Enquanto para uns a pandemia serviria para desviar o foco e “passar a boiada” nas questões ambientais, os quilombolas do Vale do Ribeira seguiram na contramão desse fluxo e atuaram firme no trabalho de coleta de sementes florestais. É a partir das mãos deles que as sementes vão para iniciativas que atuam com a restauração da Mata Atlântica, um dos cinco biomas mais degradados do mundo, e é graças ao trabalho deles que tem sido possível restaurar áreas de Mata Atlântica na atualidade.
Eles fazem parte da Rede de Sementes do Vale do Ribeira, iniciativa que envolve, atualmente, 42 coletores e coletoras dos quilombos André Lopes, Bombas, Maria Rosa e Nhunguara. Os quatro quilombos estão localizados nos municípios de Eldorado e Iporanga, no Vale do Ribeira. A região, ao sul de São Paulo, abriga o maior remanescente de Mata Atlântica do Brasil, com cerca de 80% de mata. Se hoje restam apenas 7% deste bioma no território nacional, mais de 20% dele está nesta região.
A iniciativa começou em 2017 e desde então esse grupo de pessoas tem catalogado cerca de 80 espécies nativas da Mata Atlântica. Quilombolas estão na ponta inicial do trabalho, cujo resultado final é a venda dessas espécies para viveiros e iniciativas de restauração que irão plantar essas sementes e fazer com que mais florestas cresçam e áreas antes degradadas possam voltar. O Instituto Socioambiental (ISA) é parceiro nesse processo, apoiando com assistência técnica e por fazer a ponte entre coletores e as iniciativas de restauração da Mata Atlântica.
Mesmo com as adversidades impostas pela pandemia, como a necessidade do isolamento social e a incerteza da vacinação, quilombolas que fazem parte da Rede de Sementes do Vale o Ribeira coletaram nos dois últimos anos mais de 2 toneladas de sementes, 1.400 kg apenas em 2021. Foram cerca de 105 espécies coletadas no último ano que vão possibilitar a restauração de mais de 40 hectares de áreas degradadas da Mata Atlântica, a maioria no Estado de São Paulo, mas também nos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro.
A geração de renda proporcionada pela coleta de sementes é outro ponto importante para quilombolas. Em 2021 foram R$120 mil gerados, cerca de R$2.900 para cada coletor. Para muitos, a renda que se tem a partir da coleta de sementes é fundamental para se buscar a independência financeira. Esse é o caso de Donária Messias dos Santos, a Preta, do quilombo Nhunguara. Antes de 2018, ano que passou a coletar sementes, ela trabalhou nas cidades de Eldorado e Sete Barras. Agora, além da atividade na Rede, ela pode se dedicar melhor a cuidar de sua roça. “Depois que comecei com as sementes, deixei de trabalhar para os outros e passei a trabalhar para mim. O dinheiro que a gente recebe com as sementes ajuda bastante dentro de casa”, observou Preta.
Por trás da restauração, que é o trabalho mais visível da Rede, há um outro trabalho importante realizado pelos quilombolas, que é gestão territorial, algo que eles e elas conhecem há séculos. Manejar a paisagem é conhecer a flora e fauna local, saber os períodos de floração, e dispersão das sementes e entender como fatores externos, como chuvas, lua, ou ataque de pragas, podem influenciar diretamente na coleta de sementes. Os elementos mencionados anteriormente fazem parte do Sistema Agrícola Tradicional Quilombola (SATQ), reconhecido pelo Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional como patrimônio cultural desde 2018. “Coletar sementes nos ajuda a conhecer a mata, saber quando cada planta floresce. Esse ano, a semente que mais colhemos foi a de guapiruvu (Schizolobium parahyba), que pegamos mais no final do ano. Não faz sentido sair em maio atrás dela porque sabemos que não vamos encontrar essa semente”, observou Geisiane da Mota, coletora de sementes do quilombo Maria Rosa (Iporanga).
Além disso, o modo como passaram a observar a paisagem mudou muito desde que as pessoas começaram a coletar sementes. Se antes, as árvores passavam despercebidas, hoje qualquer caminhada na mata é motivo para olhar atento. Geisiane e seu pai, Lourenço Dias da Mota, concordam e lembram dessa mudança. “Agora, andamos mais atentos, sempre olhando para o alto, na mata e até quando estamos na estrada! Passamos a adentrar mais na mata procurando sementes também”, contou o coletor.
