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Mercadoria à venda: natureza

A banalização da palavra ecologia, presente em propagandas dos mais diversos produtos, gera slogans mentirosos que atrapalham os esforços de educação ambiental.

26 de maio de 2006 · 18 anos atrás
  • Maria Tereza Jorge Pádua

    Engenheira agrônoma, membro do Conselho da Associação O Eco, membro do Conselho da Fundação Grupo Boticário de Proteção à Nat...

É até engraçado apreciar como se usa a palavra ecologia e, em geral, a proteção da natureza, além do termo “meio ambiente”, para se vender de tudo. Desde passagens de ônibus em “eco ônibus”, até móveis (geralmente de bambus) e imóveis ecológicos, banheiros ou carros ecológicos sem esquecer o papel, sabonetes e perfumes e nem tampouco, claro, os brinquedos ecológicos. Que será que as empresas querem dizer com “ônibus ecológicos” ou com os carros chamados de “eco esportivos”? Deve ser o combustível, quiçá obtido da cana-de-açúcar ou o biodiesel extraído da soja ou do dendê. Será que isso é ecológico? E os móveis rústicos feitos segundo os fabricantes de árvores encontradas mortas na natureza (o que é uma deslavada mentira) que além de prejudicarem a vegetação natural, são de uma feiúra estupenda?

A natureza vende bem e por isso se usam esses slogans vazios e, na sua maior parte, mentirosos e que atrapalham os esforços de educação pública ambiental. As centenas de ecos jipes, mostrados nas propagandas, em ralis com selo ecológico do Ibama, destruindo o pouco que fica da natureza, deixando seus rastros por todo canto e levantando poeira e seus donos achando que estão protegendo a natureza porque usam pneus reciclados e consomem álcool ou biodiesel… É mesmo incompreensível.
A ninguém, claro, preocupa o simples fato que álcool e biodiesel são feitos destruindo a Mata Atlântica, o Cerrado e agora a Amazônia. Não cabe negar que reciclar é boa coisa, como o que se faz com o lixo, as latas, garrafas, papéis e pneus, mas bem melhor seria produzir menos lixo, pois com cada manufatura e com cada reciclagem perde-se energia e, obviamente, se polui e contamina.

Ainda mais divertida é a venda de natureza, propriamente dita, pois as propagandas para isso quase sempre exibem espécies exóticas, como o flamboyant, eucalipto e pinus, quando não são espécies invasoras, destruidoras da nossa natureza. A publicidade ambientalmente correta dos governos locais na televisão são as campeãs absolutas em erros crassos. O que se vê bem são os dizeres: meio ambiente e cultura.

Propaganda enganosa

Prestem atenção nas propagandas de cidades, segundo eles, aprazíveis e naturais, que se tem de visitar. É praça dominada pelo concreto, cachoeira artificial, árvore e floresta exótica, tudo tão detonado que deveria ser crime de lesa o consumidor… As gramas alienígenas sempre predominam nas paisagens, embora nós tenhamos neste país mais de 500 espécies nativas e endêmicas. Se a gente fica muito esperta dá para ver alguma espécie nativa, bem nos bastidores do espetáculo artificialmente montado.

Já a fauna nativa exibida nessa propaganda se resume às galinhas, vacas, carneiros, cabras, patos e, as mais naturais, não obstante também estrangeiras, são as galinhas de angola. De repente percebe-se um ou outro animal nativo, em geral vulgares capivaras gordas, pastando a grama em parques públicos. E as cachoeiras e lagos originados por barragens e açudes, onde se pratica o famoso pesque e pague e, às vezes, o inútil pesque e solte? É muito perigoso para a natureza soltar peixes já manuseados, pois eles, suscetibilizados às enfermidades pelo grosseiro toque humano, podem contaminar outros peixes.

Triste ainda é ver ou visitar os hotéis fazendas com viveiros de araras e papagaios em grandes quantidades e o que é bem pior é que em geral estão anilhados com anéis fornecidos pelo Ibama. Então estão legais. Mas que “legal” é isso que possibilita dispor de números excessivos dessas aves maravilhosas em gaiolas pequenas só para mostrar aos turistas e clientes de pousadas e restaurantes? Que educação é essa que só mostra a fauna encarcerada, sem julgamento digno?

Porque não favorecer os ambientes naturais para mostrá-las no auge de seu esplendor na natureza? Mas o dano é maior. Além das araras e outras aves, muitas vezes esses projetos de mini zoológicos contêm mamíferos ameaçados de extinção ou raros, como macacos, lobos guarás, tamanduás e até felídeos. Nesses dias mesmo presenciei, em um restaurante com viveiros de animais silvestres, um tatu brigando com um tamanduá mirim, os dois no mesmo cubículo.

Orientação?

Viajando pelo Cerrado, por exemplo, a gente topa com muitas placas pagas pelo governo, ou melhor, por nós mesmos, em plenos mares de soja ou de qualquer outra monocultura dizendo: “Proteja a Natureza”, ou “Não mate animais silvestres” ou os mais agressivos: “Matar Animais é Crime”. E ninguém pode esquecer os cartazes que dizem “Não Provoque Incêndios” sempre avistados quando não chove, bem no meio da fumaça.

Ainda mais ridículas são as autoridades de transporte, que multiplicam placas com um formoso cervo bem europeu, reclamando cuidados dos condutores onde apenas existem vacas e, certamente, nenhum cervo europeu e ainda menos um cervídeo brasileiro, já calcinado nos incêndios prévios aos cultivos, ou há tempos na panela de um caboclo. Só falta mostrar onde estão a natureza e seus animais silvestres, que esses mesmos governos não conseguiram manter, e transformam em avisos tão absurdos quanto inúteis.

Usufruir da natureza virou ir a algum sítio ou fazenda ecológica que de natureza não tem absolutamente nada ou, às vezes, com muita sorte, tem um filete de mata ciliar ou um bonito pé de jatobá. Nem as áreas de preservação permanente e as reservas legais de 20% de cada propriedade, exigidos por lei, existem mais. Coitados de nossos meninos para os quais natureza virou esta bandalheira e ecológico uma palavra extraordinariamente banal, um acessório de qualquer coisa, menos do que é necessário mostrar para bem educar.

Que pena que não se faça propaganda para se visitar os Parques Nacionais ou Estaduais e outras áreas protegidas abertas à visitação. A meninada em geral gosta e ali veria realmente o que é natureza, além de aprender um pouco com os centros de visitantes e as trilhas interpretativas. Quem sabe se visitassem essas áreas protegidas poderiam amá-las mais no futuro e defendê-las das sanhas destruidoras? Ou melhor, quem sabe aprenderiam a temer mais os meliantes das grandes cidades que os animais da mata?

O problema de fundo, aparte do ridículo, no uso indiscriminado da palavra ecologia ou equivalentes para vender quase qualquer coisa, é o impacto que isso tem sobre a educação popular ambiental. A televisão e especialmente a publicidade têm uma forte repercussão na população em geral. Maior até que a educação formal, em termos de influenciar as autoridades constituídas. Assim, contribuem para criar a imagem de que os problemas ambientais estão sendo bem resolvidos graças aos esforços das empresas, que vendem os produtos ecológicos. Isso é absolutamente falso e a destruição da natureza se amplifica sem que a maioria o perceba, alcançando já, em muitos casos, níveis irreversíveis.

Melancólico mesmo é que, de fato, é possível associar seriamente natureza e propaganda, ou seja, ajudar a vender produtos com alguma virtude ecológica e, ao mesmo tempo, alertar a população sobre problemas reais ou pelo menos informando sobre fatos e não sobre fantasias.

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