Análises

Os desafios jurídicos das trilhas de longo curso no Brasil

A expansão das trilhas brasileiras torna cada vez mais necessária a criação de um arcabouço legal que sustente e legitime a implementação das trilhas

Getulio Vogetta · Daniel Ribeiro ·
13 de abril de 2021 · 4 anos atrás
A construção de arcabouço jurídico adequado é um dos passos importantes para a implementação das trilhas de longo curso no Brasil. Foto: Duda Menegassi

Apesar de suas dimensões continentais, de sua biodiversidade sem paralelo no mundo e da exuberância de suas paisagens naturais, o Brasil ainda engatinha no cenário global em matéria de ecoturismo e de recreação em contato com a natureza. Isso se deve, em boa medida, à falta de vontade política, à incipiência de seus marcos regulatórios e à falta de coordenação entre os atores governamentais e não-governamentais.

Muito embora a reversão desse quadro represente um desafio de enormes proporções, já passou da hora do Poder Público e a sociedade civil despertarem desse estado de catatonia e, enfim, levarem a efeito ações concretas, pragmáticas e factíveis capazes de alavancar o desenvolvimento do País nessa seara.

Um grande movimento de transformação nesse sentido já está em curso desde 2017, quando, por uma iniciativa articulada a nível governamental, o ICMBio capitaneou um esforço para tirar do papel o projeto de fomento e sistematização de uma rede de trilhas para o Brasil, semelhante às que existem, por exemplo, nos Estados Unidos da América e na Europa. O movimento ganhou reconhecimento formal com a publicação da Portaria Conjunta (MMA/MTur) nº 407, de 19 de outubro de 2018, que instituiu a Rede Nacional de Trilhas de Longo Curso e Conectividade – “Rede Trilhas”, inserida no Programa Nacional de Conectividade de Paisagens – CONECTA, por sua vez criado pela Portaria MMA nº 75, de 26 de março de 2018.

Já há muito tempo as trilhas deixaram de figurar como simples meios de deslocamento para se tornarem verdadeiros instrumentos de contato com a natureza, além de grandes vetores de desenvolvimento turístico e de conectividade de paisagens. Com efeito, as trilhas possibilitam o contato do homem com os ambientes naturais, proporcionando à coletividade formas genuínas de recreação em contato com a natureza e de educação ambiental. Para além disso, elas estimulam a ideia de pertencimento e de sensibilização da sociedade quanto à necessidade de preservar o meio ambiente, ao mesmo tempo em que servem à fauna como corredores de ligação entre os diferentes remanescentes de áreas vegetadas.

Numa simbiose perfeita entre desenvolvimento e sustentabilidade, as trilhas também possuem enorme potencial para impulsionar o setor turístico, haja vista a extensa cadeia de serviços que poderia ser desenvolvida no entorno de seus eixos, permitindo ao Brasil, enfim, conquistar a parte que lhe cabe nesse pulsante e expressivo mercado global. Trata-se, sem dúvida, da construção de um grande legado para as gerações que ainda estão por vir.

Todavia, para atingir o potencial imaginado para um sistema dessas proporções no cenário brasileiro, é preciso enveredar pelos tortuosos meandros da ordem jurídica. É que as trilhas devem ser dotadas de mecanismos de regulação que, de um lado, garantam a preservação dos atributos que justificaram sua criação e, de outro lado, assegurem à coletividade livre trânsito por seu curso. Ocorre, porém, que a efetivação desses direitos acarreta, por via reflexa, em restrições ao direito de fruição dos proprietários dos imóveis privados cortados pelas trilhas, tanto por forçá-los a tolerar a passagem de estranhos em seus domínios, quanto por limitar significativamente as possibilidades de exploração da área classificada. Tudo isso em meio a uma intrincada legislação ambiental que tem se mostrado incapaz de garantir, na prática, a preservação da biodiversidade.

