Desde os anos de 1980, Curitiba se autointitula ‘Capital Ecológica’ e ‘Cidade Modelo’. Ficou conhecida especialmente pelo desenvolvimento do sistema de ônibus BRT, atrelado ao seu zoneamento, e por ser pioneira no Estatuto das Cidades, e à existência de parques, estes muito oportunos ao discurso verde que a cidade vende. De fato, a existência dos parques e de um zoneamento que ainda funcionava até décadas atrás permitiu, por linhas oportunistas e de forma desigual, que grandes porções da cidade se beneficiassem daquelas áreas verdes.
Fato é, no entanto, na antiga Sapolândia já não se veem mais sapos. Os rios da cidade estão cada vez mais retilíneos e canalizados, a cobertura vegetal de Curitiba, em meio à Mata Atlântica com fragmentos de campos naturais, está em declínio e a população humana e as mais-que-humanas têm usufruto garantido de apenas 9,2% da área total do município por meio de parques, bosques e Unidades de Conservação. A esperança recaía em uma mudança de paradigma forçada pela ebulição climática, fato negado, como apresento a seguir, pela Prefeitura de Curitiba e seu Instituto de Pesquisa e Planejamento Urbano (IPPUC), financiados pelo Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).
Sob o convidativo Programa de Mobilidade Urbana Sustentável, Curitiba está, em diversas frentes, em obras. Dois grandes projetos são focos desse programa: Novo Inter 2 e BRT Leste Oeste. Aqui nos atemos ao primeiro. O Inter 2 é uma linha circular, integradora dos diversos Eixos Estruturais da cidade e, por isso, será o segundo eixo com mais usuários – 155 mil passageiros por dia útil, se somarmos à conta a linha Interbairros 2. A obra do Novo Inter 2 se resume a requalificações da infraestrutura viária, dividida em cinco lotes ao longo dos 38 km do seu itinerário. Junto às obras, que consistem em “70 km de vias que serão abertas ou requalificadas”, ainda ganharemos novas estações carregadas de parafernálias eletrônicas. Ok, até aqui, discutível.
Para a viabilidade das obras, em dezembro de 2020 o município e o BID assinaram o empréstimo de 106,7 milhões de dólares. Para Morgan Doyle, representante do BID no Brasil, não poderia deixar de ser “um orgulho poder participar deste novo empreendimento de mobilidade urbana”, que em cotações atuais emprestará mais de 600 milhões de reais ao município, a serem pagos em formas e juros ainda não esclarecidos – por ora, a luta ainda permeia pelo básico direito democrático da população ser informada e ouvida.
O BID é “um parceiro para a América Latina” – a América Latina, Curitiba e seus moradores são clientes do banco. Este oferece apoio financeiro e técnico a 26 países do continente e suas respectivas sub-regiões sob três objetivos: (1) reduzir a pobreza e a desigualdade, (2) abordar as mudanças climáticas e (3) fortalecer o desenvolvimento regional sustentável. A lógica é como se cada morador da cidade tivesse emprestado à Prefeitura por intermédio do BID, confiando a este a garantia que o orçamento será empregado em um projeto que auxilie na redução das desigualdades sociais, fortaleça a resiliência da cidade frente às mudanças climáticas e aprimore a capacidade econômica da cidade, inclusive para pagar sua dívida.
Não obstante à diretriz interna do Banco, é de se esperar o respeito da instituição baseada em Washington à legislação brasileira. Diretrizes do Estatuto da Cidade coadunam com a preocupação ambiental (Art. 2o):
- Garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido com o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações;
- Ordenação e controle do uso do solo, de forma a evitar a deterioração das áreas urbanizadas e a poluição e degradação ambiental;
- Adoção de padrões de produção e consumo de bens e serviços e de expansão urbana compatíveis com os limites da sustentabilidade ambiental, social e econômica do Município e do território sob sua área de influência;
- Audiência do Poder Público municipal e da população interessada nos processos de implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população
Aqui o discurso, o esperado e a realidade começam a se contrapor. Desde 2019, quando os primeiros projetos referentes ao Novo Inter 2 começaram a ser publicados a fim do desejado financiamento, até hoje, a população diretamente afetada pelas obras que já estão a todo o vapor em todos os seus lotes nada sabe e nada influencia sobre as tomadas de decisão. Em maio de 2024, praticamente ao acaso, uma moradora desconfiou de derrubadas de árvores para a execução do Lote 1 da referida obra e buscou apoio de legisladores de oposição que deram visibilidade à situação. Hoje, o movimento popular SOS Arthur Bernardes reúne mais de 10 mil assinaturas de cidadãos contrários à continuação das obras do Novo Inter 2. Ao mesmo tempo que busca se fazer ouvir, o grupo investiga do que, afinal, a obra consiste, já que tudo que se divulga até agora é propaganda do projeto e não que ao menos 1.089 árvores serão derrubadas (contagem manual feita por moradora). Descobriu-se, investigando documentos, que, somente sobre o Lote 1 da obra:
- Nenhuma audiência pública foi realizada;
- Nenhuma alternativa locacional foi apresentada;
- Trecho de leito natural do Córrego Vila Izabel, localizado no eixo verde da Avenida, será canalizado;
- 642 árvores jovens e adultas, entre elas espécies ameaçadas de extinção, serão cortadas somente na Av. Arthur Bernardes;
- Terminal de ônibus Santa Quitéria será construído sem estudo de viabilidade nem de alternativas;
- 13 mil metros quadrados que hoje são parte de parque linear serão asfaltados (32%);
- Trechos da obra não favorecem em nada o transporte coletivo sobre o individual;
- Projeto de 2024 tem mudanças importantes em relação ao apresentado em 2019.
