Enquanto o presidente Lula remancha, ou finge que remancha, está na reta final a campanha para a reeleição da política de meio ambiente que a ministra Marina Silva levou para o governo três anos atrás. Chama-se Plano Nacional de Áreas Protegidas. Tem 89 páginas, mas avisa na terceira linha que se destina a promover, além da conservação, “o uso sustentável da biodiversidade”.
Saiu de um Fórum Nacional, que reuniu governo e ONGs ao longo do ano passado. É produto de discussões entre 400 pessoas, representando a sociedade brasileira. E está aberto aos outros 185 milhões de brasileiros que, desde quarta-feira, dia 18, estão em princípio convidados a participar, via internet, do debate sobre a administração de um patrimônio público que, antes de mais nada, é deles.
Mas começou mal a versão on-line do fórum. Tão mal que, a rigor, nem conseguiu começar no dia marcado. Quem procurou, na quarta-feira, a página do Ministério do Meio Ambiente, esbarrou numa mensagem de boas-vindas do coordenador-geral Maurício Mercadante, diretor do Programa Nacional de Áreas Protegidas. Estava datada de 13 de maio de 2005 e tratava das discussões que tinham ficado para trás, a fase em que, diz a apresentação do plano, “foram realizadas aproximadamente 15 reuniões e oficinas participativas, totalizando um investimento aproximado de R$ 422 mil para elaboração da presente proposta”.
Para abrir o projeto, era preciso cadastrar-se no site. E, no lançamento do debate, talvez por excesso de acessos, o sistema foi a pique. Desistindo do plano, um passeio pela página mostrava a tarefa de organizar em 22 dias um debate desse tamanho mal cabia num espaço onde as coisas acontecem devagar.
Na página dedicada ao fórum havia uma seção chamada “últimas notícias” onde a última notícia, falando de visitas a unidades de conservação, era de 31 de agosto do ano passado. O plano tem a pressa dos retardatários. Feito para vigorar até 2015, sairá em 2006 de um governo que parece ter renunciado à veleidade de ter planos na crise política de 2005. Mas consagra as linhas mestras da política sócio- ambiental da ministra Marina Silva, ao fim de três anos marcados por safras recordes de más-notícias no front ambiental.
Formalmente, ele atende compromissos do Ministério do Meio Ambiente, assumidos em acordos internacionais, na Conferência Nacional do Meio Ambiente, de 2003, e na Convenção da Diversidade Biológica, de 2005. Na prática, endossa prioridades que ainda não saíram do papel, como a urgência de fazer a regularização fundiária de parques nacionais e outras reservas do governo, como exige a lei que há mais de cinco anos pôs de pé – mas não necessariamente para caminhar – o Sistema Nacional de Unidades de Conservação-SNUC.
E, taticamente, retoma com a ajuda do Ministério do Meio Ambiente conversas que pareciam superadas pelos 10 anos de negociações do SNUC. Elas agora voltam “como fantasmas”, diz a bióloga Verônica Thuelen, que acompanha esse processo desde a década de 90. Repetindo os refrões politicamente corretos de que a conservação do patrimônio natural é, no fundo, um acessório das políticas sociais de combate à pobreza.
Em outras palavras, as do próprio documento, “o plano enfoca prioritariamente o Sistema Nacional de Unidades de Conservação da Natureza – SNUC, as terras indígenas e os territórios quilombolas”.Tudo assim, na mesma frase. Como nos discursos da ministra Marina Silva, que agora se candidatam a uma vaga no futuro, com as bênçãos de um Fórum Nacional de que a maioria absoluta dos brasileiros nem ouviu falar.
Como está redigido, ele põe as reservas indígenas, os territórios quilombolas, as comunidades extrativistas e outros companheiros de viagem do ambientalismo ao primeiro plano da política de conservação da natureza. O “planejamento específico para as Terras Indígenas, que abrangem 12% do território nacional” atribui-lhes genericamente um “importante papel na conservação da biodiversidade”, como se os Pataxós, na Bahia, não tivessem arrasado o pedaço que tiraram do parque criado para preservar a paisagem do Descobrimento. Ou se as expedições de caça dos Caiapós, no Pará, não esticassem a mais de 200 quilômetros de suas aldeias as trilhas da extinção dos mamíferos de grande porte nas terras indígenas, pelo exercício soberano de seu privilégio senhorial.
Como o Ministério do Meio Ambiente espera fiscalizar essas áreas? Pelo que diz o plano, ele aproveitou a I Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Nacional para realizar “uma pesquisa com os delegados indígenas e quilombolas sobre a conservação da biodiversidade em seus territórios, em parceria com a Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial da Presidência da República”. Ou seja, perguntou-lhe o que achavam de um assunto que cabe ao ministério apurar. Com base nas respostas, definiu, em “duas oficinas”, a “política de apoio e fortalecimento de práticas tradicionais de conservação e uso sustentável da biodiversidade nesses territórios”.
Ela será “objeto de trabalho na 1ª fase de implementação do Plano Nacional de Áreas Protegidas em 2006”. Deve ser a tradução ao pé da letra das tais diretrizes de valorizar a “participação como processo de inclusão social e exercício da cidadania, tendo como parâmetro permanente de legitimidade e da eqüidade social”. Ou de levar em conta o “equilíbrio de gênero, geração, cultura e etnia na gestão de áreas protegidas”. E mesmo de apoiar os “aspectos éticos, étnicos, culturais, estéticos e simbólicos da conservação da natureza”, respeitando “as diferentes formas de conhecimentos e práticas de manejo dos recursos naturais”.
Tudo no diploma de conclusão de um governo que deixou ao deus-dará os parques nacionais brasileiros, porque a ministra não os achava prioritários. São parques que, em sua maioria, o presente herdou do passado, quando mandavam no assunto as canetadas autoritárias do Estado Novo ou do regime militar, ou presidentes sem base política para concluir seus mandatos, como Jânio Quadros e Fernando Collor. Agora mesmo, o Parque Nacional da Serra da Bodoquena,criado pelo presidente Fernando Henrique Cardoso no fim de seu mandato, está ameaçado pelos assentamentos do Incra no Mato Grosso do Sul, como sempre demarcados nas bordas da reserva legal,para emparedá-la nas trincheiras das reforma agrária.
Nada disso acontece por falta de plano. É pura falta de gestão. Mas por isso mesmo convém não perder de vista o projeto que o Ministério do Meio Ambiente pôs em debate. Se depender só de quem o fez, o futuro da política ambiental será feito à imagem e semelhança do governo Lula – com política demais e meio ambiente de menos. E olhe lá.
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