A forma pela qual a mente humana processa informação e lê a realidade está longe de ser perfeita. Isso é esperado, já que nossa mente é produto da seleção natural, o relojoeiro cego que trabalha sem seguir um projeto e produz burradas como a arquitetura do olho e da nossa coluna vertebral. Um criador “inteligente” que fizesse dessas jamais mereceria registro no CREA. Embora, no país de Niemeyer e das praças-deck do Haddad, provavelmente conseguisse.
Nossa mente bugada (recomendo este livro para os curiosos) não tem o padrão de buscar a verdade. De fato, há uma pilha de pesquisas mostrando que tende a evitá-la. Acreditamos que o familiar é verdadeiro, selecionamos só as informações que concordam com o que acreditamos e, pior, identificar e resistir a informações falsas é um processo ativo e que cansa.
De fato, padecemos do que o psicólogo e prêmio nobel Daniel Kahneman chama “facilitação cognitiva”: humanos tendem a evitar fatos que forçam seus cérebros a trabalhar mais. E confrontar pessoas com fatos que vão contra suas crenças muitas vezes só reforça sua posição.
A distância entre realidade e crenças tem sido dominante na política recente – que se tornou “pós verdade” – não só no Brasil mas também no mundo todo. Não preciso ir longe para notar como a questão ambiental é outro exemplo do conflito entre crença e realidade.
Um resultado de nossos bugs mentais é o fenômeno das “linhas de base mutáveis”. Nós aceitamos como “normal” aquilo que se refere às nossas experiências mais próximas, ignorando informações que recuam no tempo e com as quais não fomos expostos, seja pessoalmente, seja por tradição oral.
Por isso a maioria das pessoas que moram cidade de São Paulo acham que o normal é que o Tietê seja um esgoto pastoso, e fiquem surpresas quando viajam e encontram um rio com água clara e peixes. Também em São Paulo todos acham normal que ocorra uma dezena de latrocínios por semana, enquanto até a década de 1960 a maioria dos (poucos) assassinatos era de crimes passionais.
Dá para perceber como esse bug mental afeta decisões com implicações importantes sobre a qualidade de vida.
Esse fenômeno também é importante para a conservação e tem sido muito discutido, por exemplo, no contexto da conservação de espécies extraídas pela pesca (me recuso a usar “recursos pesqueiros” para bichos que são mais inteligentes que muita gente). Órgãos de regulação de pesca assumem situações artificiais como sendo “naturais” porque não há a memória de como as coisas eram no passado.
Não são apenas eles. Quando uma baleia-franca Eubalaena australis aparece na minha cidade natal (Santos – SP), muita gente considera um fenômeno do tipo “nunca antes na história”. Na verdade, existiam tantas baleias parindo seus filhotes na área que ali havia uma próspera indústria de caça à baleia (há ruínas de armações no que é hoje o Guarujá).
Também já vi “especialistas em vida selvagem” dizendo que araras-vermelhas Ara chloropterus escapadas do cativeiro e vivendo livres no Rio de Janeira são uma espécie exótica. Além de um sapiente professor uspiano declarar suas dúvidas se mutuns-do-sudeste Crax blumenbachii eram nativos dos arredores da cidade do Rio de Janeiro.
Uma simples consulta a fontes históricas (araras aparecem em referências até o início do século XIX, quando mutuns ainda ocorriam no atual município de Magé) mostra que o anormal é que essas espécies não vivam hoje nas matas fluminenses.
Essa é uma das grandes armadilhas das linhas de base mutáveis. Olhamos florestas, cerrados, caatingas, pampas e pantanais vazias de bichos que já foram abundantes, como antas, queixadas, muriquis, cervos, onças, etc., etc., e achamos que são tão normais quanto o Tietê transformado em esgoto. Isso para não falar em processos ecológicos, de incêndios à dispersão de sementes, totalmente alterados pela extinção da megafauna.
Olhar a distribuição histórica de espécies ameaçadas e seus requisitos ecológicos comumente mostra que algumas distribuições atuais são resultado menos da adequação do habitat do que da pressão humana. Já escrevi sobre isso aqui e a história dos gansos havaianos mostra que é preciso pensar fora da caixinha e a retomada de antigas áreas de distribuição há muito desocupadas por uma espécie pode produzir resultados espantosos.
