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Quando o remédio é pior do que a doença

Geólogos alertam para risco de profundos processos erosivos em obra do estado de MT autorizada pelo Ibama, contrariando plano de manejo e objetivos de criação do Parna Chapada dos Guimarães

Andreia Fanzeres ·
27 de agosto de 2024

A iminência das obras de retaludamento no morro do Portão do Inferno, no Parque Nacional de Chapada dos Guimarães (MT), anunciada para o dia 28 de agosto, tem mobilizado a população na tentativa de escancarar o erro do Ibama ao autorizar a intervenção mais impactante para a unidade de conservação sem diálogo com a sociedade. Geólogos da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) têm alertado sobre a falta de robustez dos estudos apresentados pela Secretaria de Estado de Infraestrutura e Logística de Mato Grosso (Sinfra), interessada na obra, tornando o desmonte do morro de arenito sobre a principal via de acesso entre Cuiabá e Chapada dos Guimarães uma ameaça ainda pior do que o estado atual do trecho, podendo provocar degradação ambiental por intensos e profundos processos erosivos e total desconfiguração de um dos pontos mais visitados do estado de Mato Grosso.

De acordo com o geólogo Auberto Siqueira, da UFMT, há evidências de que a rocha pode não suportar o retaludamento “provocando o colapso de toda essa porção do maciço”, aponta. Conforme manifestação técnica “Razões para reconsiderar o licenciamento do não retaludamento do ícone do maciço rochoso do Portão do Inferno, Parque Nacional de Chapada dos Guimarães”, de sua autoria, sondagens e ensaios geotécnicos, assim como sondagens geofísicas e mapeamento geológico-geotécnico detalhado executados por profissionais qualificados são exigências protocolares para o licenciamento de obras como esta, seja pública ou privada, mas que não existiram no caso do Portão do Inferno.

Siqueira aponta que o documento “Estudo das alternativas das soluções dos desmoronamentos na rodovia MT-251”, apresentado pela Sinfra ao Ibama, não faz análise dos riscos de colapso nem durante as operações ou após a sua conclusão. “Ao nosso ver, o documento apresentado não atende tais especificações. Desse modo, deixa as autoridades que tomaram a decisão de licenciar a obra descalçadas dessa fundamentação e, por esse motivo, não poderiam liberar o licenciamento”, afirma. O uso de uma imagem de modelo virtual de um “túnel falso” que nada tem a ver com as propriedades geológico-geotécnicas do maciço do Portão do Inferno pode, conforme o geólogo, induzir a sociedade a erros de julgamento. “Ao meu ver, essa situação, per se, compromete o documento para os fins a que se destina. Consequentemente, justificou-se o açodamento que está levando a decisões desastrosas e, muito provavelmente, desnecessárias”, sentencia.

Outra grande referência no tema, Prudêncio Castro, professor de geologia da UFMT há 44 anos, avalia que “o primeiro passo para decidir qual a melhor intervenção a ser adotada no Portão do Inferno, levando-se em consideração o processo geomorfológico de queda de blocos rochosos que naturalmente ocorre naquele morro é analisar dois parâmetros básicos que definem o grau de risco, quais sejam, a frequência da queda de blocos, bem como a maneira como ocorrem”.

Recado em forma de grafite. Foto: Raquel Carvalho

O geólogo explica que eventos de escorregamento de blocos instáveis sobre a rodovia têm maior ocorrência nos meses de chuva e que “até o momento não foi registrado naquele lugar qualquer evento de queda de blocos que causasse dano ao patrimônio, a integridade física, bem como a vida das pessoas, ou seja, nenhum carro foi atingido, nenhuma pessoa foi ferida, tampouco nenhuma vida foi ceifada”. Ele lembra que durante todos esses anos adotou-se o procedimento conhecido como convivência com o risco (link). Ou seja, quando um bloco caía, a prefeitura enviava equipamento apropriado e retirava toda a areia espalhada/amontoada no leito da estrada. E orienta que, com o aumento do trânsito de veículos na rodovia, esses procedimentos devem ser aprimorados. “Como medida para retardar a queda de blocos, pode-se identificar os blocos instáveis que estão mais suscetíveis a queda e empurrá-los para que caiam, podendo-se, ainda, aplicar uma calda de cimento tingido de vermelho, que penetrará nas fraturas e descontinuidades da rocha e na superfície do morro, conferindo maior resistência e estabilidade ao Morro do Portão do Inferno”, recomenda.

