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Dias que virão

Aumentou a intensidade dos furacões. A ciência não diz se foi o aquecimento global e o que fazer, os governos vacilam, a realidade supera os filmes-catástrofe.

16 de setembro de 2005 · 19 anos atrás
  • Sérgio Abranches

    Mestre em Sociologia pela UnB e PhD em Ciência Política pela Universidade de Cornell

Quem entrar no site da Time Magazine e olhar a sessão de fotos sobre New Orleans e tiver visto o filme-catástrofe The Day After Tomorrow (O Dia Depois de Amanhã) nunca mais dirá que a turma de Hollywood imagina coisas impossíveis. A foto de abertura da série Ghost Town, de Thomas Dworzak, da legendária agência de fotógrafos Magnum, mostra o corpo de um homem negro, boiando nas águas que cobrem as portas dos prédios de uma rua alagada e deserta. Se aparecesse num filme holiúdiano, diriam que era apelação, demagogia, excesso. A segunda foto, “In a Dark Mirror”, mostra casas em chamas, no domingo após a tormenta, refletidas nas águas da enchente. Parece também tirada diretamente de um filme-catástrofe. Uma foto de Vincent Laforet, da EPA, numa outra série, “Katrina’s Toll: Rescue, recovery and restoring order two days after the Gulf area hurricane”, mostra o momento em que se rompeu um dos diques do porto, inundando uma vasta área habitada. Se fosse resultado de efeitos especiais, não seria mais real.

A SWAT percorrendo as ruas vazias da cidade abandonada, numa foto de Rick Wilking da Reuters, me fez lembrar um clichê de um sem número de filmes de ficção científica que já vi, desde os muito bons, até os péssimos. Sempre tem aquele momento em que as tropas circulam pela grande cidade devastada, em cujos escombros estão alienígenas, mutantes ou seres bestializados. Por trás da foto de Wilking, só há desgarrados e corpos, para a SWAT encontrar. Outra foto de Laforet dispensa comentários: uma chata enorme desce as águas do que parece um caudaloso rio, sobre ela um homem só, à espera de socorro. Mas ele não desce um rio e sim uma das avenidas de New Orleans. Juntem tudo e parece mesmo uma impossível tragédia de ficção científica, em algum momento do futuro distante.

Não obstante, são apenas flagrantes de uma tragédia vivida, que vinha sendo anunciada e, agora, é reanunciada pela revista Science. Não é um tempo futuro. É agora. Foi ontem. Hoje, já vivemos os alertas do furacão Ophelia, que, felizmente, tem nível 1, coisa cada vez mais rara, segundo mostram essas últimas descobertas, mas, infelizmente, ainda assim vai produzir muito estrago. Três cientistas da Escola de Ciências da Terra e Atmosfera do Instituto de Tecnologia da Georgia, em Atlanta, e outro do Centro Nacional de Pesquisa Atmosférica, em Boulder, no Colorado, publicaram juntos artigo na revista Science, indicando que a freqüência e a intensidade dos ciclones tropicais estão aumentando de forma estatisticamente significativa, provavelmente por causa do aquecimento global. Eles examinaram o número de dias com registro de ciclones tropicais e a intensidade deles, nos últimos 35 anos, “em um ambiente de temperaturas crescentes do mar”. Observaram um grande incremento na proporção de furacões que atingem níveis 4 e 5, os mais altos. Ao mesmo tempo, o número de ciclones e o número de dias com registro de ciclones caíram, exceto no Atlântico Norte, onde houve o menor crescimento potencial de furacões. Nas outras regiões, Norte e Sudeste do Pacífico e no Oceano Índico, encontraram os maiores percentuais de crescimento de ciclones de níveis 4 e 5.

