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Os parques da discórdia III

Em Prudentópolis, onde o conservadorismo preservou o ambiente, a advogada Vânia Santos teme que, mesmo em forma de parques, as novidades ameacem a natureza.

26 de agosto de 2005 · 19 anos atrás
  • Marcos Sá Corrêa

    Jornalista e fotógrafo. Formou-se em História e escreve na revista Piauí e no jornal O Estado de S. Paulo. Foi editor de Veja...

Quando Luísa Prosner fala da “arrunhão”, não precisa dizer mais nada sobre as consultas públicas onde encalharam os projetos ecológicos da prefeitura de Prudentópolis. Ela mora a meia hora da cidade, na beira de um cânion. Tem 80 anos. Está ali há mais de 30. É posseira de uma “terrinha”que se debruça sobre duas cachoeiras. A vista custa 1 real, segundo o letreiro que anos atrás a administração municipal fincou em sua cerca, diante do estacionamento. Entalhado na madeira, o preço está congelado até que um dia outro programa de incentivo resolva trocar a placa.

Para pagar-lhe o ingresso, é preciso empurrar o dinheiro em sua mão. Cobrar, ela não cobra. “Muitos pagam, muitos não pagam”, ela informa. Não faz a menor idéia de quanto renderia a propriedade, com a ordenha dos visitantes. Mas investiu num belvedere tosco, com mesa de troncos e, por cima, um caramanchão coberto com plástico preto. É lugar de piquenique, mas isso só “quando tem muita água”e as cachoeiras engordam, atraindo turistas. Na estiagem, quase não aparece gente por lá.

“É só eu e Deus”, ela conta, na porta da casa de tábuas, decorada com uma legião de santos, cada um com seu lume. Tirou da conta o marido, que ouve calado enquanto Luísa descreve a tal da “arrunhão”, que precisa voltar muitas vezes à conversa antes de deixar claro que se trata mesmo de uma reunião. No começo, soa como mais um costume local, que não convém estranhar num município tão cioso de suas diferenças. Em Prudentópolis, a estátua mais vistosa, no centro da cidade, retrata o poeta Tarás Chewistchenko. A igreja matriz é dedicada a São Josafat. Os ovos da Páscoa laboriosamente pintados à mãos se chamam Pessanka e servem para manter o demônio no cativeiro. A Abrólia é um bordado sem agulhas que, das janelas às toalhas de banho, passando por todos os móveis, cobre a decoração doméstica com um véu milenar de decoro. E as adolescentes se reúnem no sábado para dedilhar a bandura, um instrumento medieval de 55 cordas, nas aulas da professora Meloslava Klevei, responsável pelo museu da colonização ucraniana.

Mas se tratava de uma reunião. E nela o estranho não era o nome, mas o método. “Vieram me chamar. Fui lá”, diz Luísa (foto). “Para quê, não sei. Não entendi nada. Sou analbafeta e quase chega, com os olhos levados da breca”. Não é preciso ouvir mais para entender que ela não está nem aí para discussões sobre “plano de manejo”, “ecoturismo”, “corredor cultural” e outros termos técnicos, que levaram o técnico Otávio Manfio, do Instituto Ambiental do Paraná em Guarapuava, a enriquecer a sabedoria popular com o ditado “quanto mais lido, mais estrumado”.

Não é à-toa que os moradores dos faxinais desconfiam, explica a advogada Vânia Santos. Ela, que nem nasceu em Prudentópolis, ao contrário dos políticos, antes de se envolver em seus debates, aprendeu a conhecê-los. Natural de Ponta Grossa, chegou à cidade em 1988, contratada pelo proprietário para regularizar os papéis de um loteamento. Acabou deitando raízes no terreno não só porque recebeu um lote como pagamento, mas sobretudo por perceber que uma jovem advogada como ela estava cercada de causas por todos os lados, naquele singular município de 49 mil habitantes, onde menos de 15 mil pessoas moram na área urbana. Nisso também aquilo nem parece o Brasil.

