Como milhares de brasileiros, eu gosto de ler as pouco alegres colunas de Diogo Mainardi. Às vezes, também, gosto de assistir ao programa Manhattan Connection. Vendo um deles esses dias fiquei furiosa quando Lucas Mendes perguntou a Mainardi se ele gostava mais do deserto ou da caatinga e Diogo respondeu algo assim: “Conheço pouco da Caatinga. Só estive uma vez por lá, mas é muito feia”, insinuando, talvez, que não pretende voltar. Melhor assim, se vai repetir no ar de um canal de televisão conhecido uma afirmação que pode induzir a alguns a nada fazer para a proteção ou conhecimento de um bioma já tão olvidado e muito degradado.
Citando jornalistas não comparáveis, gostaria de lembrar só uma página do livro “Os Sertões – Campanha de Canudos” do nosso famoso escritor e, também, engenheiro Euclides da Cunha. Uma página que descreve como reagem as plantas a uma chuva no nordeste brasileiro, em plena caatinga:
“…E ao tornar da travessia o viajante, pasmo, não vê mais o deserto.
Sobre o solo, que as amarílis atapetam, ressurge triunfalmente a flora tropical.
É uma mutação de apoteose.
Os mulungus rotundos, à borda das cacimbas cheias, estadeiam a púrpura das largas folhas vermelhas, sem esperar pelas folhas; as caraíbas e baraúnas altas refrondescem à margem dos ribeirões refertos; ramalham, ressoantes, os marizeiros esgalhados, à passagem das virações suaves; assomam, vivazes, amortecendo as truncaduras das quebradas, as quixabeiras de folhas pequeninas e frutos que lembram contas de ônix; mais virentes, adensam-se os icozeiros pelas várzeas, sob o ondular festivo das copas dos ouricuris: ondeiam, móveis, avivando a paisagem, acamando-se nos plainos, arredondando as encostas, as moitas floridas do alecrim-dos-tabuleiros, de caules finos e flexíveis; as umburanas perfumam os ares, filtrando-os nas frondes enfolhadas, e — dominando a revivescência geral — não já pela altura senão pelo gracioso do porte, os umbuzeiros alevantam dois metros sobre o chão, irradiantes em círculo, os galhos numerosos.
O umbuzeiro
É a árvore sagrada do sertão. Sócia fiel das rápidas horas felizes e longos dias amargos dos vaqueiros. Representa o mais frisante exemplo de adaptação da flora sertaneja. Foi, talvez, de talhe mais vigoroso e alto – e veio descaindo, pouco a pouco, numa interdecadência de estios flamívomos e invernos torrenciais, modificando-se à feição do meio, desinvoluindo, até se preparar para a resistência e reagindo, por fim, desafiando as secas duradouras, sustentando-se nas quadras miseráveis mercê da energia vital que economiza nas estações benéficas das reservas guardadas em grande cópia nas raízes.
E reparte-as com o homem. Se não existisse o umbuzeiro aquele trato de sertão, tão estéril que nele escasseiam os carnaubais tão providencialmente dispersos nos que o convizinham até ao Ceará, estaria despovoado. O umbu é para o infeliz matuto que ali vive o mesmo que a mauritia para os garaunos dos llanos.
Alimenta-o e mitiga-lhe a sede. Abre-lhe o seio acariciador e amigo, onde os ramos recurvos e entrelaçados parecem de propósito feitos para a armação das redes bamboantes. E ao chegarem os tempos felizes dá-lhe os frutos de sabor esquisito para o preparo da umbuzada tradicional.
O gado, mesmo nos dias de abastança, cobiça o sumo acidulado das suas folhas. Realça-se-lhe, então, o porte, levantada, em recorte firme, a copa arredondada, num plano perfeito sobre o chão, à altura atingida pelos bois mais altos, ao modo de plantas ornamentais entregues à solicitude de práticos jardineiros. Assim decotadas semelham grandes calotas esféricas. Dominam a flora sertaneja nos tempos felizes, como os cereus melancólicos nos paroxismos estivais.
