O Pantanal, umas das maiores planícies inundáveis do mundo, possui apenas 5% (7.400 km2) de seus 140.000 km2 protegidos em Unidades de Conservação públicas e privadas. Essa é uma extensão ínfima, desproporcional e inaceitável se considerarmos a sua tão rica biodiversidade e a expressividade de processos biológicos, alguns deles exclusivos de seus domínios. Unidades de Conservação são fundamentais em toda estratégia ambiental de um país. Sua seleção, priorização, delimitação e implantação devem se basear em fundamentos os mais precisos e detalhados quanto possível, particularmente em um país tão diverso e de dimensão continental como o Brasil.
Durante a 10° Conferência das Partes das Nações Unidas (COP-10) da Convenção sobre a Diversidade Biológica (CDB), realizada em Nagoya (Japão) em 2010, os países signatários – nos quais inclui-se o Brasil – firmaram sua concordância com o “Plano Estratégico de Biodiversidade (2011-2020)”, documento que ficou conhecido como “Metas de Aichi”. Nesse acordo, destaca-se a Meta 11, que recomenda a expansão e implementação dos sistemas de áreas protegidas em pelo menos 17% dos espaços terrestres e de águas continentais, com prioridade para áreas de especial importância para a biodiversidade e para os serviços ecossistêmicos.
A repercussão deste plano teve grande importância no cenário ambiental mundial e, de fato, muitos países cumpriram os compromissos estabelecidos, seguindo à risca todas as recomendações. Além disso, desencadeou-se um refinamento da proposta (Plano Estratégico para a Biodiversidade 2030-2050) que, neste momento, durante a COP-15 em Montreal (Canadá), está sendo discutida, com indicação de uma proteção de 30% dos ecossistemas sob várias formas de planejamento.
O Brasil sequer atingiu pequena parte dos objetivos firmados em 2010, o que causa desconforto e apreensão, em especial quando se trata de regiões como o Pantanal, conhecido por todos como um dos biomas com menor proteção formal no país e também detentor de uma das maiores riquezas biológicas do mundo. Isso, obviamente, fragiliza o país perante a comunidade internacional sob diversos aspectos.
Por outro lado, nas últimas três décadas o Estado brasileiro tem feito um grande esforço para suprir essa lacuna, por meio de numerosas ações protetivas ou, ainda, de natureza estratégica. Um dos processos mais importantes nesse contexto, que vem sendo realizado desde meados da década de 1990 – e especialmente a partir do início do século 21 – é o mapeamento sistemático e o reconhecimento oficial das chamadas “Áreas Prioritárias para a Conservação, Utilização Sustentável e Repartição dos Benefícios da Biodiversidade (Portaria nº 463 de 18 de dezembro de 2018)”. Esses espaços, tratados como prioritários e essenciais para a conservação da natureza, são identificados minuciosamente por uma grande equipe multidisciplinar de especialistas e pesquisadores, com base em dados concretos da riqueza de espécies, endemismos, ameaças, singularidades ecológicas e, especialmente, pela relevância de características biológicas, muitas vezes exclusivas dessas regiões.
Com isso, entende o Estado brasileiro que o reconhecimento e oficialização desse criterioso mapeamento de regiões com maior necessidade, urgência e/ou relevância para conservação é um instrumento de política pública que visa à tomada de decisão de forma objetiva e eficiente no planejamento e implementação das medidas adequadas, conforme definido pelo próprio Ministério do Meio Ambiente – MMA. Entre os objetivos finalísticos desta estratégia está a preservação de amostras representativas dos ecossistemas nacionais na forma de Unidades de Conservação.
Nesse contexto, argumentamos de forma crítica, mas construtiva, acerca da decisão anunciada no dia 12 de dezembro último, no programa “Em Pauta”, da GloboNews, que anunciou a ampliação de duas áreas do Pantanal, ambas no estado de Mato Grosso (Estação Ecológica de Taiamã e Parque Nacional do Pantanal Matogrossense), pelo novo Governo Federal que se inicia em janeiro.
Em que pese a urgente necessidade de aumentar a área do Pantanal oficialmente protegida por Unidades de Conservação públicas, reconhecemos essa agenda anunciada como um resgate de uma iniciativa tentada em 2018 e que, porém, jamais chegou a ser concretizada. Com efeito, naquele mesmo ano ocorreram importantes debates, resultantes de divergências técnicas sobre a prioridade dada a estas duas áreas e, ainda, realizaram-se audiências públicas à época no estado de Mato Grosso, mas nada foi concretizado. Faltou diálogo com a sociedade local e, especialmente, com um leque mais amplo de cientistas da conservação sobre as prioridades para o Pantanal.
As duas Unidades de Conservação mencionadas representam os ecossistemas mais inundáveis do Pantanal, tanto pela duração como pela extensão do alagamento, com muitas áreas sendo permanentemente inundadas. Ambas protegem ecossistemas típicos da área de alta inundação localizadas ao longo do rio Paraguai, uma das 12 sub-regiões do bioma.