Ele reforça que a melhor obra será aquela que mais se afastar da influência da escarpa e do morro, onde ocorrem quedas de blocos. “Dessa forma, três alternativas podem ser descartadas: o túnel, o falso túnel, e, a pior delas, aquela que está fadada ao insucesso devido a alta erodibilidade da rocha sedimentar, o retaludamento. É por isso que a única obra viável é a construção de um viaduto sobre o precipício do Portão do Inferno”, afirma Prudêncio Castro.

Fragilidade não é só da rocha, mas do licenciamento

Em um licenciamento ambiental que começou sem termo de referência, e tendo já a modalidade de intervenção definida e contratada sem licitação pelo governo de Mauro Mendes (União Brasil) antes da emissão da primeira licença, é de se esperar que estejam sendo encontradas numerosas lacunas e falhas no processo.

No dia 7 de agosto de 2024, a procuradora da República Marianne Cury Paiva, do Ministério Público Federal (MPF), despachou uma recomendação ao Ibama constatando que o órgão licenciador não apresentou as normativas que foram levadas em consideração para a aplicação do licenciamento ambiental simplificado (LAS) e que não realizou sequer uma análise (fática e jurídica) do enquadramento do caso concreto ao rito dessa modalidade de licenciamento. Argumentou, ainda, que embora o Ibama tenha considerado os documentos apresentados pela Sinfra e pela empresa Conciani, e, à luz do Decreto de Emergência 615/2023, “aparentemente, não houve uma análise técnica, a fim de verificar o grau de eficiência desses estudos para, então, se atestar a efetiva urgência/emergência das obras”, diz o texto.

Além disso, conforme o MPF, o Ibama não realizou “qualquer análise técnica dos projetos alternativos apresentados pela Sinfra (túnel, falso túnel e retificação do traçado do Portão do Inferno, retirada do maciço do Portão do Inferno) a fim verificar se o retaludamento da rocha seria, de fato, a obra mais adequada (sob o ponto de vista técnico, ambiental, econômico e outros) para o caso concreto”. Para o MPF, não ficaram claros também os motivos pelos quais o Ibama emitiu a licença de instalação sem o estudo de alternativas locacionais, previamente exigido. Também faltam explicações para o fato de o Ibama não ter pedido, antes da emissão da licença, um estudo de viabilidade da manutenção do fluxo normal ou ao menos parcial da MT-251 durante as obras, uma vez que a Sinfra não apresentou qualquer justificativa técnica sobre a imprescindibilidade do fechamento total da rodovia, das 7h30 às 16h30 por quatro meses.

Silêncio proposital

A falta de condicionantes para a ampla divulgação dos dias e horários das intervenções na rodovia e o estabelecimento de um prazo mínimo para a publicização do fechamento da estrada por um tempo superior ao programado são outros problemas apontados pelo MPF. Mas, do ponto de vista do governo de Mato Grosso e dos políticos de Chapada dos Guimarães e Cuiabá, esses são uma lacuna de oportunidade.

Card para Instagram da Sinfra-MT

Afinal, poucos se arriscam a envolver suas candidaturas nas eleições municipais ao tema do Portão do Inferno, tão impopular pela dimensão dos impactos socioeconômicos à Chapada dos Guimarães. A cidade não tem maternidade, não tem faculdade e conta com cerca de 11 mil pessoas em situação de vulnerabilidade, segundo o CadÚnico, entre seus 18 mil habitantes. Interditar a principal via de contato com Cuiabá por causa dessas obras sem alternativas poderá afundar o município numa crise socioeconômica. Sentindo a pressão do movimento de moradores que já angariou quase 15 mil assinaturas numa petição pedindo a suspensão deste licenciamento, a Sinfra mudou o tom e informou a população, até agora, que as obras começarão “sem transtorno”.

No parecer técnico que fundamenta a emissão da licença de instalação, o Ibama afirma que a Sinfra deveria elaborar materiais informativos com conteúdo objetivo e adequado ao público, disponibilizando também canal de comunicação eletrônico e via telefone para que sejam coletadas reclamações e sugestões e bem como seja possível prestar esclarecimentos. De forma confusa, o Ibama diz que “o detalhamento do material elaborado, bem como os canais de comunicação estabelecidos e cronograma de execução das ações devem ser apresentados no primeiro relatório de acompanhamento do programa”. A população, que está a poucos dias do início das obras, se pergunta se terá essas informações e a chance de discuti-las apenas depois que a retirada da vegetação, da fauna e dos danos ao sítio arqueológico já forem fatos consumados.

Omissão de documento

Segundo a Informação Técnica (IT) 20/2024, elaborada pelos servidores da unidade de conservação, não é possível ao Parque Nacional da Chapada dos Guimarães a manifestação sobre os estudos que poderiam ser realizados pelo empreendedor “uma vez que não houve fase de proposição de estudos em termos de referência para o licenciamento ambiental no âmbito do processo 02070.008122/2024-21”. Ainda assim, dada a “relevância da paisagem protegida pelo parque nacional no Portão do Inferno, do sítio arqueológico existente no local e dos demais impactos potenciais advindos da obra do retaludamento proposta, foi elaborada a presente manifestação”, informa o documento.