Nesse norte, a perspectiva vislumbrada para uma Rede de Trilhas sob o viés de um grande sistema, articulado nacionalmente, passa, sem dúvida, pela equalização de diferentes normas e princípios de direito que, muitas vezes, colocam-se na prática em oposição um ao outro. De fato, não é tarefa simples, na seara do Direito Ambiental, identificar até onde vai o direito de uso de um bem privado à luz da função social que ele deve desempenhar, tampouco encontrar o equilíbrio perfeito entre, de um lado, o direito de propriedade, e, de outro, os direitos de ir e vir, ao lazer e um meio ambiente ecologicamente equilibrado.

Ou seja, há um vasto campo de relações sociais que demanda mecanismos jurídicos de proteção aos interesses dos diferentes atores envolvidos, os quais, apesar de aparentemente conflitantes, podem ser dinamizados e harmonizados de maneira a convergir para atender a anseios comuns. Tudo dependerá de como essa diversidade de interesses, todos eles legítimos, será tutelada.

Nesse contexto, à luz do princípio da legalidade, segundo o qual ninguém pode ser compelido a fazer ou deixar de fazer algo senão em virtude de lei, uma solução juridicamente possível e muito cogitada que se vislumbra consiste em compatibilizar os relevantes interesses envolvidos na hipótese por meio de edição de novas leis.

No entanto, o processo legislativo, sozinho, não pode ser visto como uma panaceia, pois se não se pautar em uma realidade prática e não contar com a ampla e efetiva participação da sociedade civil, sobretudo para permitir o sopesamento de todos os valores sociais em jogo, fatalmente estará fadado ao fracasso. É o que se observa muito no Brasil, onde as leis se dividem entre as que “pegam” e as que “não pegam”, sendo que essas últimas geralmente malograram por se mostrarem inexequíveis na prática.

Neste giro, acreditamos que o grande desafio seja o de primeiramente criar um arcabouço legislativo simples, de regulação responsável e, parafraseando Aristóteles, equilibrado – na ideia de justa medida, para não “engessar” as iniciativas da sociedade civil e que ao mesmo tempo estimulem segmentos sociais potencialmente mais resistentes ao diálogo.

O sucesso do modelo, cabe reforçar, sem dúvida passa pela participação ampla da sociedade civil – sobretudo de seus diversos representantes no meio jurídico do país, na busca de modelos e soluções negociadas para que se possa pensar coletivamente numa base legal capaz de respaldar o Poder Público na implementação da Rede Nacional de Trilhas de Longo Curso e Conectividade, sem autoritarismos e imposições que possam desembocar em soluções traumáticas e dispendiosas, como ocorreu no passado, quando o modelo de implementação de áreas protegidas foi concentrado na via da desapropriação de terras. Nessa toada, a previsão do uso de soluções alternativas, tais como o estabelecimento negociado de servidões, a delegação de competências a parceiros privados e organizações da sociedade civil e, especialmente, a criação e o oferecimento de incentivos financeiros fiscais e extrafiscais, entre outras possibilidades, certamente será decisiva para o êxito da proposta.

Como se observa, ainda há muito mais perguntas do que respostas no caminho da construção de um modelo considerado adequado aos objetivos aqui apresentados. Acreditamos que no rumo desses objetivos trilharemos por muito estudo e, sobretudo, pelo diálogo franco entre os envolvidos. Assim, conclamamos a todos que possuam formação e prática jurídica, bem como representatividade junto aos segmentos sociais potencialmente interessados, a participar desses debates e a somar conosco como voluntários no Grupo de Trabalho da Diretoria Jurídica da Rede Brasileira de Trilhas.

Para mais informações cadastre-se no link disponível aqui.

Assista a live da Rede Brasileira em parceria com ((o))eco sobre o contexto jurídico das trilhas:

*Sobre os autores:

Getulio Vogetta é Diretor Jurídico da Rede Brasileira de Trilhas e do Clube Paranaense de Montanhismo

Daniel Otaviano Ribeiro é Procurador Federal e Mestre em Direito Ambiental pela Universidade de Lisboa

As opiniões e informações publicadas na área de colunas de ((o))eco são de responsabilidade de seus autores, e não do site. O espaço dos colunistas de ((o))eco busca garantir um debate diverso sobre conservação ambiental.

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  • Daniel Ribeiro

    Procurador Federal e Mestre em Direito Ambiental pela Universidade de Lisboa

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