Acompanhei quase toda a campanha em que Al Gore venceu Bush no voto popular, mas perdeu a presidência no voto indireto. Gore, em campanha era o próprio mauricinho, parecia pouco à vontade em várias situações típicas do roteiro eleitoral. Muito mais preparado e bem educado do que Bush, ele falava um inglês perfeito nos mínimos detalhes, enquanto seu oponente tropeçava na linguagem e nos fios dos microfones. Mas Gore era muito engomadinho, muito certinho e não tinha carisma. Comparado com a simpatia e a estudada naturalidade de Bill Clinton, parecia meio artificial. Talvez por isso a votação tenha sido tão apertada. Bush sempre foi um personagem meio amarfanhado, desajeitado e, agora se sabe, cínico. Gore às vezes perdia credibilidade por ser certinho demais. Não é esse o Al Gore que se vê no filme An Inconvenient Truth.
O Gore de Uma Verdade Inconveniente esbanja credibilidade. Fui assistir a uma sessão especial, em São Paulo, promovida pela empresa EcoSecurities e pelo Conselho Empresarial Brasileiro para o Desenvolvimento Sustentável, CEBDS. O filme está centrado em uma apresentação de slides sobre aquecimento global. Ele se tornou um excelente expositor de idéias, misturando a precisão do inglês, que não abandonou, ao humor e à emoção, que lhe faltaram na campanha presidencial. O resultado é um filme, que poderia ser chato, mas não é, poderia ser difícil, mas não é, poderia ser superficial, mas não é, podia terminar em apelação, mas não termina. Conferência filmada é sempre mais enfadonha que conferência ao vivo, mas, no caso do filme, é uma conferência ilustrada por um documentário, onde reminiscências e reflexões de Gore, sobre a política e sobre sua vida pessoal, humanizam o tom professoral e inserem notas confessionais, que a tornam ainda mais interessante.
Há, por exemplo, uma passagem, em que Gore vai à fazenda dos pais, onde ele cresceu e o pai criava gado e plantava tabaco, e sua voz em off começa a refletir sobre o fato de que as pessoas continuam a fumar cigarros, embora a evidência sobre a correlação entre o fumo e o câncer de pulmão seja indiscutível. Em seguida, conta que sua irmã mais velha, fumante inveterada, morreu de câncer no pulmão e que seu pai nunca mais plantou tabaco. “Esta é uma morte que você não quer ter”, ele diz. Em outro momento, Gore conta como o atropelamento de seu filho de seis anos, que o deixou em coma por vários dias no hospital, mudou seus valores e suas referências e o levou a querer entender melhor a vida e o planeta.
Gore fala também da frustração provocada pela derrota eleitoral e no esforço por tirar dela o estímulo para ser melhor ainda, ter uma visão mais ampla do mundo. Conseguiu. O Gore de agora, é melhor, sabe mais, suas idéias são mais maduras, coerentes e completas e ele as expõe melhor, com mais emoção.
O show de slides é esplêndido, os gráficos muito bem programados para ter efeito visual e serem mais facilmente assimilados. A base cientifica da exposição até onde pude avaliar, por minhas próprias leituras sobre as pesquisas sobre o clima, é bastante sólida, sem ser elaborada demais ou ingênua. A síntese do estado da arte em conhecimento sobre o clima e suas conseqüências é muito boa, bastante completa e atualizada. O filme teve boa avaliação no realclimate.com, na minha opinião uma das melhores referências científicas acessíveis aos leigos na web sobre clima. Eric Steig, geoquímico especializado em análises isotópicas e que pesquisa amostras de gelo para documentar o processo climático, encontrou apenas erros científicos menores no filme e elogia bastante sua qualidade científica. Realclimate é um blog e nas reações à resenha de Steig não há nenhuma crítica contundente à ciência de An Inconvenient Truth. É verdade que a maioria dos comentaristas não havia visto o filme, mas haviam lido artigos, entrevistas e outras peças de informação sobre ele. Ao contrário, alguns até viam razão para justificar cientificamente as afirmações de Gore que Steig considerou incorretas.