Os peixes-boi estão entre os mamíferos mais singulares. Já escrevi sobre esses parentes aquáticos dos elefantes e de como estamos nos esforçando para exterminá-los.
O peixe-boi-marinho Trichechus manatus é vítima da caça e da destruição de seu habitat e, no Brasil, considerado em perigo de extinção. No nordeste brasileiro pode haver 1.100 exemplares, mas esta estimativa tem uma grande margem de erro e o número real pode ser menor que a metade ou o dobro.
Graças à ocupação dos canais de manguezais por salinas, fazendas de camarão, projetos turísticos e imobiliários, fêmeas grávidas não encontram mais lugares abrigados para parir e os filhotes recém-nascidos acabam arrastados pelas ondas e encalham. Graças ao trabalho de ONGs como a AQUASIS a maioria é resgatada. Alguns morrem.
Peixes-boi também morrem afogados quando se enroscam em redes de pesca. As mesmas, que praticamente exterminaram o cação-quati Isogomphodon oxyrhynchus, um tubarão que teve o tremendo azar de ser endêmico dos manguezais entre o Maranhão e as Guianas. O fato dessa região, no Brasil, ser ocupada por montes de reservas extrativistas dedicadas à pesca não ajudou nem o cação nem o peixe-boi.
Como criar Unidades de Conservação marinhas de verdade é algo que ficou engavetado por mais de uma década. As atividades de conservação do peixe-boi-marinho hoje estão focadas no resgate, reabilitação e soltura dos filhotes encalhados, atividades de educação e outras para reduzir a mortalidade causada por humanos, nas populações remanescentes entre o Piauí e Alagoas.
Eventos recentes de peixes-boi encalhados na região de Recife (veja aqui, aqui e aqui) mostram a complicada existência de bichos grandes e carnudos em uma região com uma alta densidade humana e habitat limitado.
E, claro, há a luta contra projetos cretinos que toda hora aparecem, como a de uma plataforma de petróleo no Banco dos Cajuais, em Icapuí (CE). Mais recentemente, um engenheiro que fumou algo estragado teve a brilhante ideia de instalar aerogeradores na mesma área, bem em cima da área de alimentação de dezenas de milhares de aves migratórias.
Ao mesmo tempo o custo de manter as operações de resgate e reabilitação resultam em uma tremenda demanda sobre as entidades que realizam o trabalho. E há apenas duas: a ONG AQUASIS, baseada em Caucaia (CE), que conta com instalações novas baseadas no princípio da responsabilidade ambiental; e a base avançada do CEPENE, antiga sede do Centro Mamíferos Aquáticos, hoje sob o ICMBio, em Itamaracá (PE).
As instalações em Itamaracá passaram por uma grave crise em 2010, quando vários animais morreram. E continuam aquém das necessidades, com instalações insuficientes para abrigar adequadamente todos os animais que mantém.
Talvez por isso tenha surgido o plano de enviar cinco peixes-boi para a ilha franco-caribenha de Guadalupe. Além de reduzirem a pressão sobre o CEPENE, seriam parte de um projeto de reintrodução naquela ilha. Este projeto recebeu pesadas críticas dos especialistas, não só pela razão evidente da população brasileira ser pequena demais para perder animais como pela genética e morfologia mostrarem que os peixes-boi do Caribe são distintos dos brasileiros. Talvez até outra espécie.
Em recente reunião no CEPENE para discutir estratégias de conservação da espécie, após muita luta o ICMBio prometeu que recomendaria ao Itamaraty o não envio dos animais para Guadalupe. Veremos.
Se há o desejo de se livrar de peixes-boi cativos que o Estado brasileiro não tem recursos para manter, é pertinente pensar na linha de base com que estamos trabalhando. Esculturas de pedra (zoólitos) representando o que parecem peixes-boi foram encontrados em sambaquis construídos por povos pré-colombianos entre São Paulo e o sul do Brasil, sugerindo uma ocorrência bem ampla no passado.
