Ao contrário dos inomináveis que estão rascunhando mais um vexame internacional do Brasil, dessa vez na COP-26, em Glasgow, Escócia, sabemos perfeitamente que a Terra não é plana, que vacinas salvam vidas, e que os corais constroem recifes riquíssimos em biodiversidade e que proveem bilhões de dólares em serviços ecossistêmicos. Sabemos também que os corais são extremamente sensíveis às mudanças climáticas. Ao sofrerem com o fenômeno do branqueamento, esses organismos estão dando um alerta claro sobre nossa incapacidade de reduzir emissões e controlar a degradação ambiental generalizada. Uma nova linha de pesquisa desenvolvida por cientistas brasileiros e australianos na região de Abrolhos tem ajudado a desvendar mais um serviço fornecido pelos corais: o de “detetives ecológicos”. Esse termo, que apropriamos do livro clássico do cientista pesqueiro Ray Hilborn e do matemático Marc Mangel, representa o trabalho investigativo dos cientistas que, muitas vezes, se aproxima ao de um detetive diante da cena do crime. Em ambos os casos, são colocadas à prova diferentes hipóteses até que se possa reconstruir uma figura coerente dos eventos investigados.
O rompimento da barragem de Fundão (Mariana, MG), operada pela Samarco, joint venture entre as gigantes Vale S.A. e BHP-Billington, ocorreu em novembro de 2015 e despejou 40 milhões de metros cúbicos de rejeitos na bacia do rio Doce. A avalanche de lama também carreou, 650 km rio abaixo, uma quantidade substancial de contaminantes sedimentados no leito do rio ao longo de séculos de maus tratos. O resultado foi um dos maiores desastres ambientais da história da mineração mundial. Seus efeitos na bacia hidrográfica foram terríveis, e incluíram o desaparecimento do distrito de Bento Rodrigues e dezenove mortes. Infelizmente, ainda resta tratar adequadamente da saúde física e mental dos atingidos, descontaminar solo e águas, recompor matas ciliares e bens materiais perdidos, e recuperar a economia local. Trata-se de um grande desafio, que se soma àqueles impostos pela chegada dos contaminantes ao Oceano, destino final de boa parte dos nossos resíduos, via de regra longe dos olhos e da atenção da sociedade.
A contaminação do Oceano, além de ser difícil de avaliar e remediar, representa sério risco à biodiversidade e à saúde humana, especialmente em longo prazo. O exemplo mais icônico dos processos pervasivos da contaminação marinha é o Desastre de Minamata, no Japão. O despejo de metais tóxicos pela Chisso Corporation (você provavelmente está lendo esse texto em uma tela de cristal líquido, LCD, produzido pela Chisso!), iniciado na década de 1930, teve efeitos registrados em humanos apenas depois de três décadas, quando casos neurológicos graves começaram a surgir. O contencioso jurídico se arrastou por mais quarenta anos e também é conhecido por ter influenciado a democratização do Japão após a Segunda Guerra. No entanto, as punições aos responsáveis foram amenas e as indenizações foram pagas apenas após a morte de muitas das vítimas, sendo que o derradeiro processo judicial foi resolvido apenas em 2004. Os últimos estudos indicam mais de mil mortos e dezenas de milhares de pessoas contaminadas por esse desastre, que não deveria ser relevado pelos poluidores do presente, pela sociedade, e nem tampouco pelos juízes de causas similares em todo o mundo.
Todos os ralos levam ao Oceano
No caso do rompimento da barragem da Samarco, a ausência de levantamentos prévios em vários dos ecossistemas atingidos na zona costeira impossibilita as clássicas comparações do tipo Antes-versus-Depois. Porém, nos casos em que dados prévios estavam disponíveis, os contrastes são impressionantes. No estuário, as concentrações de alguns metais, como o ferro (Fe), saltaram mais de 60 vezes após o desastre. A escolha de uma área controle para “comprovar” a contaminação e seus efeitos nos ecossistemas também é praticamente impossível, considerando as enormes dimensões do desastre e da área afetada, cujas características são únicas. Para completar o desafio, os monitoramentos impostos pela justiça como substituição ao pagamento de bilhões de reais em multas, na forma de um Termo de Transação e Ajustamento de Conduta (TTAC), só foram iniciados três anos após o desastre e vêm sofrendo sucessivas paralisações e questionamentos. Trata-se de uma constelação de interesses cuja discussão nos levaria novamente para longe dos “corais detetives”.