Alguma imprecisão científica em um relato de leigo, por mais rigoroso que seja o trabalho de apuração, sempre haverá, principalmente nos detalhes, que são essenciais para o trabalho científico, mas podem dificultar a compreensão do público em geral. A propósito, Gore tem experiência em jornalismo. Na guerra do Vietnam, ele trabalhou como jornalista do exército e, posteriormente, fez um curso de jornalismo investigativo em Columbia. No caso do filme, o grau de acerto científico é notável e valoriza significativamente o relato de Gore. O filme tem claramente um ângulo jornalístico.
Gostei muito. É um documentário informativo, bem pensado, forte, persuasivo, original. Encontro duas pequenas falhas, uma é que o filme se dirige basicamente à audiência do EUA. A outra, é que passa batido pela Amazônia e os efeitos das queimadas e do desmatamento no clima. As duas são justificáveis pelo objetivo principal do filme: virar a opinião pública no EUA, para que se convença da necessidade de iniciar imediatamente uma moratória de carbono no país e criar pressão social suficiente para forçar uma virada política.
Gore fala diretamente para o EUA, mas o filme funciona em qualquer lugar. A Amazônia tem papel importante na regulação do regime de chuvas e do clima. Mas ela tem servido de álibi para a inação doméstica no EUA. A idéia é que se for possível manter a floresta em pé, ela seqüestra o carbono que o EUA emite. Mas essa tese, além de cínica, é falsa. Com todo o desmatamento e o próprio aquecimento, a Amazônia não é um sorvedouro tão grande assim de carbono e, se não fizermos uma moratória no desmatamento, vai virar fonte de emissões.
Esse movimento em busca de um ponto de virada na visão sobre o clima e na política do clima no EUA, que não é exclusivamente de Gore, nem o filme seu único instrumento de persuasão, está dando certo. A maior mudança recente foi no centro do partido Republicano, de Bush. Ele já virou em favor de ação efetiva contra o efeito estufa. Começou com o manifesto dos bispos evangélicos republicanos – Call for Action – e desaguou na adesão do governador Schwarzenegger ao sistema de cotas e créditos de carbono na Califórnia.
Bush está isolado e radicalizando, apelando para a censura, o corte nos investimentos em pesquisa, a procrastinação. Só a extrema direita republicana ainda resiste e alimenta o ceticismo climático, minoritário e cada vez mais arbitrário. Os interesses econômicos também estão concentrados em poucos, embora poderosos, segmentos mais atrasados e em cheque pela concorrência, como empresas domésticas petrolíferas, automobilísticas, siderúrgicas e termoelétricas. O climatologista da NASA, James Hansen, que tem sido censurado pelo governo Bush, critica a falta de qualidade científica dos trabalhos do Cato Institute, um think thank da ultra-direita, que procura desacreditar o consenso científico sobre a mudança climática. Mas uma sondagem do Pew Center on Climate Change (http://www.pewclimate.org/), mostra que 90% das grandes empresas globais operando no EUA, inclusive do segmento de petróleo, esperam aprovação, no futuro breve, de legislação federal restringindo as emissões de gases estufa.
An Inconvenient Truth é tão bem sucedido, que está fazendo escola. No início de novembro, será lançado no EUA o filme The Great Warming, dirigido por Michael Taylor, um documentário de 82 minutos narrado pela cantora Alanis Morissette, baseado no livro de Lydia Dotto, Storm Warning: Gambling with the Climate of our Planet. O filme apresenta o tema do aquecimento global como uma questão moral. Posição que Gore também sustenta em suas palestras. O documentário é uma adaptação para o telão de uma série em três partes da TV canadense.
Quanto mais melhor. O aquecimento global é o desafio-síntese do Século XXI e uma grande parte da opinião pública mundial ainda precisa ser persuadida da necessidade de ação urgente. Só então, será possível virar realmente a política do clima.
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