Os fatos acima referem-se somente ao Lote 1 da obra, que está ocorrendo na Av. Arthur Bernardes, via com importante parque linear com 40.000 m2 entre as pistas, considerada a principal área de lazer dos bairros Portão, Santa Quitéria, Seminário e Vila Izabel, totalizando mais de 70.000 habitantes. Neste eixo verde, moradores e ativistas do SOS Arthur Bernardes, sob a orientação da também integrante do movimento Ionete Hasse, bióloga doutora, realizaram o inventário da flora do Parque. Neste constatou-se a existência de 1.599 plantas acima de 60 cm de altura com 60% de nativas da Mata Atlântica, sendo 187 indivíduos de Araucaria angustifolia, 4 indivíduos de Ocotea porosa e 3 indivíduos de Ocotea odorifera, espécies estas na lista de ameaçadas de extinção. Paralelo ao levantamento, estudo independente de 2011 identificou 1.081 árvores, 71% delas nativas do Brasil.
No fatídico 30 de agosto de 2024 as empreiteiras chegaram ao bairro Santa Quitéria sem aviso prévio e iniciaram o corte de 100 árvores na até então pacata rua Cel. Airton Plaisant, paralela à Av. Arthur Bernardes e integrante do projeto de ampliação viária. Moradores tiveram que rapidamente se organizar e literalmente abraçaram árvores naquela sexta-feira. Algumas árvores, que a Prefeitura orgulhosa diz ter transplantado, são hoje evidência do descaso – estão esturricadas e mortas em uma praça ao lado. Outras foram cortadas e a maioria, graças aos moradores, continuam em pé. O que mais chama a atenção nessa história, no entanto, é a mudança de projeto causada pela balbúrdia. Ficou decidido que a rua Cel. Airton Plaisant, apesar de continuar parte do projeto, deixará de ser alargada e suas árvores restantes serão mantidas. A questão que fica, por que as alternativas não foram apresentadas e discutidas antes? O corte das outras mil árvores pelo Novo Inter 2 poderia ser evitado? O Córrego poderia não ser canalizado? Quais foram as alternativas locacionais consideradas em toda a obra?