E a distante voz do Padre Anchieta, escrevendo em 1560, nos informa que:
“Há um certo peixe (que chamamos peixe-boi e os índios iguaraguá), frequente na vila do Espírito Santo e noutras povoações para o Norte, onde não há frio ou é pouco e se faz sentir com menos rigor do que entre nós. Muito grande no tamanho, alimenta-se de ervas, como mostram as mesmas ervas pastadas nos rochedos à beira dos mangues (…) A gordura, que está pegada à pele e sobretudo junto à cauda, derretida ao fogo, torna-se líquida e pode-se bem comparar à manteiga, não sei se ainda melhor, e usa-se em vez de azeite para temperar comidas. Todo o corpo é travado de ossos sólidos e duríssimos que podem fazer às vezes de marfim”. |
O testemunho de Anchieta, corroborado por Gabriel Soares de Sousa, Fernão Cardim e Maximilian zu Wied, entre outros cronistas e viajantes, mostra que o peixe-boi-marinho ocorreu muito mais ao sul do que a distribuição atual sugere. Segundo Wied, a espécie estaria no rio Doce ainda no século XIX e há indicação de peixes-boi na Bahia até a década de 1960.
Já ouvi uma referência apócrifa e bem menos segura sobre “vacas marinhas” na região de Cananéia e Iguape (SP), onde o grandioso Lagamar e a foz do rio Ribeira de Iguape certamente seriam um habitat adequado nestes tempos de aquecimento global. Um fator que limita a distribuição dos peixes-boi, já notado por Anchieta, é a temperatura da água. Se esta cair abaixo de 15°C os animais podem morrer.
Olhando apenas a área com bons registros, existe uma vasta região que hoje está anormalmente vazia de peixes-bois. Pela primeira vez em muitos milhares de anos.
E chama a atenção o fato de, especialmente ao sul do Recôncavo Baiano, existirem estuários, rios costeiros, manguezais e campos de capim-agulha que fariam a alegria de qualquer peixe-boi que conseguir chegar ali.
Anos atrás, quando visitei a Baía de Camamu – um dos maiores estuários e manguezais ao sul do Maranhão – me lembrei que peixes-boi já existiram ali. Parecia muito errado e anormal que um habitat tão extenso e adequado estivesse vazio, enquanto bichos eram mantidos em cativeiro ou soltos em lugares de onde eles obviamente queriam sair.
Se (um grande “Se”) a dimensão humana puder ser trabalhada para evitar que as pessoas matem os bichos, por intenção ou acidente, faz mais sentido fundar uma nova população de peixes-boi e reconquistar seu território tradicional do que deportar bichos para Guadalupe.
Pelo menos um peixe-boi já tentou se mudar para a Bahia. Assú, um macho solto em Alagoas em 2010, nadou mais de mil quilômetros rumo à Bahia, até, magro e debilitado, ser capturado em 2015 perto de Morro de São Paulo e extraditado de volta para Alagoas.
E em 2014 outro peixe-boi anônimo já havia aparecido na Praia do Porto da Barra, em Salvador. Aparentemente bem, não precisou ser recapturado.
Assú e seu colega não podem falar, mas suas maratonas querem dizer algo que deveríamos ouvir. Se deixarmos de lado a realidade familiar e a linha de base atual, talvez captemos a mensagem.
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Excelente!
E será que agora ao menos os pobres peixes-boi não ganham um pouco mais de atenção, com o Soavinski de volta ao ICMBio ?
Na Florida é cheio de gente, barcos, empreendimentos, Disney, turista, plantação de laranja, base espacial, etc, etc, etc…e é cheio de manatees, até no entorno da usina nuclear! Aqui no Brasil tudo é tão complicado, tudo é incompátivel, tudo é polarizado…
Parabéns pelo texto, Fabio. A realidade para o peixe-boi marinho hoje no país não é animadora. A distribuição da espécie diminuiu e é também fragmentada. Há ainda afirmações de que no país, animais de um local não podem ser soltos em outro, o que é aceito como verdade pelo governo, mas que já rebatido por diversos conceituados geneticistas. E ficamos ainda gastando uma energia imensa para explicar o óbvio, quando ela poderia ser direcionada para a realização de ações efetivas para conservação da espécie. Isso cansa e desanima, mas no fim esperamos ficar longe dos conceitos bugados e não desistir, pois sempre pode piorar.