Em 2004, informam, houve 14 tempestades violentas nos Estados Unidos, das quais 9 atingiram intensidade de furacões e quatro apareceram em rápida sucessão, causando enormes danos materiais, físicos e humanos. No Atlântico Norte, encontraram elevação do número e da intensidade desses fenômenos, desde 1995. Os autores não encontraram padrão global para a relação entre aumento na temperatura dos oceanos e na freqüência e intensidade dos furacões, exceto no Atlântico, houve aumento continuado da temperatura do mar e da atividade ciclônica. Não encontraram, também, sustentação para a hipótese que estabelece uma relação de causa e efeito entre o aquecimento dos oceanos e a emergência de furacões de máxima intensidade.

O dado mais alarmante é que está decaindo monotonicamente, como proporção do total, a freqüência de furacões nível 1, os mais fracos. Também estão declinando – e são em número muito pequeno – os de níveis 2 e 3. Os de níveis 4 e 5, porém, dobraram em número de 1970 para cá. A conclusão é que existe uma tendência clara de mudança na distribuição de furacões, em escala global, com redução daqueles de menor intensidade e aumento significativo dos de maior intensidade. Não há, entretanto, registro de aumento correspondente na intensidade dos furacões mais intensos, ou seja, “a intensidade máxima tem ficado notavelmente estática ao longo dos últimos 35 anos”, o que presumo ser menos má notícia.

Lendo-se o artigo, fica-se com a impressão de que apenas o rigor científico impede que admita existir uma relação causal entre o acúmulo de gases de efeito estufa e a mudança climática. Os autores concluem que: “dados globais indicam uma tendência de 30 anos de aumento da freqüência e intensidade de furacões”. Mas sentem-se autorizados a dizer, apenas, que “essa tendência não é inconsistente com os modelos de simulação climática recentes que indicam que dobrar a quantidade de CO2 pode aumentar a freqüência de ciclones de alta intensidade”. “Para se poder atribuir essa tendência de 30 anos ao aquecimento global”, explicam, “seria preciso uma base mais longa de dados globais e, especialmente, compreensão mais profunda do papel dos furacões na circulação geral da atmosfera e dos oceanos, mesmo no presente estado climático”.

O climatologista Kerry Emanuel, autor de Divine Wind – The History and Science of Hurricanes, um best-seller em se tratando de livros científicos, publicou recentemente na revista Nature uma análise similar, utilizando os mesmos dados, constatando o aumento da freqüência e intensidade para a região do Atlântico e do Pacífico e afirma que não é possível dizer que esse aumento dos anos 70 para cá tenha sido causado pelo aquecimento global. Segundo ele, não é possível dizer que os trópicos aqueceram. “Não temos dados suficientes para discernir qualquer sinal”.

E o Katrina, tem a ver com essa tendência? Emanuel, em entrevista recente ao site Democracy Now, diz que não é possível, também dizer isto. Só dá para afirmar que a intensidade dos furacões está aumentando. “Se olhamos só para o Atlântico, e todo mundo está focado no Atlântico, que tem apenas 11% do número total de tempestades do mundo, o que se vê é a dominância de ciclos perfeitamente naturais, que tendem a durar algumas décadas”. Para ele, o problema maior é que nos anos 70 e 80, de baixa atividade ciclônica, as populações do litoral dos Estados Unidos cresceram muito e aumentaram as construções muito próximas da água. Mais que o aquecimento global, a causa das tragédias é o descuido das pessoas com o ambiente natural. Ele diz que os diques no Mississipi, já eram causa de muita preocupação há muito tempo, porque geravam o risco de, no curso de tempestades mais intensas, transbordarem e inundarem áreas densamente habitadas. “Aconteceu antes. Aconteceu com o furacão Betsy, em 1965, e uma grande parte da cidade ficou debaixo d`água”, disse.

