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Dimensões humanas da flora exótica: brasileira nata, pero no mucho

Nem tudo o que é familiar é nativo. Por isso é importante discutir as dimensões humanas vinculadas às espécies exóticas e esclarecer ideias erradas comuns em relação a elas

6 de outubro de 2022 · 2 anos atrás
  • Matheus S. Asth

    Biólogo, pesquisador em Ciências da Terra e Meio Ambiente do Núcleo de Ecologia e Monitoramento Ambiental (NEMA) da Universidade Federal do Vale do São Francisco (UNIVASF-PE), responsável pelo monitoramento de espécies exóticas e invasoras do Projeto de Integração do Rio São Francisco (PISF).

  • Ana C. Pont

    Bióloga, educadora socioambiental e estudante de Dimensões Humanas da Natureza.

  • Bruna Lima Ferreira

    Bióloga e divulgadora científica associada à iniciativa Ilha do Conhecimento. Pós graduanda na Faculdade de Filosofia, Ciências e Letras de Ribeirão Preto, Universidade de São Paulo

  • Claudia S. G. Martins

    Engenheira agrônoma e ecóloga. Pesquisadora nas temáticas desertificação em áreas rurais e vulnerabilidade aos conflitos humanos-fauna silvestre, no semiárido brasileiro.

  • Francine Schulz

    Bióloga, especialista em Perícia Auditoria e Gestão Ambiental, mestre em Engenharia Civil - Gestão de Resíduos.

  • Wezddy Del Toro-Orozco

    Bióloga, Doutoranda na University of Georgia, Pesquisadora associada do Instituto Mamirauá, Bolsista da Wildlife Conservation Society (WCS), pesquisadora das dimensões humanas dos conflitos e coexistência com felinos na Amazônia.

Você refletiu esta manhã, enquanto tomava seu café (adoçado com uma colher de açúcar), acompanhando um pãozinho bem gostoso feito com farinha de trigo, que o hábito do “café da manhã” talvez fosse bem diferente caso o que hoje chamamos de “globalização” não tivesse acontecido entre países e continentes desde que o mundo é mundo? O café (Coffea arabica e Coffea canephora), a cana-de-açúcar (Saccharum officinarum) e o trigo (Triticum spp.), compõem a primeira refeição do dia de muitos de nós (o Brasil é o maior produtor no mundo dos dois primeiros), mas ambos os cultivos foram introduzidos. Café e cana-de-açúcar não são nativos, não importa a extensão que ocupam no território nacional, nem o quão queridos são, ou o seu peso na balança comercial. Apesar de tudo, são espécies vegetais exóticas que encontraram no Brasil condições climáticas, de solo, sociais, econômicas e institucionais que lhes permitiram prosperar. Mas e se estas espécies exóticas não tivessem chegado até nosso país e tampouco se adaptado, quais seriam nossos hábitos alimentares hoje? Será que estaríamos valorizando as nossas espécies nativas? Muitos dos alimentos genuinamente brasileiros são considerados culturais, mas não estão presentes na mesa de todos os brasileiros. A questão cultural é um aspecto das dimensões humanas muito importante de ser entendido, pois reflete valores de uma sociedade em determinado período, podendo influenciar nas atitudes e comportamentos das pessoas.

Nesse texto vamos falar das dimensões humanas das espécies exóticas, focando desta vez na flora, começando pela definição, trazendo alguns exemplos das que temos no Brasil e pontuando algumas ideias erradas comuns em relação às mesmas, como “Que ótimo! Estamos adicionando várias espécies à nossa flora, que está ficando mais rica”, “Ah, mas são só umas mudinhas que eu vou colocar no meu jardim. Não tem problema, né?”, “Se é planta é bom!”, “Essa árvore já está aqui no terreno desde antes da minha avó chegar. Tenho certeza de que ela é nativa.”