Um amigo introduziu a lagartixa-da-areia (Liolaemus lutzae) no sul do ES, longe da especulação imobiliária que assola as restingas do litoral do RJ. A população está lá, mas o meu amigo arrumou um monte de inimigos entre os puristas… É preciso coragem para fazer isso, enfrentar os macacos do tribunal (planeta dos macacos original) e assumir riscos. Situações extremas, como a dos peixes-bois marinhos, demandam atitude. Obrigado pelo texto Fábio, repleto de boa discussão e muita informação. Forte abraço!
Os puristas acham que tudo bem que percamos populações e diversidade genética por conta de impactos humanos, mas ficam todos indignados quando se tomam medidas na direção contrária. Conceitos bugados….
Ótimo texto, Fábio, obrigado. E Não faltam bons precedentes de recomposição de fauna para incentivar uma ação com os peixes-bois, conforme você defende com argumentos muito sólidos. Lobos em Yellowstone e cutias na floresta da Tijuca, por exemplo. Abraço.
Sergio. Obrigado pelo texto esclarecedor. Gostaríamos de agendar uma entrevista com você para o nosso portal, Cariocas Orgânicos. Veja lá: https://www.cariocasorganicos.com.br. Você pode compartilhar conosco um contato? Um abraço,
O assunto levantado pelo colega é realista e oportuno. Trabalho numa instituição (Museu Nacional/UFRJ) que guarda um patrimônio fabuloso da biodiversidade brasileira. Há quase 36 anos convivo com mamíferos silvestres e vejo nas etiquetas de vários espécimes registros de localidades onde eles não mais existem. É o caso de muriquis em Angra dos Reis, queixadas nos arredores de Paraty, tatu canastra nas imediações de Belterra/PA, micos-leões em Maricá e tantos outros animais que desapareceram das antigas áreas de coleta. Basta viajar nas páginas dos diários dos naturalistas (Spix, Martius, Wied, etc) que visitaram, no século XIX, o território fluminense para se ter uma idéia daquilo que se perdeu.
Parabéns por focar essa questão.
Perfeito, Sergio. Essa documentação mostra que, se as pressões passadas não são mais relevantes, várias espécies poderiam ser reintroduzidas nas antigas áreas de ocorrência. Os micos-leões chamam a atenção
Excelente texto pra variar Fabio, abraços.
Basta os mandatários, querer.
Vc está certíssimo Fábio. Recomendo também o livro "Feral" de George Monbiot, onde justamente ele fala sobre esse assunto das pessoas aceitarem como normal situações totalmente anormais (o Tietê e a Guanabara poluídos) simplesmente porque não lembram quando eram limpos. http://www.monbiot.com/2013/05/24/feral-searching…
Daqui a pouco, estaremos numa situação onde as pessoas vão achar ridículo reflorestar áreas desmatadas da Amazônia, porque quem mora nas cidades da soja esquece que ocupou lugar de floresta. O normal agora é um mar de soja verde, ou soja seca, dependendo da época.
Perfeito, Margi. Esse artigo é no espírito do excelente livro de Monbiot. Aliás, muito poderia ser escrito sobre como ferramos com nosso ´país e nossa herança natural e achamos "normal
Fabio, o que sugeres faz todo sentido. Mas como convencer de refundar uma população mais austral de peixes-boi marinhos uma burocraoia ambiental estatal que é incapaz de pensar fora da caixinha, para a qual tudo é "muito dif[ícil", tudo se resume a defender uma política do NÃO PODE e que combate até mesmo a visitação e a concessão de serviços em parques nacionais?
Precisamos é de um shift na política de governo da área, onde se dê uma faxinada na mentalidade imobilista da gestão ambiental e se pare de atrapalhar o que auxilia na prática a conservação.
Podia começar esse SHIFT acabando com o ICMBio (que "responde" pela conservação da biodiversidade) de uma vez e readequando toda a estrutura e atribuições dos órgãos ambientais federais, não?
Truda, o objetivo de minha provocação é exatamente esse. Pensar fora da caixinha e ir além da política do NÃO PODE – que é uma catástrofe para nossas UCS – e do "não sei o resultado – não tento – continuo sem saber". Vamos ver se alguém lá em BSB ouve.