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Como não confundir epidemia com demagogia

A imprensa cedeu mais espaço do que o necessário para a crise gerencial da saúde no Rio. Enquanto isso, um Brasil inteiro é excluído do noticiário nacional.

24 de março de 2005 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Toda semana, ao me sentar para escrever esta coluna, tenho que decidir sobre que tipo de texto fazer. Recentemente, saí dos textos mais leves para quase ensaios acadêmicos. Resolvi tornar público meu trajeto em busca de uma combinação de conceitos e visões, que de alguma forma permitam que me situe no campo ambiental. Sociólogo por formação e ofício, não me anima a idéia de participar da construção de uma sociologia ambiental ou uma ecologia política. Tem gente fazendo isso muito bem, aqui e por todo o mundo. É o caso, por exemplo, no Brasil, de Eduardo Viola, da Universidade de Brasília. Mas, porque não usar a visão profissional para olhar o campo ambiental e me ajudar a compreendê-lo, seus conflitos, as escolhas trágicas envolvidas, a dinâmica de interesses e idéias que movimenta ambientalistas, mercado e governos? Não usar o instrumental analítico que domino, para me ajudar a compreender a questão ambiental e contribuir minimamente na sua elucidação não me parece uma opção aceitável.

Não tenho a intenção, entretanto, de fazer desta coluna um nicho acadêmico no jornalismo ambiental. É um espaço, sobretudo dadas as possibilidades da publicação eletrônica, onde posso divulgar, eventualmente, parte do raciocínio mais sociológico, digamos, com o qual vou me localizando na ecologia. Mas é uma opção arbitrária, que responde a esse meu desejo de dar alguma transparência às opiniões mais influenciadas pelo meu viés profissional e intelectual. Quando tomo essa decisão, cuido de programar o retorno breve ao texto mais colunista e às aulas de fotografia de natureza, que Marcos Sá Corrêa vem me dando, sem saber. O fio da meada é, sempre, o mesmo que me conduziu até O Eco. Marcos Sá Corrêa, Manoel Francisco, o Kiko, e eu andamos sempre às voltas com uma inquietação comum em relação à visão dominante do Brasil, na opinião pública e na mídia, que vê os nossos problemas a partir do eixo metropolitano, com um viés forte para Rio e São Paulo.

Essa forma de ver o Brasil, presente no noticiário da grande imprensa dessas duas capitais, não apenas distorce nossa matriz de problemas, como nos impede de ter uma dimensão real dos problemas das regiões não-metropolitanas do país. Pior ainda, esconde a maioria das virtudes desenvolvidas pela sociedade brasileira nos últimos anos, muito mais visíveis no nosso interior, do que em nossas capitais. Começamos pensando em fazer algo mais geral, parecido com nossa experiência anterior em No., embora com um espaço maior dedicado ao tema ambiental. Terminamos decidindo por focalizar no meio ambiente, embora pudéssemos tratar de qualquer assunto, mas sempre pelo ponto de vista ecológico. Daí o nome O Eco.

Rapidamente me dei conta de que ao fazermos isso, terminaríamos por fazer um jornalismo que fala muito mais de Brasil, sob todos os aspectos, do que qualquer jornal diário, impresso ou televisivo. Nossos personagens são mais variados, estamos sempre falando de gente que faz coisas importantes Brasil a fora. Gente interessante e anônima. Ainda precisamos ampliar mais esse nosso olhar. Por exemplo, entrar mais no cotidiano das cidades médias brasileiras, algumas arrumadíssimas, outras que demonstraram enorme capacidade de recuperação da mudança radical do eixo de suas economias, outras que conseguem enfrentar de forma criativa e cooperativa suas questões sociais, econômicas ou ambientais. Falar de experiências como as da cooperativa de Maringá, que está presente em toda a vida da cidade; da volta por cima de Araxá; da mudança de atitude com relação à educação de Patos de Minas, que se orgulhava, já na metade dos anos 90, de ter posto todas as suas crianças na escola; da mobilização de Corupá para salvar sua cachoeira; da tristeza de Aimorés, prestes a perder seu rio e de sua alegria de ver ressurgir uma floresta no lugar onde a mata atlântica virou pasto; dos pescadores às margens do lago de Itaipu. Nem tudo isso já está em O Eco, mas muita coisa está. Da operação madeireira na Amazônia, à captura predatória de mexilhão no litoral de Santa Catarina; da fraude de Barra Grande, ao levante de Corupá; das ameaças à Serra da Capivara, às que podem destruir a Serra de Ricardo Franco; da exploração das meninas do pantanal, ao espetáculo de suas onças cruzando um braço do rio Paraguai. Nada disso visita cotidianamente as páginas da grande imprensa do Rio e de São Paulo. Esse Brasil só pinta nas telinhas e nas páginas da mídia dominante nas catástrofes. O que pinta aqui, porque é um retrato do Brasil, só pinta lá, se for para engrossar a visão já formada de Brasil e para cair no esquecimento nos outros 364 dias do ano.

