governo eleito.
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
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