A jurema
As juremas, prediletas dos caboclos – o seu haxixe capitoso, fornecendo-lhes, grátis, inestimável beberagem, que os revigora depois das caminhadas longas, extinguindo-lhes as fadigas em momentos, feito um filtro mágico — derramam-se em sebes, impenetráveis tranqueiras disfarçadas em folhas diminutas; refrondam os marizeiros raros — misteriosas árvores que pressagiam a volta das chuvas e das épocas aneladas do “verde” e o termo da “magrém” — quando, em pleno flagelar da seca, Ihes porejam na casca ressequida dos troncos algumas gotas d’água; reverdecem os angicos; lourejam os juás em moitas, e as baraúnas de flores em cachos, e os araticuns à ourela dos banhados… mas, destacando-se, esparsos pelas chapadas, ou no bolear dos cerros, os umbuzeiros, estrelando flores alvíssimas, abrolhando em folhas, que passam em fugitivos cambiantes de um verde pálido ao róseo vivo dos rebentos novos, atraem melhor o olhar, são a nota mais feliz do cenário deslumbrante.
O sertão é um paraíso
E o sertão é um paraíso…”
Só quem possui muita sensibilidade e paciência para procurar e ver pode encontrar muita beleza na Caatinga e no Cerrado, dois biomas muito degradados e quase extintos, na sua forma natural, no país e que vêm sendo tratados como lixo. Afinal nós possuímos a Mata Atlântica, o Pantanal, a Amazônia, biomas luxuriantes, que além de abrigarem fartas flora e fauna silvestres, apresentam paisagens magníficas. Já descobrir a riqueza do Cerrado e da Caatinga é quase privilégio de cientistas e ambientalistas ferrenhos.
É muito mais fácil convencer autoridades a agirem em prol da natureza, quando se trata da Amazônia, da Mata Atlântica ou do Pantanal. Já sensibilizá-las para a Caatinga é quase impossível. Quantas vezes lemos aqui mesmo em O Eco notícias sobre o desespero de Niède Guidon tentando salvar o Parque Nacional da Serra da Capivara no estado do Piauí, talvez o que era mais bem manejado no país, graças principalmente à luta e à perseverança da própria Niède? Porque Diogo Mainardi não foi até lá? Ou no Parque Nacional de Sete Cidades no Piauí? Ou no Parque Nacional de Ubajara, no Ceará?
Porque não foi ver as ararinhas azuis praticamente extintas na Estação Ecológica do Raso da Catarina, aquele mesmo lugar que se situa perto de Canudos e que também preserva as mesmas paisagens, flora e fauna vistas e descritas por Euclides da Cunha, no livro acima mencionado “Os Sertões”? O Raso da Catarina foi ainda um dos esconderijos de Lampião e do seu bando. Porque não foi à Estação Ecológica de Aiuaba no Ceará, ou Itabaiana em Sergipe e Seridó no estado de Paraíba, antes de expressar seu desagrado pela feiúra da Caatinga?
Estou segura que se ele tivesse feito um pequeno esforço para conhecer melhor a Caatinga teria gostado e muito. Embora suas colunas deixem transparecer que é um homem irascível, também se percebe que, no fundo, é um personagem sensível. O ponto principal de minha revolta é o fato de se dizer isso na televisão. Ele tem todo o direito de achar a Caatinga feia, mas bem poderia ter mantido sua preferência por outras plagas em seu círculo familiar ou de amigos. Por isso, após esta reclamação de uma admiradora, espero que Mainardi volte para o Nordeste e olhe melhor a Caatinga para descobrir quão bela ela sabe ser.
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A Caatinga é horrorosa mesmo! Só agrônomos de gabinete com ar-condicionado acham essas plantas horríveis bonitas! Escrevem textos longos dentro de um lindo gabinete com ar-condicionado, nunca tiveram que viver numa terra seca e feia!
Sinceramente, seria melhor trazer pro interior do Ceará àquelas plantas do Texas as Tumbleweeds pelo menos daria uma sensação de estar no estrangeiro!