Está claro, para a ciência, que nada é muito claro quando se trata dessa abrumadora questão climática. Quer dizer, é tudo tão escuro quanto as nuvens que trazem os furacões. Emanuel conta que ele e seus colegas ficaram surpresos ao observar que os furacões do pacífico mostravam uma tendência mais pronunciada do que esperavam. “Agora sabemos que parte da razão é que as tempestades parecem estar durando mais tempo. Ou seja, elas estão mantendo alta intensidade por um período mais longo de tempo e isto, certamente, está contribuindo para essa tendência. Mas eu acho justo dizer que não entendemos isto inteiramente. A intensidade parece ter subido mais do que esperávamos baseados em modelos de aquecimento global. E, portanto, estamos no caminho de reconciliar a teoria com as observações”. A teoria diz que devemos esperar um incremento de 5% nos ventos de pico, para cada grau centígrado de aquecimento dos oceanos tropicais. Olhando a energia total consumida pelos furacões, desde que começa, no mar, até que se dissipam, esse aumento de intensidade foi maior que o esperado. “Mas se há sinal de aquecimento global aí, é difícil de ver”, conclui.

É certo porém que aumentou a concentração de gases de efeito estufa na atmosfera; aumentou a poluição do ar; a temperatura dos oceanos está subindo; a intensidade e a duração dos ciclones também se elevaram de forma estatisticamente significativa nas últimas três décadas e meia, para as quais se têm dados mais confiáveis e se pode fazer medidas mais precisas, em função das informações de satélite. Não dá, portanto, para descartar a hipótese de essa seja uma tendência de mais longo prazo. Tudo indica que sim. Pelo menos no que se refere à poluição e aos danos ao ambiente. O que a ciência não se sente autorizada a dizer, porque a evidência é inconclusiva ao nível de precisão exigido pelos padrões científicos, é que haja uma relação de causa e efeito que permita dizer que o aquecimento global tem responsabilidade no aumento da intensidade dos furacões.

Para complicar tudo, some-se a essa equação de muitas incógnitas nossa imensa ignorância sobre os fenômenos mais complexos da natureza. Clima é um terreno no qual a ciência engatinha. Kerry Emanuel não se cansa de repetir que sabemos muito pouco sobre os principais fenômenos que regulam a atividade climática, principalmente as de grandes intensidades. A previsibilidade é baixa. Não podemos desconsiderar que nossa ignorância pode estar mascarando processos de causação, relacionados ao aquecimento e à poluição. Esses processos, se existirem, podem adotar comportamentos não lineares, para surpresa dos cientistas e, de quebra, destruir cidades e vidas. Basta juntar às incógnitas os efeitos da imprudência humana, que aprisiona as águas, como no Mississipi, e libera os gases estufa, para termos o enredo de uma monumental catástrofe, de deixar acabrunhados todos os spielbergs de Hollywood.

As ruas de cidades inteiras inundadas, os corpos boiando nas águas, depois as explosões e as chamas, finalmente as águas pútridas cedem, então as tropas armadas percorrem as ruas desertas, como se patrulhando uma cidade inimiga recém-ocupada, grupos de vândalos saqueiam os prédios, mais corpos aparecem nos escombros. Por meses a fio, as águas poluem outras águas, provocando um ciclo prolongado de doenças. Este se transforma em epidemia, quando as inundações ocorrem em nações sem saneamento e com grandes populações pobres… Os cientistas não podem afirmar que as causas da mudança climática estejam ligadas ao aquecimento global e à poluição, nem sabem, mesmo, dizer, com segurança, que haja mudança climática. Os governos resistem a adotar medidas sérias para reverter o aquecimento global. As empresas usam a indeterminação científica para manter seus padrões e seus produtos. Os furacões aumentam de intensidade. O topo do Kilimanjaro derrete. Os glaciais derretem. O Himalaia derrete. As ruas de cidades inteiras inundadas… A ciência…Bem, esperamos que a ciência nos diga que é o aquecimento global, mas ela pode acabar sendo capaz de nos dizer apenas que foi o aquecimento global.

E vamos vivendo a catástrofe dos dias que virão, como num filme classe b de Hollywood, porque não somos capazes de nos antecipar à evidência científica, e buscar padrões de desenvolvimento mais compatíveis com a mínima precaução, para o caso de, um dia, depois da catástrofe, a ciência descobrir que, afinal de contas, éramos mesmo os responsáveis, os deuses ignaros, capazes de mudar nosso clima, contra nós.

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