Colunas

O Brasil de Coruripe

Fotografado numa reserva em Alagoas, o livro "Coruripe", de Juarez Cavalcanti, prova que o Brasil é a terra da mata atlântica. O resto não passa de imitação.

10 de fevereiro de 2005 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

“Coruripe”, do fotógrafo Juarez Cavalcanti, é um livro com mão e contramão. Como num manual ilustrado de otimismo, suas 180 páginas mostram que a mata atlântica ainda não está inteiramente perdida no Brasil, a julgar pelos exemplos de exuberância inesgotável que ele colheu nesses 7.544 hectares de reserva florestal, salva dos canaviais em Alagoas por um usineiro providencial.

Mas, lido de trás para a frente, “Coruripe” vira um resumo do que o Brasil desperdiçou nesses 505 anos de conquista predatória. Foi mais ou menos assim, dividido entre conclusões paradoxais, que o historiador americano Warren Dean se sentiu, ao pisar num pedaço de floresta intacta no meio dos cafezais de São Paulo: “É uma visão espantosa. De um dossel de árvores com 50 metros de altura – cabreúvas, poerobas, jequitibás, de troncos aveludados e folhagem delicada – a luz da manhã se filtra através dos fios emaranhados de trepadeiras e lianas”. De um lado, ele teve “gratidão” por quem guardou aquele retalho de mata. Do outro, desdém por quem botou fora a floresta inteira.

Esse choque do primeiro encontro com a legítima paisagem brasileira aparece nos parágrafos iniciais de “Rio Claro, a Brazilian Plantation System”, onde Dean contou a história do café em São Paulo. Mas serve de aviso para o grande livro que viria depois – “A ferro e fogo”, sobre a malversação da mata atlântica por todos os ciclos da economia brasileira.

No “Coruripe” de Juarez Cavalcanti também se enxerga, através das cores e formas de um belo álbum fotográfico, o trabalho de campo da pesquisadora Aliete Bezerra. Ela fez ali, dois anos atrás, sua dissertação de mestrado em Biologia – “Florística e fitossociologia do estrato arbóreo de fragmentos da mata atlântica da Usina Coruripe”, catalogando na reserva 163 espécies de árvores, divididas em 114 gêneros e 55 famílias.

Em fotos, esse inventário se traduz numa profusão de detalhes, quase tão intrincada quanto a própria mata. Há o amarelo das flores do pau-brasil, o rosa da canafístula, o vermelho vivo da casca de barbatimão, o dourado da munguba, o prateado da gararoba. Tanta flor e tanta fruta genuinamente brasileira, que as legendas das fotografias parecem prontas para serem musicadas por Tom Jobim: araticum-taia, mutamba, mirindiba, camaçari, tuturubá, maçaranduba e caboatã.

Mas a eloqüência está no conjunto. Esparramada em quatro páginas, uma fotografia panorâmica da mata florida desdobra copas amarelas e vermelhas a perder de vista, debruçadas sobre a monotonia verde do canavial. Vistas assim, com a cana simplória e a floresta complexa uma diante da outra, fica difícil entender o que inspira uma pessoa a derrubar árvore para plantar cana.

Preservar aquilo parece a coisa mais natural do mundo. Mas, para escapar do “mar de cana” da usina, conta o repórter Xico Sá na apresentação do livro, aquele pedaço da mata atlântica de Alagoas precisou de muita sorte. A indústria açucareira chegou ali em 1925. Não havia caminho. As máquinas trazidas da Alemanha subiram em barcaças o rio Coruripe para o coração das trevas, como numa novela de Joseph Conrad, levando a desordem humana para dentro da desordem primordial.

O pioneiro dessa aventura quebrou. Falida, a propriedade passou às mãos do comerciante Tércio Wanderley. Hoje, nas mãos de seus herdeiros, o Grupo Tércio Wanderley, um conglomerado de quatro empresas, produz cerca de seis milhões de sacos de açúcar por ano, e tem um programa de gestão ambiental. E a mata que ficou de pé acabou registrada como reserva particular. Recentemente, ganhou mais 689 hectares de árvores, replantadas em terras de canavial.

Que ela é o orgulho da usina não há dúvida, pois o livro que a celebra foi patrocinado pela empresa. O caso de Tércio Wanderley lembra o do fazendeiro Feliciano Abdala em Caratinga, em Minas Gerais. Ele também era um comerciante que preservou, por capricho pessoal, uma pequena mata em suas terras. Nela vivem muriquis. E esses macacos, quase extintos no resto do Brasil, puseram Caratinga no mapa mundial da primatologia.

Essas coisas acontecem. E, quando acontecem, como nos cafezais de Abdala ou nos canaviais de Wanderley, parecem tão bem sucedidas que, para explicá-las, basta a frase de Seu Nilo, um sertanejo entrevistado por Xico Sá na vizinhança da usina: “Já passei mais de mês derrubando pé de pau nessa mata adentro, era uma bagaceira medonha; agora sou incapaz de bulir num garrancho, de tirar uma casca”. Duro de explicar é todo o resto.

Leia também

Salada Verde
17 de maio de 2024

Avistar celebra os 50 anos da observação de aves no Brasil

17º Encontro Brasileiro de Observação de aves acontece este final de semana na capital paulista com rica programação para todos os públicos

Reportagens
17 de maio de 2024

Tragédia sulista é também ecológica

A enxurrada tragou imóveis, equipamentos e estradas em áreas protegidas e ampliou risco de animais e plantas serem extintos

Notícias
17 de maio de 2024

Bugios seguem morrendo devido à falta de medidas de proteção da CEEE Equatorial

Local onde animais vivem sofre com as enchentes, mas isso não afeta os primatas, que vivem nos topos das árvores. Alagamento adiará implementação de medidas

Mais de ((o))eco

Deixe uma resposta

Esse site utiliza o Akismet para reduzir spam. Aprenda como seus dados de comentários são processados.