Cronologia dos fatos
- 2019: projetos são elaborados pela Prefeitura, IPPUC e UTAG;
- 2020: BID e Prefeitura de Curitiba assinam contrato de empréstimo de US$ 106.700.000,00;
- 14 de maio de 2024: Em Consulta Pública do IPPUC (diferente de Audiência Pública) moradora local descobre projeto, porém espaço para questionamentos é ignorado e técnico do IPPUC deixa local ao fim do discurso. Em resposta por e-mail, IPPUC afirma que “algumas árvores serão suprimidas”;
- 06 de junho de 2024: Primeiro encontro de moradores contrários às obras na Av. Arthur Bernardes. Poucos dias depois inicia-se o abaixo-assinado;
- 06 de agosto de 2024: Outra moradora abre protocolo junto ao BID apontando irregularidades da obra e falta de transparência;
- 13 de agosto de 2024: Audiência Pública é convocada por vereadora Giorgia Prates na Câmara Municipal de Curitiba. IPPUC, SMMA e SMOP da Prefeitura, GAEMA , Promotoria de Justiça e Meio Ambiente do MPPR e NCID e NUFURB da Defensoria Pública são convidados, porém não comparecem. Mais de 100 pessoas presentes presencialmente e 770 pelo YouTube;
- 29 de agosto de 2024: Reunião online entre o BID e integrantes do SOS Arthur Bernardes é realizada. Nela o movimento expõe suas preocupações quanto à obra, com destaque à falta de Audiência Pública e os possíveis impactos ambientais da obra. Foi a primeira e única reunião do BID com o movimento;
- 30 de agosto de 2024: Empreiteiras iniciam corte de árvores em rua paralela à Av. Arthur Bernardes. Moradores abraçam árvores e evitam a continuação dos cortes;
- 03 de setembro de 2024: BID agenda para o dia 10/09 reunião presencial com representantes do BID, IPPUC e SOS Arthur Bernardes;
- 05 de setembro de 2024: Movimento SOS Arthur Bernardes faz projeção sobre prédio da Prefeitura e pelo centro da cidade em demonstração ao Dia da Amazônia;
- 09 de setembro de 2024: Ministério Público obtém liminar para suspensão das obras na Av. Arthur Bernardes. No mesmo dia BID cancela a reunião do dia 10/09 alegando a liminar de suspensão das obras;
- 17 de setembro de 2024: Desembargador Leonel Cunha do TJ-PR derruba liminar e autoriza retomada das obras;
- 21 de setembro de 2024: Moradores organizam grande Ato do Dia da Árvore, com bicicletada, oficinas, limpeza do Córrego Vila Izabel, assinatura da carta-compromisso com candidatos e candidatas e atrações culturais. Por volta de 200 pessoas presentes;
- 25 de setembro de 2024: BID entra em contato para reagendar a reunião para o dia 16/10.
- 26 de setembro de 2024: Novo ato de assinatura da carta-compromisso é organizado. No total, 3 candidatos ao executivo e 33 ao legislativo a assinam.
- 13 de outubro de 2024: SOS Arthur Bernardes promove evento do Dia das Crianças;
- 15 de outubro de 2024: SOS Arthur Bernardes convoca protesto pacífico em frente à sede do IPPUC para a reunião entre representantes do movimento, BID e IPPUC. No mesmo dia, BID cancela a reunião alegando comprometimento pelo ato convocado a acontecer na rua. Inércia do BID desde então;
- 21 de outubro de 2024: Moradores entregam à Prefeitura abaixo-assinado com 10 mil assinaturas;
- 23 de outubro de 2024: BID comunica que próxima reunião entre Banco, movimento popular e IPPUC seria em 28 ou 29 de outubro;
- 29 de outubro de 2024: Reunião com o IPPUC prometida pelo candidato vencedor e pelo BID não é realizada. Inércia do candidato eleito, Prefeitura, IPPUC, UTAG e BID;
- 01 de novembro de 2024: BID retoma contato com moradora que protocolou falhas da obra. Afirma estar em processo de “recrutamento de um especialista em facilitação e mediação”. Obras do Novo Inter 2 continuam sem alterações;
- 05 de novembro de 2024: Comerciantes da Av. Arthur Bernardes começam a ser comunicados verbalmente que obras iniciarão em dois dias. Vias ficarão totalmente bloqueadas por três meses.
Momento para mudança de rumos
A Av. Arthur Bernardes, ponto de resistência do seu movimento SOS e exemplo do que a obra do Novo Inter 2 está causando em 28 bairros, é importante regulador climático e ponto de frescor da cidade, ponto de encontro e lazer entre quatro importantes bairros residenciais da cidade e parte da bacia hidrográfica do Córrego Vila Izabel. O Córrego, que ainda resiste por 116 m em seu leito natural onde as obras ocorrerão, no meio da Av. Arthur Bernardes, sofre com inundações em suas baixadas durante chuvas extremas e tem, em seus túneis sob a Avenida, emaranhados de galhos e troncos presos em concreto e encanamentos como aviso prévio do que está por vir. Curitiba não tem um rio Tietê ou Pinheiros nem uma lagoa dos Patos à sua porta, mas tem seus rios Ivo, Belém, Atuba e Barigui. Todos fluem ao sul, por onde vão se aproximando dos bairros mais periféricos e das populações mais fragilizadas da cidade, até o encontro com o rio Iguaçu. São essas as populações que rotineiramente sofrem com inundações e não têm chance alguma de mobilidade social e de redução de desigualdade, objetivos pregados pelo BID. É para essas pessoas que o escoamento superficial causado pela obra do Novo Inter 2 nos bairros a montante vai chegar mais rápido e mais forte, agravado pelos eventos extremos, cada vez mais potentes. São esses bairros que põe Curitiba entre as cidades mais suscetíveis a inundações, enxurradas e deslizamentos do Brasil e por isso foco para ações de mitigação a riscos, segundo o Governo Federal.
