Vale um Peru! É uma expressão que a tradição reporta com relação à surpresa que os conquistadores e colonizadores europeus tiveram quando conheceram e desfrutaram das riquezas desse país milenar. Claro que o dito fazia referência especial ao ouro, à prata e às pedras preciosas que os antigos peruanos tinham explorado por milênios, mas, também, à sua pródiga natureza, inclusive à sua fração domesticada, que inclui algumas das plantas mais consumidas no mundo de hoje, como a batata e o tomate.
O Peru é, de todos os países da América do Sul, o que oferece a maior diversidade de paisagens e ecossistemas, sempre associados aos monumentos de seu extraordinário passado cultural. Por isso, considerando que em breve Brasil e Peru ficarão unidos por uma estrada asfaltada que, ademais, levará diretamente a Cusco, o umbigo do Império Inca, é bom momento para que os amantes brasileiros da natureza e da cultura se preparem para conhecer esse vizinho que, até agora, é essencialmente conhecido no Brasil por ser um discretíssimo contendor futebolístico.
Os presidentes Lula e Toledo, em grande necessidade de atos populares, presidiram sonoramente, na semana passada, o ato que celebra o começo da construção da Estrada Interoceânica (do Atlântico ao Pacífico) que unirá por via terrestre, pela primeira vez, o Brasil e o Peru. Também foi assinado, recentemente, um acordo entre esses países que elimina a obrigatoriedade de visto para que seus cidadãos transitem em turismo ou a negócio entre ambos. Ou seja, tudo está quase pronto para que brasileiros e peruanos se conheçam mais e melhor. Nesta coluna se falará essencialmente da natureza excepcional do país vizinho.
Ainda que o Brasil, pelo seu tamanho, seja o país biologicamente mais diverso do planeta, o Peru, como outros países andinos, é proporcionalmente muito mais diverso que o Brasil. A razão é simples. Esses países andinos, pela presença dos Andes, apresentam uma enorme diversidade de ecossistemas organizados em pisos e em vales mais ou menos isolados, desde o nível do mar, o oceano Pacífico, a mais de 6 mil metros de altura, e menos de 100 metros de altitude na Amazônia. Seus climas mudam em brevíssimas distâncias: tropicais, subtropicais, temperados, frios ou gélidos e, por isso, apresentam florestas muito úmidas e úmidas, florestas secas, savanas, pampas e até tundras. Entre todos os países da América Andina e da América do Sul, o Peru é o mais diverso, pois além dos Andes, sua costa sul e central são muito influenciadas pela corrente de Humboldt, que traz as águas frias da Antártida.
O resultado é impressionante. Qualquer turista pode sair de Lima, situada à beira-mar, num deserto absoluto onde nunca chove mais de 50 mm por ano em forma de garoa e, em apenas duas a três horas, estar a 4.880 metros de altitude, observando cumes gelados sob um frio de vários graus abaixo de zero. Três horas mais tarde esse mesmo turista pode estar suando enquanto navega num rio a bordo de uma canoa, observando densas selvas amazônicas. No transcurso de cinco horas, terá atravessado não menos de trinta ecossistemas tão diferentes como o deserto total, lomas de névoa, deserto de cactos, vales temperados da vertente oeste, escarpas andinas, puna, tundra, lagos interandinos, vales da vertente leste, bosque de névoas, bosque muito úmido e bosque úmido. Também terá visto rasgos culturais e raciais dos povos da costa, da serra (Andes) e da selva, cada um muito diferente do outro, e, se teve a curiosidade de comer no caminho, em nenhum momento comeu o mesmo prato, pois as comidas de cada setor atravessado são tão diferentes quanto as paisagens.