Resultado, o Brasil quase nada conhece do Brasil. Nem vou falar do simulacro de história que nossas crianças aprendem nas escolas. Vamos falar de coisa grande: a explosão da agroindústria. Um dia, ela pintou nas páginas da grande imprensa, para não sair mais. Parece um milagre, como se tivéssemos nos tornado o maior exportador de carne, soja e frango, da noite para o dia. Como se não fosse preciso um longo processo de maturação, para ultrapassar os Estados Unidos, a Índia, o Canadá e a Nova Zelândia, em muitas dessas atividades. E toda a pesquisa genética necessária para isso? E todo o esforço de vendas? E o combate à febre aftosa? E toda a destruição de matas para formar os campos de soja ou os pastos de nelore? Tudo isso leva tempo, custa dinheiro e, no caso dos avanços, requer pesquisa e desenvolvimento de ponta. O Brasil, de costas para seu campo não viu nada disso. E porque não viu, não foi capaz de cuidar que esse progresso se fizesse com menos custo ambiental. Um dia, a maioria olhou as estatísticas de exportação e descobriu que o que ainda chamavam de produtos primários, eram commodities de primeira linha, com alto índice de tecnologia embutida nelas e a salvação de nosso balanço de pagamentos. Como um pai que só vem a conhecer o filho já adulto. Não sabe como ele chegou ao que é, como se formou, qual a sua história. O campo ficou chique, de repente. De esquecido e constrangedor primo pobre, virou o admirado e paparicado tio rico. E agora, ninguém pode contrariá-lo, porque ele é fundamental para nosso progresso. O Brasil só descobriu que era chique vender commodities, depois que já éramos os campeões dessa modalidade de comércio. Agora, os leilões do Canal Rural têm uma audiência eclética e animada. Gente que nem sítio tem, fica se coçando para comprar uma novilha nelore para botar no quintal.

O Brasil, de costas para sua pujante agroindústria, não viu suas virtudes, nem percebeu seus vícios e pecados. Agora, ela é enorme, representa uma parcela muito mais significativa da riqueza nacional, do que aparece nas estatísticas, e tem um passivo ambiental imenso e em crescimento mais vertiginoso que a própria atividade, hoje emparedada pelo colapso logístico do país.

Esse é um exemplo eloqüente do erro brutal que é ficarmos de costas para nós mesmos. Se não olhamos para o Brasil como um todo, perdemos a referência de sua grandeza e suas virtudes e fechamos os olhos para seus crimes e transgressões. O retrato do Brasil é mais complexo e melhor do que o que lemos e vemos no dia-a-dia da grande imprensa. Mais ainda quando ela dá um ataque de provincianismo às avessas e gasta dias a tratar de uma crise gerencial da saúde no Rio de Janeiro, por exemplo, como se fosse um caso de crise de saúde pública. Dá a impressão de que estamos diante de alguma epidemia avassaladora, a ponto de justificar uma operação militar e arriscar destruir um dos poucos parques com área verde de verdade da cidade, o Campo de Santana. Nenhuma autoridade fez tanto estardalhaço, nas epidemias de dengue, quanto estão fazendo hoje. E não passa de um puro ataque de demagogia. De tanto olhar para o próprio umbigo a imprensa acaba fazendo o jogo da demagogia, ao invés de apresentar o Brasil para os brasileiros e fazer o jogo da democracia.

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