Bancos de desenvolvimento não são organizações ambientais propriamente ditas, ainda assim representam importantes burocracias intergovernamentais que atuam na área ambiental. Espera-se deles, transparência e responsabilidade socioambiental, além de respeito à legislação local. Não convém a estas instituições, os mesmos erros dos anos de 1970 e 1980, ao financiar desmatamento, destruição de ecossistemas marinhos e a degradação dos solos. Talvez o exemplo mais infame nesta matéria tenha ocorrido, inclusive, no Brasil. O Polonoroeste entre Rondônia e Mato Grosso, financiado com 450 milhões de dólares do Banco Mundial, causou desmatamento, grilagem e doenças e foi um dos responsáveis pelo início das políticas de salvaguardas ambientais implementadas desde então. Diante do paradigma global atual, o BID estabelece em seu planejamento estratégico tratar biodiversidade, capital natural e ação climática como prioridades verticais e transversais em suas ações. Aqui conta, inclusive, uma “economia resiliente ao clima e positiva para a natureza”. Soa um bom momentum para o BID rever suas exigências quanto ao projeto em Curitiba.
Curitiba e BID são parceiros de longa data, vale lembrar. Em 1994, sob a presidência de Cassio Taniguchi, o IPPUC apresentou ao BID seu projeto do Bonde Moderno. Eram 350 milhões de dólares financiados pelo BID para a construção de um novo modal, carente de subsídios, com custos altíssimos e atendendo apenas pequena parte da população. Coube ao subsequente presidente do IPPUC, Rafael Dely, o convencimento do então prefeito de Curitiba contrário a qualquer alteração no projeto, Rafael Greca, sobre sua adequação à tecnologia que o município já dispunha e dominava, o BRT. Entre idas e vindas de Curitiba a Washington, o novo projeto, que passou a custar 85 milhões de dólares, foi aprovado e o BID ainda disponibilizou todo valor restante (US$ 265 milhões) para obras diversas e variadas intervenções, utilizados pelo mesmo prefeito e seu sucessor. Já estamos convencidos, por exemplo, que o terminal de ônibus pretendido não atende aos interesses públicos e tem alternativas já em uso, à disposição para serem qualificadas e empregadas, exatamente como no exemplo de 1994.
Após seis meses de resistência e esforço para apontar os inequívocos impactos ambientais e sociais das obras do Novo Inter 2 e seu antagonismo frente ao enfrentamento e mitigação dos efeitos do aquecimento global, resta, aos mais de 10 mil que assinam o abaixo-assinado do SOS Arthur Bernardes, que nos amarremos às árvores ao passo que a motosserra avança. Talvez esse ruído nos fará ser ouvidos? Ao BID teremos que pagar nossa dívida, ao BID confiamos o cumprimento da lei. Vamos ao diálogo pleno, Curitiba e BID?
*Texto e processo construído por todo o SOS Arthur Bernardes. Especial obrigado às companheiras e companheiros de luta Ari Vieira, Ionete Hasse, Ivete Boletta, Jennifer Serna, Kelly Ester, Leonardo F. Baggio, Lisiane Sari, Rafaela Fioravanti, Simone Maciel, Verônica Rodrigues.
As opiniões e informações publicadas nas seções de colunas e análises são de responsabilidade de seus autores e não necessariamente representam a opinião do site ((o))eco. Buscamos nestes espaços garantir um debate diverso e frutífero sobre conservação ambiental.
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Está matéria “Curitiba atropela à população com obras de mobilidade” está maravilhosa!!!! Completa!!! O transporte não será resolvido, nem melhorado com esse inter 2. O problema são ônibus cheios e intervalos de até uma hora entre eles. Isso é uma enganação para poder fazer a “partilha” do dinheiro do empréstimo do BID. É uma pena, triste mesmo que poucas pessoas não leiam ou se interessem pelo que realmente importa …
Sem diálogo, obra de mobilidade atropela população e quer reduzir parque em Curitiba – Nós, munícipes da cidade de Curitiba, residentes nos bairros (Portão, Santa Quitéria, Seminário e Vila Izabel), estamos sendo tolhidos em nosso direitos de cidadãos. Estamos a vários meses solicitando uma reunião com a prefeitura, IPPUC e o BID e não temos nenhuma resposta.