A IT 20/2024 ressalta que as intervenções a serem realizadas devem se pautar pelos objetivos de criação e os alvos de conservação do parque nacional, presentes no decreto de criação e no plano de manejo da unidade de conservação. Enquanto a Sinfra indica o retaludamento como a melhor opção por razões econômicas, prometendo rapidez nas obras e expertise no negócio, os servidores do parque alertam que nenhum dos fatores apresentados “é referente ao impacto ambiental à unidade de conservação, denotando que tal aspecto não foi levado em consideração na análise por parte daquela secretaria para a opção pela obra de retaludamento”.

Eles também informam ao próprio ICMBio sobre o conteúdo do relatório “Quedas de blocos e procedimentos de segurança na MT 251, entre a Salgadeira e a curva da morte”, encomendado à UFMT, cujos autores compreendem ser o retaludamento “a opção com maior impacto ambiental, levando mudanças na paisagem, na hidrogeologia da área, além de representar a remobilização de uma quantidade elevada de material rochoso. O desmonte também é uma opção com impacto social significativo, com alta possibilidade de fechamento da via, e ampliação da crise econômica e social causada pela queda de visitantes. As incertezas geológicas apresentadas indicam que o valor proposto de 29 milhões para a obra pode estar subrepresentado. Desta forma, a opção do retaludamento pode representar uma alternativa ruim do ponto de vista ambiental, social e até mesmo econômico”. E afirmam, ao final, que os dados sobre a inexistência de risco iminente de ruptura do viaduto atual no Portão do Inferno poderiam resultar em mais tempo para estudos de outras alternativas para intervenções, uma vez que o retaludamento tem sido indicado como a única opção a partir de critérios econômicos e não ambientais.

No entanto, mesmo conhecendo essas informações, o Diretor de Pesquisa, Avaliação e Monitoramento da Biodiversidade do ICMBio, Marcelo Marcelino, permitiu que fosse adiante a opção de projeto que pode inviabilizar a gestão do parque nacional, que contraria os objetivos de criação da unidade de conservação e seu plano de manejo, na medida em que decidiu não encaminhar a Informação Técnica 20/2024 para análise do órgão licenciador, acolhendo a argumentação de que “a escolha da alternativa técnica apresentada cabe ao próprio empreendedor, considerando questões de conveniência e oportunidade, portanto, decisão discricionária”, segundo se posicionou o coordenador-geral de Avaliação de Impacto Ambiental, Igor Matos Soares.

Sobre o pedido de análise mais detida sobre as alternativas, o coordenador afirmou em seu despacho que isso cabe ao Ibama. “A questão da alternativa técnica está sendo analisada pelo órgão licenciador, conforme verifica-se no documento, com as informações apresentadas oficialmente no procedimento de licenciamento sob sua condução”. E, assim, engavetou o documento que poderia ter influenciado o Ibama sobre a decisão de emitir a licença de instalação no dia 28 de junho de 2024.

A certeza de que o acesso ao parque nacional ficará inviável para o turismo durante as obras atrapalha também o início da operação da concessão de serviços para uso público na unidade de conservação. “O governo [do estado de Mato Grosso] propôs obras de retaludamento da encosta, que poderão impactar significativamente o parque, incluindo a interrupção total da circulação de veículos na rodovia durante o horário de funcionamento do parque. Isso afetaria o acesso dos visitantes e servidores, podendo causar uma queda no número de visitas e influenciar negativamente o contrato de concessão dos serviços de apoio à visitação”, explicou a Divisão de Apoio à Fiscalização das Delegações do ICMBio através da Lei de Acesso à Informação (LAI). Por isso, o ICMBio já está em tratativas para dilatar o prazo de início dos trabalhos da Parquetur em Chapada dos Guimarães, atendendo ao pedido da empresa.

Agora, sem a Parquetur na jogada, ficou bem mais confortável para o governo de Mato Grosso prosseguir na disputa que ainda trava na Justiça pela concessão do Parque Nacional de Chapada dos Guimarães.

*Andreia Fanzeres é membro do Fórum Popular Socioambiental de Mato Grosso (Formad) e do Observatório Socioambiental de Mato Grosso (ObservaMT).

As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

  • Andreia Fanzeres

    Jornalista de ((o))eco de 2005 a 2011. Coordena o Programa de Direitos Indígenas, Política Indigenista e Informação à Sociedade da OPAN.

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