Um dos questionamentos mais renitentes diz respeito à chegada ou não de contaminantes oriundos do Desastre de Fundão ao banco coralíneo do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos e adjacências, joia da coroa da biodiversidade marinha brasileira. A região, para além da diversidade de organismos e riqueza de espécies endêmicas, compreende uma área recifal única em todo o mundo, onde também ocorrem vastos bancos de rodolitos. Os modelos matemáticos de circulação oceânica ajudam a circunscrever os caminhos possíveis dos contaminantes, mas possuem limitações. Isso porque ainda não existem dados suficientes que permitam alimentá-los e validá-los, empiricamente, na escala necessária para representar a dispersão das partículas, dos colóides, e dos materiais dissolvidos na água. O sensoriamento remoto também tem ajudado a detectar os caminhos da poluição do desastre, uma vez que os satélites conseguem registrar sutilezas na cor da superfície do mar. No entanto, após certos limiares de difusão e depois do encontro entre plumas de diferentes origens, inclusive das drenagens menores que também deságuam na região costeira, a pegada do Desastre vai se perdendo.
Surgem, nesse contexto de incertezas, os “corais detetives”. Ao crescer, esses organismos constroem esqueletos carbonáticos que são responsáveis por boa parte da complexidade dos recifes e do equilíbrio climático do planeta, uma vez que estocam vastas quantidades de carbono, medidas em gigatoneladas (Gt), ou bilhões de toneladas, em cristais de carbonato de cálcio (CaCO3) . Trata-se de um processo lento (milímetros por ano) e contínuo que ocorre durante as décadas, ou mesmo séculos, de vida de uma colônia de coral. Quando visualizados sob raios-X, os esqueletos revelam uma sequência “empilhada” de pares de bandas com diferentes densidades e extensões (Figura 1). O estudo desses padrões permite reconstruir algumas das condições dos locais onde os corais cresceram, de forma semelhante aos anéis de crescimento de árvores. Diversas informações relevantes podem ser extraídas desses arquivos naturais. Por exemplo, durante eventos severos de branqueamento, as taxas de crescimento linear caem e resultam na formação de bandas de altíssima densidade, as chamadas “bandas de estresse”. O primeiro evento global de branqueamento, durante o El Niño de 1998, foi pouco monitorado nos recifes brasileiros, mas o enorme estresse térmico ficou registrado no esqueleto dos corais de Abrolhos (Figura 1).
Além de registros sobre o crescimento, que vêm sendo feitos desde a década de 1970 e têm contribuído para o desenvolvimento da paleoceanografia, novas aplicações para as bandas esqueletais dos corais têm sido buscadas no campo da biogeoquímica. Isso porque alguns elementos químicos podem ser incorporados durante a formação dos cristais de aragonita, a forma de CaCO3 fabricada pelos corais, principalmente por meio da substituição do cálcio por outros íons (Figura 2). Quando associados à cronologia das bandas, os registros das concentrações desses elementos permitem recuperar informações sobre a água do mar. Por exemplo, um estudo sobre as concentrações de Bário (Ba) em bandas de corais formadas entre 1750 e 1998 demonstrou que o transporte de sedimentos para o mar aumentou significativamente após a ocupação europeia da Austrália, em resposta ao desmatamento e à agropecuária. Além do Ba, que é uma “assinatura” da influência terrígena no mar, outros elementos-traço (ou seja, elementos que ocorrem em concentrações baixíssimas), tais como o Estrôncio (Sr) e o Urânio (U), registram variações na salinidade, temperatura e outras condições da água do mar. Diversos poluentes, especialmente metais, também deixam sua “impressão digital” nos esqueletos, reservando um papel importante aos corais enquanto “detetives ecológicos” em cenários pobres em dados.
Acessar a biblioteca biogeoquímica das bandas de crescimento não é tarefa trivial, mas tem ganhado impulso com o desenvolvimento da técnica de ablação a laser. Ao receber um “tiro” de laser, os elementos na amostra de coral são vaporizados e injetados em um Espectrômetro de Massas com Plasma Indutivamente Acoplado (ICP-MS). Esse instrumento usa um plasma de argônio que ioniza as amostras e permite medir, simultaneamente, dezenas de elementos, mesmo que suas concentrações sejam baixíssimas (partes por bilhão). Como cada “tiro” é dado em uma banda específica do coral, é possível recuperar as concentrações correspondentes ao momento da sua formação. Em um trabalho recém publicado, apresentamos as concentrações trimestrais de nove elementos incorporados entre 2014 e 2018 no esqueleto de um coral que viveu a 150 km da costa, alguns quilômetros a leste (em direção ao oceano aberto) do Parque Nacional Marinho dos Abrolhos (Figura 3). Nossa ideia foi buscar um “coral detetive” que tivesse registrado as condições da região antes e depois do rompimento da barragem de Fundão (novembro de 2015). Buscamos também examinar uma colônia que não tivesse sofrido influência direta de dragagens, cidades, portos e da descarga de rios menores, para evitar possíveis ruídos oriundos de outras fontes de elementos-traço.