O mesmo acontece com Edna Rosa da Prata Santos, Elo da Rede de Sementes no quilombo Maria Rosa. Não apenas ela, mas seus dois filhos, Lara e Murilo, de 10 e 8 anos, respectivamente, têm mais conhecimento territorial desde que passaram a conviver com as sementes. “Antes eu podia pisar em uma semente que não botava sentido, mas hoje a gente entra prestando mais atenção. Os meninos são curiosos! Se veem algo, entram na mata e trazem para que a gente possa ver juntos o que é”, contou, lembrando das suas idas com a família na coleta de sementes.
Família que trabalha junto
Mesmo que o trabalho pareça individual, ele envolve não apenas a pessoa que sai para coletar as sementes pela mata. Outras pessoas também são envolvidas no processo: cônjuges, filhos – crianças, jovens ou adultos –, genros e noras, que podem até não sair, mas ajudam na limpeza e separação das sementes. Outros casos também acontecem: dentro de casa começa com uma pessoa na Rede e com o passar das saídas e curiosidade no trabalho, outros membros da família começam a ajudar e logo em seguida passam a também coletar, fazendo, assim, parte do grupo.
Na casa de Preta, apenas ela participa da Rede, mas seu esposo e filhos vão com ela fazer a coleta de sementes. Em casa, as noras também acompanham o processo de limpeza antes das sementes irem para a Central Administrativa, espaço responsável pelo armazenamento e pesagem das sementes. “Agora até a minha nora passou a se interessar mais pelo trabalho de sementes”, lembrou a coletora, que sai com os familiares sempre aos finais de semana. Além do seu núcleo familiar, Preta também colhe as espécies com seus primos Ivo Pedroso e Nilza Oliveira e a irmã Omelina França, ambos do quilombo André Lopes, vizinho ao Nhunguara, onde mora.
Esse também é o caso da família Pupo. Inicialmente, Mauricio Pereira Pupo começou com a coleta de sementes. Na sequência, a sua esposa, Zélia dos Santos Pupo, também passou a fazer parte do grupo. Hoje, pelo menos duas filhas são envolvidas na coleta de sementes. Geisieli Carina dos Santos Pupo, a Fia, de 24 anos, é coletora desde junho de 2021. Para ela, coletar sementes vai além de gerar renda para a família: “Quando a minha mãe me alertou sobre a questão do desmatamento, vi a importância de se coletar para restaurar a mata. Se for para ajudar as pessoas a terem [a diversidade de plantas] que eu tenho aqui, então deve ser importante e quis participar”, destacou.
Uma casa para chamar de sua
Para coroar o ano de 2021, foi inaugurado no dia 15 de dezembro a Casa de Sementes, espaço localizado no quilombo Nhunguara que irá armazenar as sementes florestais coletadas pelos participantes da Rede. Ao longo dos últimos quatro anos, as sementes ficaram armazenadas na sede do Instituto Socioambiental (ISA), organização parceira da Rede de Sementes. “Viu-se a necessidade de se ampliar o espaço de armazenamento das sementes. Além disso, a Casa na comunidade aproxima ainda mais os quilombolas do seu trabalho”, destacou o agrônomo Juliano Silva do Nascimento, que atua diretamente com os coletores da iniciativa.
O espaço é feito de taipa de pilão e com cascalho do próprio rio Ribeira do Iguape. A técnica para a construção das paredes utiliza como matéria-prima principal a terra, junto a água e cascalho, e o pilão tem papel de prensar a mistura em uma estrutura de madeira para formar as paredes, que têm cerca de 40cm de largura. A proposta é, assim, ter uma casa que lembre algumas construções mais antigas do território e que seja mais fresca que construções que utilizam tijolo e cimento na sua produção. Alain Briatte Mantchev, arquiteto responsável pela obra que atua na Laboraterra Arquitetura, vai além na descrição da Casa de Sementes: “uma casa que foi feita de terra e que vai guardar sementes que, no futuro, vão voltar para a terra”.
O momento foi importante para promover o reencontro entre as pessoas que fazem parte da Rede, já que elas não se encontravam desde 2020. Muitos, ainda, por estarem em locais mais isolados, nunca tinham ido ao quilombo Nhunguara, sede da Casa. “Eu só convivo com os coletores da minha comunidade e já somos um grupo bem pequeno. O momento foi muito bom para conhecer as pessoas, essa comunidade, que nós não conhecíamos, e comemorar essa conquista, que é a Casa”, contou Geisiane, do Maria Rosa.
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O projeto Mata Atlântica: novas histórias é apoiado pelo Instituto Serrapilheira.
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