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O lixo, modéstia à parte

Jardim Gramacho, do fotógrafo Marcos Prado, prova que a reciclagem funciona mesmo. Ele tirou do maior lixão do Rio de Janeiro um surpreendente livro de arte.

10 de abril de 2005 · 20 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Jardim Gramacho, do documentarista Marcos Prado, é um prodígio da reciclagem: um livro de arte feito com material que ele catou no lixo, em 10 anos de visitas ao avesso de todos os cartões postais do Rio de Janeiro. Ou seja, o vazadouro municipal onde a cidade despeja diariamente sete mil toneladas de imundície, na beira da baía de Guanabara.

Ali, o autor fez mais de mil fotografias, das 87 que vieram parar no livro. São flagrantes da vida cotidiana entre urubus, garças, enxames de mosca, ferros-velhos, bichos mortos, comida putrefata, plástico imputrescível, folhas de manguezal despontando no chorume negro e gente. Quer dizer, catadores de lixo que trabalham e acampam no monturo-mór da cidade.

As fotos têm força de sobra para virar pelo avesso as noções sobre meio ambiente até de quem folheia suas 132 páginas sem sequer reparar que nelas não há legendas. “É difícil descrever a sensação que se tem quando se adentra pela primeira vez um Lixão como Gramacho”, ele conta na introdução do livro. “Além do mar de lixo, do cheiro fétido e putrefato do ar, do fogo e da fumaça que brotavam espontaneamente do chão, do mangue morto asfixiado pelo chorume e dos urubus e garças sorvendo o que viam pela frente, o que mais me chocou em Jardim Gramacho foram as dezenas de homens, mulheres e crianças que ali se encontravam, misturados ao caos daquele cenário de abandono e desolação”.

Ele dirigiu filmes premiados – como Os Carvoreiros e Os Boiadeiros, – mas é antes de tudo fotógrafo. Aliás, um fotógrafo que entrou para o panteão dos “Mestres” que ilustram o calendário da Hasselblad. A cada ano, só há vagas nessa galeria para 12 fotógrafos do mundo inteiro. Marcos Prado entrou no calendário de 2002.

Em troca, suas fotografias em Jardim Gramacho têm a marca inconfundível da câmera Hasselblad em sua configuração clássica: com o visor sem prisma, que induz o fotógrafo a mirar o mundo de cima para baixo, refletido numa placa de vidro despolido, o que é uma maneira de enquadrá-lo de baixo para cima, como se tivesse encarando seu assunto ao mesmo tempo com a cabeça e o umbigo.

A câmera tem seu próprio ponto-de-vista. E não há ângulo melhor do que o dela para fotografar quem é pobre, sujo e maltrapilho. Através da Hasselblad, o fotografado se eleva diante do fotógrafo como um busto no pedestal. E o resultado, quando ambos sabem o que estão fazendo um na frente do outro, é uma escola de retratos que subvertem a perspectiva convencional com que a sociedade olha seus humildes.

Como os jangadeiros de Marcel Gautherot e os estivadores de Pierre Verger, os catadores de lixo fotografados por Marcos Prado parecem altivos. Têm os pés na lama repugnante, mas a cabeça no céu. Enfrentam as lentes de um ângulo que apaga de seus olhares qualquer traço de timidez. E dão até a impressão de que podem fotografar o fotógrafo, como o negro sem rosto que posou por trás de uma câmera Minolta toda amassada, tirada do chão de Gramacho.

Se fosse só isso, o livro bastava. Mas, na edição que a Argumento acaba de lançar, as imagens estão a serviço de um debate sobre o que fazer com o lixo dos oito milhões de cariocas e o que fazer com as pessoas que vivem do que os outros põem fora. E isso é uma novidade e tanto em obras do gênero.

Há opiniões para vários gostos. O engenheiro José Henrique Penido, ex-presidente da Comlurb, desanca a reciclagem, alegando que, em vez de ser a pedra filosofal do consumo sustentável, ela queima recursos caros que também agridem o meio ambiente. “A coleta seletiva de recicláveis”, diz ele, “custa em torno de 5 a 10 vezes mais do que a coleta convencional, e o valor do produto coletado e de 10 a 5 vezes menor do que esse custo. Quem paga a diferença?”

Resposta: o pé-rapado, que parece estar aí para isso mesmo: revolver a podridão em busca de latas de alumínio, garrafas de plástico, papel e vidro. “Na maioria das cidades brasileirase sul-americanas observa-se um aumento extraordinário da catação de produtos recicláveis nas ruas e nos aterros, fruto da crise econômica que se agravou na virada do século. Este fato é consequência do enorme contingente de desempregados que vagam pelas cidades, buscando sobreviver com a recuperação de recicláveis do lixo, que tem se mostrado, aí sim, uma fonte de recursos importantíssima para essas pessoas”.

Não está convencido? Vire algumas páginas e lá está o professor Sabetai Calderoni, diretor do Instituto de Ciência e Tecnologia em Resíduos e Desenvolvimento Sustentável, garantindo exatamente o contrário. A recliclagem, para ele, não é um “sonho romântico de ambientalistas”, mas a saída que ao mesmo tempo poupa dinheiro, evita o desperdício de matérias-primas, aumenta a oferta de emprego, enconomiza energia, “oferece ganhos bilionários á indústria” e “ajuda o planeta”.

Penido e Calderoni conseguem desfraldar suas divergências na ponta do lápis, com equações de perdas e lucros à primeira vista irrespondíveis. O que pode não ser o melhor atalho para quem tem pressa de chegar a uma conclusão sobre o assunto. Mas sem dúvida torna o livro mais divertido. E, se o caso é evitar polêmica, a página 83 oferece um refúgio seguro contra a perplexidade. Lá, o biólogo Mario Moscatelli mostra o que dá para fazer – e o que ele mesmo já está fazendo – para recuperar, pelo menos em parte, o 1,3 milhão de metros quadrados de manguezal que Gramacho afogou em chorume, substituindo “um berçário de vida” por um “paliteiro de árvores mortas”.

Desde 1997, Moscatelli toca em Gramacho um projeto de regeneração desses filtros naturais que a baía de Guanabara perdeu para aterros e vazamentos tóxicos. O processo é complicado e lento. Mas, de lá para cá, em 130 hectares de manguezal gerenciados nas bordas do aterro sanitário “onde havia lixo, hoje há propágulos, plântulas, arbustos, árvores e muitos, muitos caranguejos”.

Claro que, através dos caranguejos, vieram os caranguejeiros, prontos para caçá-los até acabar com eles. Sinal de que o problema tem muitas pontas. Mas Moscatelli acredita que, pelo menos, ficou demonstrada nas piores condições possíveis a fórmula capaz de devolver ao Rio de Janeiro a baía de Guanabara como “área de lazer, local para o ecoturismo e o extrativismo animal”. Como se vê na página 130, onde uma fotografia de Marcos Prado flagrou novas plantas rompendo o lodo negro, como flores na neve.

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