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A águia de Marina Silva

Ao explicar por que não sai do governo Lula, a ministra Marina Silva mostram como até as criaturas mais valentes podem acabar depenadas.

25 de novembro de 2004 · 20 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

A ministra Marina Silva, pelo menos, está contente com a política ambiental do governo Lula. Outro dia, deu uma entrevista ao Globo, que o jornal emoldurou numa penca de decepções. Marcelo Furtado, do Greenpeace, dizia que ela se meteu “numa sinuca de bico”, engolida por uma administração que trata os escrúpulos ecológicos “como obstáculo e não como desafio”. Segundo Denner Giovanni, da Renctas, quando os ambientalistas perdem mais uma batalha para o desenvolvimentismo selvagem, ela é capaz de ir “para a porta de seu próprio ministério” participar dos protestos, como se não tivesse nada a ver com a equipe que tomou a decisão.

A ministra já engoliu coisa pior. Semanas atrás, a ecologista Maria Tereza Pádua, madrinha da maioria dos parques nacionais brasileiros, criados por sua mão, perguntou num artigo o que a ministra anda fazendo num governo que libera a soja transgênica, aprova a importação de pneus velhos, tolera a liquidação de Mato Grosso, anestesia o Conselho Nacional de Meio Ambiente e miniaturiza unidades de conservação. Resposta: “Ministro não ameaça presidente. Quando o ministro acha que não dá mais, vai lá e entrega a carta de demissão em caráter irrevogável”.

De política Marina Silva provou que entende. Se a sua passagem pelo Ministério do Meio Ambiente não servir para mais nada, ela mereceria ser lembrada por essa declaração, um modelo de despoluição retórica na vida pública brasileira. E não só da vida pública, como da língua portuguesa. Contaminada pela semântica da esperteza política e do compadrio, ela exprime um país onde demissão se pede, em vez de dar, como acontece em terras e idiomas mais desenvolvidos. Pedir demissão é coisa nossa. Normalmente, demissão se dá. E quem dá vai embora. Pedindo, pode-se receber ou não. Pior ainda, pedir demissão a um chefe que a chama em público de “companheira” é um modo de perguntar como vai aquela velha amizade. Na pior das hipóteses, um mau passo em direção à porta de saída.

Santas palavras. Quantas tardes os jornalistas não perderam nos últimos meses, esperando em vão pelo desfecho de intermináveis conversas de Marina Silva com o presidente, na esperança de publicar no dia seguinte um drama político que simplesmente não estava rolando lá dentro. Mas a ministra, que vinha tão bem na entrevista, complicou tudo nas frases seguintes, falando do que não conhece muito bem. Disse que, cada vez que perde uma briga no governo, está só afiando as garras, “como a águia que tem de quebrar o bico na pedra, arrancar as penas e as unhas para nascer uma nova unha, um novo bico”. Marina Silva quer ser a única águia brasileira que não está em risco de extinção.

As outras foram cassadas há muito tempo pelos ornitólogos. Eles afirmam que águia de verdade o Brasil nunca teve. Tem, sim, a harpia ou gavião-real, que só é águia em sentido lato, segundo o naturalista Rodolpho von Ihering, autor do único dicionário fauna brasileira que freqüenta livraria. E até nossa harpia está desaparecendo. O Parque Nacional do Itatiaia, por exemplo, tem uma empalhada no museu e outra que voa há anos como um fantasma nas Agulhas Negras, sem que nenhum biólogo aposte o diploma em sua existência. Em Itatiaia, ela já virou animal mitológico.

Mas foi certamente de outra mitologia, a indígena, que a ministra do Meio Ambiente tirou a tal história da águia que arranca as penas, os bicos e as unhas para ganhar força. Se tira, a “Ornitologia Brasileira”, de Helmut Sick, não viu. O que Sick encontrou no Xingu foi outra coisa: caciques que mantinham uma harpia em cativeiro, para cortar-lhes “periodicamente” as penas “de largura ímpar” de seus enfeites tribais. “Estes prisioneiros”, diz no livro o verbete sobre o gavião-real, “são considerados a personificação do cacique e quando seu dono morre, ou são mortos, ou sucumbem à fome”. Os índios do Xingu gostavam da harpia como o publicitário Duda Mendonça gosta dos galos de briga.

Ihering vai mais longe. Ou chega mais perto da ministra. Ele conta que “os índios, empolgados pela beleza e tamanho dessa ave de rapina, tributam-lhe admiração e respeito bem-merecidos. D’Orbigny e Tschudi, em suas viagens pelas regiões do Alto Amazonas, constataram o quanto é estimada a ave”. Lá, “um índio que possui uma harpia viva” é “é personagem muito feliz”. Duas vezes por ano, “o rico proprietário arranca todas as penas das asas e da cauda do gavião e, depois de ter enfeitado suas flechas e preparado vistosos cocares com tais penas, permuta as demais em troca de coisas de valor: alimentos, utensílios, adornos”.

A ministra parece tão convencida de que a natureza brasileira deve ser confiada aos “povos da floresta”, que pelo visto confundiu o hábito da harpia com a tradição do desenvolvimento sustentável. Convicção, como se sabe, é o seu forte. Mas as metáforas são o fraco do governo Lula. A da águia, por exemplo, serve para mostrar como uma criatura valente é tirada da mata para acabar depenada pelo chefe.

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