Antes de continuarmos nossa reflexão, você sabe o que é uma espécie exótica? Não, não é uma planta ou um bicho diferentão, com aparência ou comportamento peculiar. Todas as espécies têm uma área de ocorrência natural (ou centro de origem). Isso quer dizer que existe um limite geográfico no qual muitas espécies não conseguem ultrapassar. Por exemplo, devido às características associadas à temperatura (como espécies que só florescem acima de um determinado número de horas acumuladas de frio), água (espécies cujos frutos só formam açúcares quando sujeitos a estresse hídrico), ou exposição solar (espécies que dependem de n dias de luz em fases específicas de seu ciclo de vida para expressar algum atributo), para mencionar apenas alguns. Quando, acidental ou intencionalmente, uma espécie é levada por influência humana para além desse limite ela é considerada exótica àquele local. 

Uma vez introduzidas, essas espécies precisam conseguir se estabelecer e reproduzir autonomamente no novo ambiente. As que conseguem são chamadas de naturalizadas (diferente de nativas), isto é, se adaptaram ao local e estão conseguindo manter uma população viável. Se ultrapassarem a próxima barreira e começarem a se dispersar, aumentando a área de ocorrência, chegarão ao estágio final. A partir desse momento, passam a ser consideradas invasoras (Figura 1).

Agora que fomos devidamente apresentados ao conceito de “exótica” e sabemos da condição indispensável da ação humana para com essas espécies, podemos dar o próximo passo. Quem são elas? Temos certeza de que você conseguiria dar diversos exemplos de espécies exóticas e talvez nem saiba disso. Sim, sim, já exploramos bem o típico cafezinho brasileiro-só-que-não. Mas existem muitas outras. Quer ver? A manga, o abacaxi, o mamão, a banana, a maçã, o arroz… A rosa-do-deserto, as hortênsias, o eucalipto… todas são exóticas à flora brasileira. Sabe o sisal (Agave sisalana)? Aquelas fibras vegetais que são usadas na cordoaria e no artesanato, vêm de uma espécie que é nativa do México. A algaroba (Prosopis juliflora), muito comum no Nordeste brasileiro, e que é usada como forragem para animais e para cerca em propriedades, é nativa da Argentina e Bolívia. Inúmeras espécies de gramíneas usadas em pastos brasileiros são nativas de países do continente africano.

Muitos poderiam pensar: “Que ótimo! Estamos adicionando várias espécies à nossa flora, que está ficando mais rica”. Infelizmente não é bem assim! Ao invadir ecossistemas, as espécies exóticas podem trazer inúmeros impactos sociais, econômicos, ambientais e até sanitários. Por exemplo, desabastecimento de água e interrupção de transmissão de energia elétrica ao invadir reservatórios (socioeconômico), diminuição da biodiversidade ao extinguir localmente outras espécies (ambiental) e potencial letalidade pela presença de substâncias tóxicas (sanitário). Um estudo publicado em 2021 estimou que as invasões biológicas (da flora e da fauna) custaram aos cofres brasileiros USD 105 bilhões em 35 anos, o que dá algo em torno de USD 3 bilhões por ano. E essa é uma estimativa superconservadora, já que muitos dos custos são desconhecidos ou de difícil acesso.

“Ah, mas são só umas mudinhas que eu vou colocar no meu jardim. Não tem problema, né?”. Pode ser que não, mas é preciso cuidado. As plantas invasoras geralmente possuem características que lhes dão vantagem competitiva em relação às nativas. Por exemplo, algumas produzem mais sementes, outras germinam mais facilmente, existem aquelas que são mais capazes de sobreviver em situações adversas (como escassez de água), têm até as que produzem substâncias químicas que dificultam o crescimento de outras ao seu redor e aquelas que não encontram inimigos naturais adaptados e, por isso, se dão melhor no novo local. Isso as torna intrusas bastante eficazes. Alguns estudos apontam que a horticultura e o cultivo de plantas ornamentais estão entre as principais causas de invasões biológicas no mundo. Quando uma planta exótica cultivada consegue escapar da contenção, a probabilidade de se tornar invasora aumenta consideravelmente.

“Se é planta é bom!”. Também não é bem assim. Realmente é muito agradável passar por uma avenida bem arborizada, morar em uma rua sombreada pelas copas das árvores, visitar parques cheios de árvores e jardins exuberantes. Tudo isso melhora a qualidade de vida humana e o ambiente, e deverá ser regra. Mas precisamos de mais atenção ao escolher quais espécies usar, principalmente se o local estiver próximo a áreas naturais ou agrícolas. 