Apesar do nosso “coral detetive” ter vivido a 220 km da foz do rio Doce, encontramos uma anomalia positiva (=aumento em relação à média da série temporal) de Ferro (Fe) no início de 2016, evidenciando que a contaminação marinha decorrente do desastre se estendeu até os recifes de Abrolhos. Depois dessa onda de Fe, as concentrações de diversos elementos, tais como Chumbo (Pb), Vanádio (V), Zinco (Zn) e Ítrio (Y) também passaram a apresentar aumentos nas bandas do “coral detetive” que, embora não tenha morrido após a onda de Fe, teve suas taxas de crescimento reduzidas. Por serem considerados impressões digitais do rompimento da barragem de Fundão, os aumentos nas concentrações de Fe, V e Zn nas bandas posteriores a 2015 merecem destaque.
Além dessas “impressões digitais”, ou evidências diretas, diversos poluentes que não faziam parte do rejeito acumulado na barragem podem se relacionar com desastre, especialmente em longo prazo, uma vez que o estuário os acumula e tende a se comportar como o que os cientistas têm chamado de “bomba-relógio”. Trata-se de processos indiretos que desafiam, mas não impedem, a comprovação de “nexo causal” entre o rompimento da barragem, a contaminação, e os danos aos ecossistemas. No caso dos recifes coralíneos sabe-se que metais afetam o metabolismo e a reprodução de corais e outros organismos, sem necessariamente implicar em sua morte (efeitos sub-letais). Mais uma vez, o paralelo com a longa linha do tempo do Desastre de Minamata se faz necessário, ou seja, não se deve colocar em cheque a necessidade de manutenção dos monitoramentos e a urgência de medidas mais incisivas para o manejo da zona costeira do norte do Espírito Santo e sul da Bahia.
Caminhos da recuperação
Embora o primeiro passo para resolver um problema seja reconhecer sua existência, as mineradoras têm argumentado, em juízo, pela “inexistência de dados que permitam qualquer inferência sobre a contaminação dos animais, bioacumulação de metais pesados ou toxicidade para seres humanos”. Esse negacionismo, na contramão das evidências científicas, arrasta os contenciosos e protela a implementação de intervenções que podem acelerar a recuperação. Enquanto diversas ações concretas e urgentes seguem represadas por filigranas, a situação da zona costeira vem piorando.
Ao longo do percurso da lama e dos poluentes, o estuário se revela como o local mais crítico, uma vez que se localiza no trecho mais baixo e menos hidrodinâmico da bacia hidrográfica do rio Doce. Na chegada ao estuário, assim como no local do rompimento da barragem, os contaminantes são pouco biodisponíveis, estando controlados por oxi-hidróxidos de ferro (Fe), notadamente a Goethita e a Hematita. No entanto, os baixos níveis de oxigênio nos sedimentos estuarinos favorecem a redução desses compostos e a liberação crônica de contaminantes para a plataforma continental. Portanto, o desenvolvimento de estratégias de biorremediação para o estuário deveria estar no topo da lista de prioridades. Além disso, diante da enorme dimensão do problema na zona costeiro-marinha, e da sua potencial escalada nas décadas por vir, as duas líderes mundiais no setor de mineração deveriam fomentar um monitoramento cada vez mais aprofundado da saúde dos ecossistemas e da qualidade do pescado, tomando também a dianteira do processo de restauração ambiental. A implementação plena das Unidades de Conservação (UCs) marinho-costeiras e da área de impedimento à pesca ao largo da foz do rio Doce, bem como o fomento ao planejamento espacial marinho e ao manejo da pesca nas UCs de uso sustentável, compreende um conjunto de medidas básicas e essenciais que potencializam a resiliência dos ecossistemas afetados.
Nosso trabalho publicado na revista Science of the Total Environment, foi financiado parcialmente pela Fundação RENOVA e também recebeu apoio do CNPq e da FAPERJ.
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