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Ciência perigosa

Na maioria das vezes, as ciências exatas, físicas e naturais não são usadas a favor da natureza. Cada descoberta deve ser sempre encarada como uma faca de dois gumes.

1 de dezembro de 2006 · 17 anos atrás
  • Marc Dourojeanni

    Consultor e professor emérito da Universidade Nacional Agrária de Lima, Peru. Foi chefe da Divisão Ambiental do Banco Interam...

Todo mundo sabe que a ciência é o sustentáculo da conservação dos recursos naturais. O manejo dos recursos naturais, ou seja, a ferramenta da conservação, é sempre um pacote tecnológico baseado no conhecimento científico. A ciência também é, evidentemente, a primeiríssima fonte de informação sobre a natureza e o primeiro alerta sobre as ameaças que as atividades humanas nela ocasionam. Por isso, a maior parte das pessoas acredita, sem restrições, que a ciência é uma aliada da conservação dos recursos naturais. Mas, como se verá nesta nota, esse não é sempre o caso.

As ciências exatas, físicas e naturais, diferentemente das ciências sociais, são, ou melhor, pretendem estar livres de contaminações ideológicas. Os fatos, na medida em que sejam corretamente interpretados, são o que são como dois e dois são quatro, não importando se o resultado favorece ao pensamento de esquerda ou ao de direita ou qualquer outra filosofia ou crença. Aqueles que comprovaram o fato de o mundo ser redondo e que gira ao redor do sol, ou que o homem pode voar mesmo não sendo pássaro, certamente não pensaram em agradar ao Papa da ocasião, nem a sua Santa Inquisição. Eles apenas comunicaram o que os resultados das suas observações e pesquisas davam como verdadeiro.

Ciência, tecnologia e natureza

Assim, a ciência, que não deve ser confundida com o seu derivado principal, bem conhecido como a nada feminina tecnologia, descobre e difunde o que parece ser a verdade nua e crua. Claro que os cientistas reconhecem que a ciência pode parecer equivocada cada vez que seus praticantes se equivocam ou usam seu nome em vão; por exemplo, quando distorcem, exageram ou mentem, embora, nesses casos, não se esteja falando realmente de ciência e sim de graus de estelionato, dos que a história da ciência está repleta. A tecnologia, diferentemente da ciência, responde, em enorme proporção, às ciências sociais, especialmente à economia. E, a partir disso, é evidente que as tecnologias são altamente contaminadas pela política, que representa os interesses diversos da sociedade e sempre terminam dominados por um grupo, seja ele grande ou, mais freqüentemente, pequeno.

Foi a ciência que informou sobre a diversidade da vida, desde muito antes de Darwin e Lineu. Foi a tecnologia assistida pelos publicitários que inventou, em tempos recentes, o termo “biodiversidade” e foram os advogados e diplomatas que tramaram a convenção respectiva. Foi a ciência que informou sobre o efeito estufa, embora inicialmente não se soubesse se era conseqüência do aumento de carbono na atmosfera ou se era um reflexo da umidade, ou apenas um processo normal entre dois períodos glaciais. Mas foi a tecnologia dos diplomatas e advogados que inventou as bases do Protocolo de Kyoto. De forma mais convencional, foi a ciência que descobriu os segredos íntimos da genética. Mas foi a tecnologia que gerou os transgênicos, os clones e outros processos. Enfim, foi a ciência que desvendou os mistérios do átomo e foi a tecnologia, como sempre influenciada pela política, que é íntima da economia, que inventou as bombas atômicas e suas sucessoras. Também foi através da tecnologia que se inventou, a partir da ciência, os inquestionavelmente úteis reatores nucleares para produção de energia.

Que o leitor não fique preocupado. O autor acredita que a ciência sem a tecnologia, que é a aplicação da ciência, não vai a lugar algum. Seu único propósito é diferenciá-las. Ambas, desde o ponto de vista humano, são complementares para o bem ou para o mal. Voltando ao tema ambiental deve-se reconhecer que a maior parte dos males do entorno natural são frutos da ciência e da tecnologia subseqüente, desde a agricultura inventada cerca de dez mil anos antes do Cristo, até os mais novos resultados da engenharia genética. E não há que se esquecer da contaminação urbana, industrial ou rural, inteiramente derivadas de tecnologias baseadas em descobertas cientificas aplicadas na vida humana do dia a dia. O mero fato de que a ciência descobriu os fundamentos da resistência a enfermidades, fundamentos estes logo transformados pela técnica em vacinas, tem tido conseqüências tão graves como irreversíveis sobre o entorno natural e, assim, sobre a qualidade de vida de outros humanos.

Biodiversidade criada pelo homem?

Alguns casos recentes, bem mais modestos que os citados, ajudarão a compreender melhor a intenção desta nota. Uma década atrás, um pouco conhecido cientista mexicano teve a oportunidade de publicar, numa revista internacional muito importante, que as florestas tropicais não eram renováveis e que boa parte da biodiversidade dessas regiões tinha origem humana, através de processos de domesticação ou de convivência. Essa asseveração atrevida era baseada exclusivamente na realidade supostamente constatada nos restos florestais grandemente alterados da Península do Yucatan, a região onde florescera a cultura dos Maya. Embora interessante, a descoberta poderia ser, no melhor dos casos, válida para as condições locais e, de jeito nenhum, poderia ser transposta a outras realidades. Mas, esses resultados discutíveis, ou de aplicação puramente local, foram do gosto do sócio-ambientalismo que os trasladou, por exemplo, à Mata Atlântica ou à Amazônia, apregoando que a natureza não existe sem o ser humano e que para gerar e manter a diversidade biológica é necessário explorar a floresta, desmatar e fazer agricultura, sempre e quando seja tradicional, mesmo nas áreas protegidas. Essa idéia sem pés nem cabeça que, diga-se de passagem, não era a conclusão do autor mencionado, converteu-se num dogma sócio-ambiental, existindo no Brasil até um livro intitulado “O mito moderno da natureza intocada”, inteiramente inspirado nele. Ainda, a revista Science desta semana discute o assunto da relatividade da natureza natural e o faz seriamente, sem favorecer em nada a argumentação daquele livro.