Provavelmente você já esteve em alguma praça, parque ou avenida onde havia uma espatódea (Spathodea campanulata) ou neem (Azadirachta indica). São árvores frondosas (a primeira africana e a segunda asiática) muito utilizadas no paisagismo urbano, que fornecem uma boa sombra e embelezam o ambiente. O que ambas têm em comum? Substâncias tóxicas para abelhas, beija-flores e outros polinizadores, os quais são responsáveis por possibilitar/facilitar a reprodução de centenas de espécies vegetais. 

Para se ter uma noção, quase 70% dentre as 53 maiores culturas alimentares do Brasil dependem de algum nível de polinizadores. Pesquisadores brasileiros estimaram que em uma situação de crise de polinizadores o Brasil poderia perder entre USD 4,8 e 14,5 bilhões por ano com a redução da produção agrícola. Esse cenário demonstra que a introdução de espécies exóticas afeta as dimensões humanas referentes aos valores atribuídos às espécies (utilitário, econômico, estético, afetivo) e aspectos éticos uma vez que todas as espécies têm o direito à existência.

“Essa árvore já está aqui no terreno desde antes da minha avó chegar. Tenho certeza que ela é nativa.”. Essa é uma ideia errada comum – e compreensível. Temos a tendência de acreditar (dimensão humana) que como algo está há muito tempo no nosso convívio, aquilo pertence ao lugar. Porém, por mais que as espécies exóticas se adaptem aos nossos ecossistemas, elas nunca serão consideradas nativas da nossa flora. 

Uma espécie exótica é para sempre exótica àquele local. 

Apesar disso, algumas populações humanas criam um sentimento de identidade com determinadas espécies. Um exemplo é a algaroba (Prosopis juliflora), que foi introduzida no ano de 1942 pelo governo brasileiro para servir como forragem animal. Ela é uma espécie bem adaptada ao clima árido, que suporta muito bem a escassez de água, temperaturas elevadas e solos salinos. Sua copa mantém-se folhosa e propicia sombra continuamente. Ou seja, encaixou-se como uma luva no sertão nordestino. Outra característica bastante apreciada pelos sertanejos é a capacidade de produção de frutos mesmo no período mais seco, quando a pastagem da Caatinga é insuficiente para alimentação animal, sendo amplamente utilizada como complemento nutricional para as criações. Consequentemente, é uma espécie muito valiosa afetiva (dimensão humana) e economicamente para a população local. Como nem tudo são flores (relevem o trocadilho), a espécie também está associada a impactos negativos na biodiversidade. Ela pode provocar o aumento da mortalidade e/ou redução do crescimento de outras espécies que ocorrem no mesmo local. Dimensões humanas? Claro! Em regiões onde a assistência e extensão rural são escassas e os índices de desenvolvimento humano são baixos, é sensível sugerir a supressão da algaroba, ainda que a proposta seja o plantio de nativas em seu lugar. E se todas estas decisões precisarem ser tomadas para serem aplicadas em propriedades privadas dentro de unidades de conservação, veja como aumenta a complexidade.

O objetivo deste artigo não é demonizar as espécies exóticas nem ações humanas que introduzem espécies (da flora ou da fauna) em áreas distintas de sua ocorrência natural. Trazemos uma reflexão sobre algumas das “ideias erradas comuns” em relação às espécies exóticas. Geralmente medimos o tempo e os eventos nele em uma escala muito aquém da escala dos acontecimentos físicos, químicos, biológicos e ecológicos. Frequentemente lemos o mundo numa escala espacial do que nos é familiar. O desafio é nos expormos a um tema menos comum, vermos como está imbricado em nossas vidas (pessoais e profissionais) e as implicações disso. Nesse movimento, discutimos aspectos cognitivos, psicológicos, emocionais, sociais, históricos, institucionais, políticos – e as dimensões humanas que perpassam nossas tomadas de decisão saem do foro das discussões intelectuais e acadêmicas e se tornam… muito mais humanas. O objetivo é provocar todos os que já fazem conservação e animar os que têm a percepção (equivocada) que isso é exclusivo de um grupo e oponente a outros. A natureza agradece a popularização (muito longe da polarização!) da ciência das dimensões humanas.

As opiniões e informações publicadas nas sessões de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.

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