Se a onda é de pessimismo, melhor surfá-la com o biólogo John Terborgh, que é doutor na matéria. Ele dirige a escola de meio ambiente da Duke, que joga no primeiro time das universidades americanas. Dedicou todas as décadas de sua longa carreira a conservar florestas tropicais, sabendo desde menino que esse é um caminho seguro para sofrer muita derrota na vida. Passou a infância entre “cobras, jabotis, lagartos, pássaros, mamíferos e seja-lá-que-for” num bosque da Virgínia que as motoniveladoras arrancaram do mapa nos Estados Unidos logo depois da Segunda Guerra Mundial. Agora defende as selvas transbordantes de vida que estuda nos trópicos de um destino que considera inevitável. Presume-se que elas acabem em meados deste século. E Terborgh explica por que em Requiem for Nature, livro que nunca saiu em português, talvez por dizer o que nenhum povo gosta de ouvir sobre a pilhagem de seu patrimônio.
Ele está no Brasil. Veio para estrelar um congresso internacional sobre Biologia da Conservação em Brasília. Aproveitou a viagem para visitar com a mulher, Lisa, parques nacionais na Mata Atlântica e no Pantanal. O casal esteve em Itatiaia, entre o Rio de Janeiro e São Paulo, “fazendo maravilhosas caminhadas até picos a mais de 1800 metros de altitude” e vendo “muitos pássaros, inclusive endêmicos”. Mas achou que, quase 70 anos depois de criado, o primeiro parque nacional brasileiro é “um lugar bonito, mas uma ilha” no meio de uma paisagem “deprimente” de “morros nus, encostas erodidas” e “abusos ambientais em larga escala”. E de Itatiaia foi a Mato Grosso, conhecer a Chapada dos Guimarães.
Achou tudo isso “muito divertido”. Mas estava a trabalho. Quatro anos atrás, quando passou por aqui em outro congresso, ele lançou durante um churrasco em Campo Grande a Parks Watch, uma rede internacional de voluntários para vigiar as unidades de conservação nos países onde as autoridades acham que isso é bobagem. A receita da Parks Watch estava desde 1999 em Requiem for Nature. No livro, descreve-a como “uma Nature Corps, semelhante ao Peace Corps”. Desta vez, ele saiu da Chapada dos Guimarães convencido de que o Brasil fez, num lugar excepcionalmente rico, um parque sovina. E previu que “a Parks Watch tem um grande trabalho a fazer” por lá.
Os brasileiros evidentemente mal ouviram falar dessas coisas, porque estavam ocupados demais com a crise política. E com isso perderam uma grande chance de mudar de assunto sem trocar de tema. Perto de Terborgh, Roberto Jefferson é recreio. O biólogo, como o deputado, também fala de corrupção sistêmica. Mas Terborgh, ao contrário de Jefferson, especializou-se no pior tipo de rapina, aquele que rouba ao mesmo tempo futuro e passado, entregando o presente a quem pegar primeiro. É uma praga nativa dos países onde o atraso político, a desigualdade social e a inépcia administrativa atacam juntos seu próprio território como se fosse inimigo.
Como os maiores tesouros biológicos do planeta estão hoje concentrados nas mãos de povos que não têm recursos para preservá-los, Terborgh colheu, “numa vida inteira de andanças em busca na natureza intocada”, motivos de sobra para se sentir “em pânico” diante de “parques inadequados, sociedades instáveis e instituições cambaleantes”. A longo prazo, devastar recursos naturais em nome da pobreza só produz mais pobreza. Mas a curto prazo gera ótimos negócios a quem investe nessa forma de assalto. E em países pobres todos têm pressa.
Fora uma ou outra relíquia natural guardada naqueles raros parques que seus responsáveis levam a sério – como acontece na Costa Rica e no Nepal, por exemplo – as florestas dos trópicos tendem a sumir definitivamente dentro de “30 a 50 anos”, segundo Terborgh. Elas são especialmente sensíveis à desordem política. E ficam em países onde em geral a bagunça é endêmica. Terborgh viu muita mata virar pó. Cada uma delas podia ser um exemplo único e inimitável da profusão de vida selvagem que os ecologistas chamam de biodiversidade. Mas a história de seu desaparecimento é quase sempre a mesma. Elas acabam por falta de lei, polícia e governo.
Para não encarar o problema de frente, os políticos recorrem cada vez mais a paliativos ambientais que, para Terborgh, não passam de conversa mole para ambientalista dormir. Desenvolvimento sustentável em floresta tropical, a seu ver, é “puro disparate” porque, se for mesmo desenvolvimento, mais cedo ou mais tarde tornará a floresta insustentável, porque ela só se salva se parar no tempo. Entregar unidades de conservação à tutela de populações tradicionais ou indígenas resulta, na prática, em licença informal para a caça predatória. E “uma cultura que caçava com arcos e flechas no passado certamente caçará com armas de fogo assim que tiver chance”, lembra Terborgh.
Manejo de madeireira certificada é uma tradicional receita de fazer florestas que morrem de pé, desertadas pela fauna e até pela flora original sob a copa das árvores que sobraram. “O manejo de florestas naturais tem uma longa história nos trópicos”, lembra Terborgh. “Os ingleses, os franceses e os holandeses todos tiveram vigorosos programas florestais em seus impérios ultramarinos”, sem que se possa extrair deles um só exemplo de sucesso incontroverso. Nesses ambientes onde “centenas de espécies de pouco valor” envolvem as árvores de maior interesse econômico e o crescimento das mudas valiosas, mais lento do que se presume, até pelo excesso de sombra, compromete a eficiência, o manejo florestal é um investimento de muitas décadas. Isso exige estabilidade. Trabalha-se em geral com horizontes de quase um século. E estabilidade é coisa que os países tropicais geralmente não têm.
Sobrou a reserva extrativista, uma invenção política de burocratas americanos que na década de 70 enxertaram no programa dos bancos de desenvolvimento essa patente ambiental do governo Lula. Produto híbrido de assistência social com preservação da natureza, a fórmula reserva extrativista serviu de escudo para que agências como a USAID “continuassem fazendo o que faziam há décadas”. Ou seja, programas de desenvolvimento rural em países pobres. Para as florestas, a mudança de nome só criou pressões populacionais que acabam inevitavelmente debitadas aos recursos dos parques onde essas experiências foram adotadas.
Terborgh reconhece que o populismo ecológico tem, sobre o discurso ambiental, a vantagem de ser muito mais simpático. Pena é que funcione tão mal, em lugares cuja aparente exuberância não é força, mas fraqueza. Uma fêmea de onça com filhote precisa de 20 quilômetros quadrados só para ela. E dá para contar nos dedos os parques com tamanho suficiente para oferecer esse espaço todo a um bicho. “E daí?”, diria o leigo, “a onça não é a floresta”. É sim, responde Terborgh. Qualquer mata despovoada por grandes predadores está agonizando. Mesmo seus espasmos de aparente vitalidade são sintomas de sua decadência senil. A proliferação de quatís, que é típica desses casos, pode até encantar turistas. Mas é o aviso de que, entregues ao quatís, os ovos são comidos nos ninhos com uma velocidade que a reprodução de muitos pássaros não alcança. Sem eles, lá se vão as plantas que dependiam dessas espécies para propagar sementes. E assim por diante, até o fim.
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