Naquela época, as empregadas domésticas de Prudentópolis trabalhavam em troca de casa, comida e duas bonificações anuais em dinheiro, no Natal e na Páscoa. E, quando se deu conta, Vânia estava lutando no front dos direitos trabalhistas. Organizou o sindicato dos funcionários municipais, o que lhe valeu um lugar cativo na oposição ao prefeito Vilson Santini, que de vez em quando volta ao cargo. Ajudou a fundar a associação dos trabalhadores rurais, criando uma cooperativa que derrubou os preços dos produtos de primeira necessidade, ao livrá-los dos fornecedores controlados por políticos locais. Ao construir a sede da associação, descobriu que os sacos de cimento entregues pela prefeitura, em vez de 50 quilos, tinham 25. Enfim, de denúncia em denúncia, enfrentou nada menos de 20 administradores municipais.

Foi assim, comprando brigas, que tropeçou numa história mais grave, a das mortes de agricultores por inalação de agrotóxicos nas plantações de fumo. Descobriu que o envenenamento por defensivos à base de fosforados e carbonatos, provocando surtos psicóticos, estava por trás da alta taxa de suicídios entre os moradores do campo da região. Foi seu primeiro processo “pesado”, como ela diz. E inspirou, “de quebra, um estudo médico transformado em monografia acadêmica. A batalha contra a indústria do fumo levou-a a outros fronts, a começar pela certificação de produtos orgânicos cultivados por pequenos produtores do Tijuco. E daí para as questões ambientais foi um passo.

“As pessoas ligavam para mim denunciando derrubadas clandestinas e eu ligava para o Instituto Ambiental do Paraná, que mandava fiscais multas os desmatamentos”, lembra Vânia. Mas os processos demoravam tanto que as penas, ao sair, estavam prescritas e as multas, por irrisórias, eram quase um incentivo extra à devastação. Mas Vânia encontrou no juiz Eduardo Novak um magistrado disposto a encurtar para 15 dias os prazos de julgamento e elevar as multas de 50 para 2 mil reais. E o corte ilegal de árvores virou mau negócio em Prudentópolis.

Dez anos depois de se mudar para lá, ela candidatou-se em 1998 à prefeitura de Prudentópolis pelo Partido Verde. Gastou na campanha 16 mil reais do próprio e um velho Opala, demolido pela temporada de trabalhos forçados nas estradas do interior. Teve 900 votos. Mas ganhou um aliado definitivo, o contador Jairo Corrent, que trabalhava na madeireira Ditzel e largou o emprego para se pôr ao volante de Vânia. “Aprendi a guiar naquela campanha e ainda conheci o município inteirinho”, diz ele. Agora ele estuda Direito, prepara uma dissertação sobre os faxinais e é o faz-tudo do Instituto Guardiães da Natureza, a ONG que Vânia criou ao se livrar definitivamente da tentação de entrar na política.

A sede do instituto ocupa a frente de sua casa. E ela mora no fundo do terreno, passando pelo canil onde cria as ninhadas de cães siberianos e um laboratório. A sala fica onde era a garagem. Mas a porta da rua dá diretamente para os escritórios da ONG, da Associação de Defesa de Prudentópolis e da Rádio Cidade 104,4 FM, uma emissora sem fins lucrativos que ela inaugurou este ano. Com 20 quilômetros de alcance, não cobre todo o município. Mas basta para levar aos ouvidos dos vereadores a voz dos faxinais.

“Não é fácil entendê-los”, diz ela, que anos atrás inspirou uma amiga, a professora Zilda Hoffman Rodrigues, a fazer sua tese de mestrado em sociologia sobre a organização dos faxinais. “Foi assim que eu comecei a entender por que aquela gente acha é que possível manter o velho sistema e ter renda. É uma combinação muito especial de baixa ganância e alta solidariedade. A desambição eu não sei de onde vem, mas ela aparece muito nas repostas que os moradores dão às perguntas dos questionários”.

E é por isso que as suas terras se conservam melhor do que as outras. “Eles mantêm as tradições familiares”, explica Vânia, que freqüentemente é chamada a dar um jeito em registros caducos e dá de cara com papéis em nomes de avós. E, como “essas tradições incluem as paisagens dos pais, dos avós”, ela advoga contra os parques e monumentos naturais da prefeitura, temendo que as novidades desarrumem de uma vez por todas os velhos costumes. “É estranho, não é, uma ambientalista brigar com um parque?” – ela pergunta.

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