Tem mais. Se essa viagem, da costa para a selva atravessando a serra, é feita a partir de outro ponto, ao norte ou ao sul, tudo será diferente, porque o Peru é tão variado latitudinal como longitudinalmente. O Peru é uma verdadeira síntese ecológica da América do Sul. Sua Amazônia baixa é muito similar à Amazônia brasileira, mas sua Amazônia alta é completamente diferente e sua riqueza biológica é impar devido a processo de especiação em cada piso ecológico e em cada vale isolado pela altitude. Pela mesma razão as paisagens da selva alta e de suas florestas de névoas são inacreditavelmente belas e de suas partes mais altas pode-se observar o sol nascente no Brasil. O Peru até dispõe, no sul, de uma amostra da vegetação e da fauna do Cerrado e do Pantanal, incluído o lobo-guará. Mas, claro, isso não é o que deve atrair os brasileiros. Para estes o maior atrativo devem ser os picos glaciais que abundam no centro e no sul do país, em especial a chamada Cordilheira Branca e seus magníficos nevados.
Ademais, aquele país dispõe de um sistema de áreas protegidas bastante completo ainda que, como o brasileiro, deficiente em serviços. Existem parques imperdíveis em cada região do país, como a Reserva Nacional de Paracas na costa sul (a 3 horas de Lima), que protege uma magnífica amostra do deserto costeiro e do litoral marinho, incluindo ilhas onde moram aves guaneras e lobos marinhos. Na serra, o principal é o Parque Nacional Huascarán (a 6 horas de Lima), que inclui toda a antes mencionada Cordilheira Branca. Na selva é imperdível o Parque Nacional do Manu, justamente qualificado como o parque mais importante da Amazônia pela sua riqueza biótica e, sem dúvida, por ser o melhor preservado. Este Parque está a poucas horas da cidade de Cusco e é acessível por avião ou estrada e barco. Para visitantes mais sofisticados, como os ecoturistas, existem 57 áreas protegidas que podem ser visitadas. Destas, 21 abarcando quase 6 milhões de hectares, são de proteção integral. O Peru é, em estreita disputa com a Colômbia, o país com mais espécies de aves no mundo. Um verdadeiro paraíso para os bird watchers.
No Peru, qualquer aspecto natural que seja interessante de ser visto está acompanhado de elementos culturais. Machu Picchu, famoso por suas ruínas incas, é na verdade um Santuário Histórico, ou seja, uma categoria de manejo que protege por igual o patrimônio cultural e o natural. Machu Picchu, além de suas paisagens inacreditáveis, é um empório de aves e de orquídeas e nele ainda vive o raríssimo urso de óculos. Em Paracas existem os restos de uma antiga civilização, os Paracas, famosos pelas suas telas. Se se visita a Reserva Nacional de Pampa Galeras, a sede do programa de manejo de vicunhas, se passa no meio das misteriosas Linhas de Nazca e, quando se percorre o Parque Nacional Huascaran, se visita também o monumental sítio arqueológico de Chavin de Huantar, o berço de uma das mais antigas civilizações da América. A Reserva Nacional do Lago Titicaca – o maior entre os mais altos lagos do mundo – alberga a misteriosa etnia Uro, da que se diz serem descendentes diretos de Manco Capac e Mama Ocllo, os fundadores do Império Inca. Existem restos arqueológicos dentro ou perto de cada uma das áreas protegidas dos Andes e da costa, evidenciando milênios de desenvolvimento cultural e uma elevada densidade populacional pré-hispânica.
Conhecer o Peru deveria ser um dever prazeroso para os brasileiros. Muito da cultura original e da natureza do Brasil teve sua origem nos Andes. As extintas culturas amazônicas estiveram profundamente ligadas às dos Andes e a flora e fauna formam um contínuo entre os países. De outra parte, o uso adequado ou errado que esse país andino faça dos recursos naturais da bacia amazônica alta pode ser determinante para o futuro de estados como Amazonas e Acre e, quiçá, até do Pará. Existe muito mais em comum entre o Brasil e o Peru que entre o Brasil e a Argentina, país atualmente favorito para o turismo brasileiro, junto com o Chile, com que não temos nada em comum.
Dois dos obstáculos principais para o intercâmbio turístico entre estes países estão sendo levantados e já chegou a hora de se preparar para a viagem. O Peru, de outra parte, ainda que pobre, não é particularmente inseguro. O custo de vida é em geral barato e a taxa de câmbio é favorável aos brasileiros. Além do mais, os peruanos são tradicionalmente hospitaleiros e, como argumento final mais importante, esse é um dos poucos países do mundo onde a arte culinária alcançou um nível extremo de originalidade e qualidade.
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