A partir desta contextualização, e considerando a noticiada proposição de aumento das áreas destas duas Unidades de Conservação, apresentamos a seguir os argumentos que se contrapõem à priorização destas áreas em detrimento de outras no Pantanal:
1 – O Parque Nacional do Pantanal Matogrossense e a Estação Ecológica de Taiamã fazem parte de um conjunto de Unidades de Conservação federais e estaduais (totalizando 360.600 ha) e privadas (217.000 ha) localizadas no norte do Pantanal, que constitui o maior mosaico de áreas protegidas do bioma. Este mosaico, compreende mais de 77% das áreas formalmente protegidas no Pantanal, mas que estão concentradas em uma região que representa apenas 35% do bioma. É uma representatividade absolutamente desequilibrada, considerando o restante dos diversificados, e às vezes únicos, ecossistemas pantaneiros;
2 – A decisão pela ampliação destas duas áreas ignora o extenso trabalho realizado para identificar as Áreas Prioritárias para Conservação da Biodiversidade, bem como o conceito básico da escolha de áreas protegidas para a conservação, que é a garantia de proteger amostras representativas dos ecossistemas;
3 – A maior parte do Pantanal não possui as mesmas condições ecológicas que as áreas de alta inundação ao longo do rio Paraguai. Portanto, a decisão pela expansão do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense e da Estação Ecológica de Taiamã representa proteger mais do mesmo, ignorando as diferenças regionais no padrão de inundação, paisagens, ecossistemas, processos ecológicos e biodiversidade existentes na maior parte do Pantanal. O resultado é quase nenhuma adicionalidade obtida no sentido de garantir a conservação da biodiversidade do bioma como um todo. Além disso, levando-se em conta os exercícios de priorização já mencionados, conduzidos pelo próprio Ministério do Meio Ambiente, essas áreas jamais deveriam ser alvos de ação prioritária antes de outras áreas de maior valor ou urgência quanto à proteção de amostras dos ecossistemas;
4 – A ampliação do Parque Nacional do Pantanal Matogrossense trará ainda a incômoda potencialidade de uma “expulsão econômica” das comunidades tradicionais existentes em seu entorno, as quais utilizam várias áreas de alta inundação para a coleta de recursos (peixes e iscas vivas, principalmente), uso este bem documentado por diversos estudos já publicados. Estes aspectos devem ser considerados à luz da Política Nacional de Desenvolvimento Sustentável dos Povos e Comunidades Tradicionais, da Convenção n⁰ 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre Povos Indígenas e Tribais, e do próprio Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC);
5 – Essa decisão, se concretizada, não segue nem mesmo as políticas públicas baseadas no esforço para a priorização de áreas conduzida pelo próprio Governo Federal desde 1997, com especial ênfase ao período em que a ex-ministra Marina Silva esteve à frente do Ministério do Meio Ambiente, tampouco à estratégia baseada em representatividade do conjunto das Unidades de Conservação nacionais;
6 – O mapa das Áreas Prioritárias para Conservação da Biodiversidade no bioma Pantanal aponta várias outras regiões que não estão devidamente ou suficientemente protegidas, o que é um desperdício de informações reunidas com esforço e recursos públicos, considerando-as que são justamente decisões baseadas em conhecimentos científicos e priorização sistemática visando a racionalidade no uso de recursos públicos e a efetividade no alcance dos objetivos de políticas públicas.
Assim, a ponderação que se faz é de que a expansão das áreas protegidas no Pantanal é uma medida necessária. No entanto, recomendamos que regiões do bioma com menor representatividade no conjunto das Unidades de Conservação existentes e/ou que estejam sob maior ameaça de perda de ecossistemas únicos sejam consideradas como prioritárias no processo de tomada de decisões. Exemplos de regiões únicas no Pantanal e mesmo no Brasil são o Chaco, no sul do Pantanal e a região das salinas da Nhecolândia (Fotos), ambas sem nenhuma Unidade de Conservação pública ou RPPN de maior extensão.
Com estes argumentos, esperamos chamar a atenção e o entendimento da nova administração do Governo Federal, que se inicia em janeiro de 2023, sobre a necessidade desta racionalidade na tomada de decisões, bem como da valorização e da continuidade de políticas públicas caras à sociedade brasileira, como são as Áreas Prioritárias para Conservação da Biodiversidade. Neste sentido, é fundamental um amplo diálogo e redes colaborativas para que as decisões executivas estejam em conformidade com as políticas de Estado e com as percepções da comunidade científica, populações locais e sociedade em geral. Se não apenas pela coerência, que seja para demonstrar que a destinação de prioridades recai em áreas realmente críticas, o que irá, sem dúvida, trazer um quadro mais equilibrado para a proteção do bioma Pantanal e de todos os seus diversos componentes.
Reforçamos também que a conservação do bioma Pantanal não depende única e exclusivamente da ampliação da rede de Unidades de Conservação, mas passa necessariamente por políticas públicas diferenciadas e inovadoras que visem a compensar satisfatoriamente os proprietários rurais que conservam a biodiversidade, mantêm serviços ecossistêmicos e que produzem de forma comprovadamente sustentável. A preservação através de áreas protegidas e políticas públicas eficazes na conservação das paisagens de seu entorno são estratégias complementares e indissociáveis.
Finalmente, a esperança de dias melhores para as questões ambientais no Brasil passa necessariamente pela tomada de decisões livre de velhos hábitos baseados fortemente na conveniência, e que mais ênfase seja dada às orientações fundamentadas na ciência. E é isso que esperamos do novo governo brasileiro, neste caso envolvendo Unidades de Conservação no Pantanal.
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