Parques de papel

Outro exemplo semelhante também se remonta há três décadas. Um jovem sociólogo, professor de uma universidade do interior dos EUA, propôs ao World Wildlife Fund (WWF) financiar uma pesquisa sobre a situação dos parques nacionais no nível mundial. A idéia foi aceita e o pesquisador enviou milhares de questionários perguntando aos chefes dos parques quais eram os seus problemas e quais eram as ameaças aos parques. Pela forma em que o questionário estava feito isso era um convite a vomitar sobre o papel a infinidade de problemas que cada administrador de parque, até os dos países mais ricos do mundo, confronta a cada dia. Os parques têm vizinhos e, como com qualquer vizinho, sempre existem conflitos, embora não signifiquem que a área esteja realmente ameaçada. O problema é que o tal questionário era como um funil conduzindo cada resposta para acumular ameaças, transformadas em supostas evidências de que os parques estavam em grande e iminente perigo e que sua utilidade era limitada. Com apoio do WWF o relatório foi publicado em forma de livro e teve uma enorme publicidade. E foi aquele livro, que sob o inocente título de “O estado dos parques do mundo”, que produziu o agourento slogan “parques de papel” — transformado em outro dogma sócio-ambiental, muito útil na sua luta sem tréguas contra as unidades de conservação que se tenta proteger contra os desmandos da população. Foi apenas um par de anos atrás que outro estudo, este sim baseado em evidências físicas e comprováveis como a porcentagem das áreas protegidas não desmatadas, que demonstrou a falácia tenazmente propalada com relação aos parques nacionais nos países tropicais. Os parques nacionais, até apenas pelo enquadramento legal, tinham seus recursos naturais em muito melhor estado que as áreas vizinhas e a sua biodiversidade estava significantemente bem protegida. Mas o dano tinha sido feito, outra vez baseado num resultado aparentemente científico.

Proteger bacias hidrográficas: para quê?

Em 2005, outro grupo de cientistas liderados por um conhecido sócio-ambientalista, reunidos no Centro Internacional de Pesquisa Florestal (CIFOR, pelas suas siglas em inglês) publicou um chocante artigo denominado “Florestas e inundações: afundado na ficção ou prosperando sobre fatos?”, pretendendo demonstrar que a proteção da vegetação florestal das bacias não tinha nenhuma correlação com a incidência das inundações. Segundo os autores, a revisão fria dos numerosos dados disponíveis não sustenta esse conceito tão universalmente aceito. Obviamente, cabe duvidar desses resultados como muitos o fizeram. Não poder demonstrar algo ou não achar os parâmetros correlatos não significa necessariamente que o fenômeno não exista. De qualquer modo as inundações são fenômenos enormemente complexos e muito dos resultados depende dos critérios da análise.

Por exemplo, é evidente que uma carga extraordinária de água se converterá em inundação com floresta ou sem ela, mas isso não implica que os picos de inundação não possam ser moderados pela vegetação que cobre o solo. O resultado da publicação e difusão da notícia não se fez esperar. O próprio CIFOR comenta no seu relatório anual que, de imediato, em alguns países empresas com base nessa informação solicitaram desmatar extensas áreas de bacias hidrográficas para fazer agricultura e outras atividades previamente proibidas. Pode-se imaginar o que teria acontecido no Brasil se essa notícia chegasse quando se discutia e quando, de fato, se debilitou a legislação que defende as áreas de proteção permanente (APPs). Se os promotores da legalização da ocupação de matas ciliares por favelas e outros usos tivessem conhecido esse fato, seguramente que até se teria eliminado o conceito de APPs da legislação nacional.

Em conclusão

Para concluir apenas se deseja voltar ao começo. Apesar de que, em princípio, não deveria ocorrer, até a ciência exata, física e natural pode ser contaminada pelos interesses ideológicos, políticos ou econômicos, através da sua manipulação errada ou incorreta, intencional ou não; ou também, pela interpretação livre dos seus resultados inclusive para sustentar ideologias ou teorias ou, claro, através de seu uso para desenvolver tecnologias. A interpretação dada pela ideologia sócio-ambiental, no caso dos três exemplos mencionados, não coincide totalmente com a dos autores das pesquisas originais, embora os temas sugiram que os tais cientistas, e de fato esse é o caso, pertenciam a essa corrente. É muito difícil saber por que, dos milhares de artigos e livros que resenham resultados de pesquisa, poucos se convertem em best sellers enquanto a imensa maioria, às vezes, os de melhor qualidade permanecem desconhecidos. Mas isso ocorre em especial quando a nova informação serve a objetivos políticos.

Assim, a ciência, que a priori é uma grande aliada da conservação dos recursos naturais em beneficio do ser humano, pode e de fato já foi muitas vezes – na verdade, a maior parte das vezes – utilizada para prejudicar a natureza. A ciência e a tecnologia têm sido os meios mais comumente usados pelo ser humano para avassalar a natureza, como o ilustram os descobrimentos da física que geraram os gigantescos tratores que pisoteiam as selvas, ou os foguetes que carregam armas nucleares. Assim, cada descoberta ou informação nova pode ser uma faca de dois gumes e deve ser analisada e usada com grande precaução.

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