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Opa! Homem, não.

Antes de falar em biopirataria, o Brasil precisa respeitar as normas de propriedade intelectual. E aproveitar para desburocratizar a bioprospecção nacional.

20 de abril de 2005 · 19 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Por ocasião do chamado tríduo momesco julgo ter demonstrado que as marchinhas de carnaval têm uma profunda vinculação com as causas ambientais e, em certo sentido, anteciparam as principais questões ambientais que integram a Agenda 21. A relação então fornecida, evidentemente, não é numerus clausus – desculpem o juridiquês, mas o Kiko e o Marcos morrem de raiva quando a coluna não contém pelo menos uma citação em latinorium barato. Com efeito, a própria “biopirataria” foi contemplada com uma das marchinhas mais significativas, “o pirata da perna de pau”. No caso, a pirataria poderia ser da árvore de nin que chegou a ser patenteada nos Estados Unidos e cuja patente foi cassada pelo USPTO (escritório de patentes dos Estados Unidos, o INPI deles). Vez por outra aparece o assunto do “patenteamento” do cupuaçu ou deste ou daquele vegetal de origem em países do terceiro mundo.

Normalmente se fala em um crime de biopirataria. Na verdade, não existe o tipo penal biopirataria e nós sabemos que um princípio do direito penal democrático é o nullum crime sine lege previa, talvez eu já esteja me excedendo no juridiquês, ou seja, não há crime sem lei prévia. A idéia de biopirataria está ligada a subtração de espécimes da flora ou da fauna com vistas à utilização de alguma informação genética contidas em tais espécimes com vistas ao auxílio de pesquisas científicas sobre indiciamentos, especialmente. A questão de fundo que se discute quando se fala nos modernos Francis Drake, Lafitte, Villegaignon e outros e a relativa ao papel que a diversidade biológica poderá desempenhar na vida dos países em futuro próximo. Em tese, do ponto de vista do Direito Internacional, a questão está muito bem regulamentada pela Convenção sobre Diversidade Biológica (CDB) que foi firmada no Rio de Janeiro em 1992. Mas afinal de contas, em que consiste tal Convenção?

A CDB está em plena vigência no Brasil, pois foi promulgada pelo Decreto nº 2.159, de 16 de março de 1998. O elemento mais importante a ser destacado, com a incorporação da CDB ao direito interno brasileiro é que o Estado Brasileiro se obrigou a implementar diversas medidas previstas na Convenção. É bom que se diga – a bem da verdade – que o Brasil vem dando cumprimento às determinações contidas na CDB. Diversas são as ações legais e institucionais que vêm sendo tomadas para a integral aplicação da CDB. A entrada em vigor da CDB, no Brasil, não significa que as normas nela contidas serão aplicadas, por si mesmas. Ao examinarmos os principais pontos da CDB, não será difícil perceber que ela estabelece normas a serem seguidas pelos Estados, seja em suas relações internacionais, seja na ordem interna. Trata-se de uma “convenção quadro” que define medidas a serem tomadas pelos Estados Partes. Ao analisarmos a legislação ambiental brasileira, pós-Rio 92, facilmente se constata que o Brasil vem elaborando as normas definidas na Convenção internacional e, portanto, nos limites de sua capacidade técnica e econômica, está cumprindo fielmente com as obrigações que assumiu perante a Comunidade Internacional.

Os objetivos da CDB estão estabelecidos em seu artigo primeiro e são os seguintes:
(i) conservação da diversidade biológica,
(ii) a utilização sustentável de seus componentes e a repartição justa e eqüitativa dos benefícios derivados da utilização dos recursos genéticos, mediante, inclusive, o acesso adequado aos recursos genéticos e a transferência adequada de tecnologias pertinentes, levando em conta todos os direitos sobre tais recursos e tecnologias, e mediante financiamento adequado.

O artigo 3 da CDB estabelece a forma pela qual os Estados exercerão o direito soberano de explorar seus próprios recursos naturais. Este deve ser exercido em conformidade com a Carta das Nações Unidas e com os princípios de Direito internacional. Tal exploração deve ser realizada segundo as políticas ambientais adotadas por cada um dos Estados parte da CDB. Há uma limitação de soberania, na medida em que os Estados têm a responsabilidade de assegurar que atividades sob sua jurisdição ou controle não causem dano ao meio ambiente de outros Estados ou de áreas além dos limites da jurisdição nacional.

A CDB, expressamente reconhece que, vez que a Diversidade Biológica ultrapassa fronteiras nacionais, a sua exploração não pode implicar em danos além fronteira. Está estabelecido, portanto, um princípio de solidariedade e responsabilidade entre as nações para a conservação de uma “preocupação comum” da humanidade e, portanto, dos Estados. Os reconhecimento de que os Estados têm direitos soberanos sobre os seus próprios recursos biológicos, afasta de plano a idéia de que a diversidade biológica existente em cada um dos Estados é um patrimônio comum da Humanidade. Não há, portanto, uma gestão internacional sobre a diversidade biológica de cada um dos países.

A biopirataria surge quando se fala na questão do acesso aos recursos genéticos. Eles pertencem ao domínio eminente de cada Estado que, no entanto, não deve negar acesso aos demais, desde que obedecidas as leis de cada país detentor de mencionados recursos. Devem ser observados os seguintes procedimentos:
(i) Em reconhecimento dos direitos soberanos dos Estados sobre seus recursos naturais, a autoridade para determinar o acesso a recursos genéticos pertence aos governos nacionais e está sujeita à legislação nacional.
(ii) Cada Parte Contratante deve procurar criar condições para permitir o acesso a recursos genéticos para utilização ambientalmente saudável por outras Partes Contratantes e não impor restrições contrárias aos objetivos desta Convenção.
(iii) Para os propósitos da Convenção, os recursos genéticos providos por uma Parte Contratante, a que se referem este Artigo e os Artigos 16 e 19, são apenas aqueles providos por Partes Contratantes que sejam países de origem desses recursos ou por Partes que os tenham adquirido em conformidade com esta Convenção.
(iv) O acesso, quando concedido, deverá sê-lo de comum acordo e sujeito ao disposto no Artigo 15.
(v) O acesso aos recursos genéticos sujeita-se ao consentimento prévio fundamentado da Parte Contratante provedora, salvo se for estipulado de outra forma determinado pela mencionada parte.
(vi) Cada Parte Contratante deve procurar conceber e realizar pesquisas científicas baseadas em recursos genéticos providos por outras Partes Contratantes com sua plena participação e, na medida do possível, no território dessas Partes Contratantes.
(vii) Cada Parte Contratante deve adotar medidas legislativas, administrativas ou políticas, conforme o caso e em conformidade com os Artigos 16 e 19 e, quando necessário, mediante o mecanismo financeiro estabelecido pelos Artigos 20 e 21, para compartilhar de forma justa e eqüitativa os resultados da pesquisa e do desenvolvimento de recursos genéticos e os beneficiais derivados de sua utilização comercial e de outra natureza com a Parte Contratante provedora desses recursos. Essa partilha deve dar-se de comum acordo.

A CDB busca fazer com que o acesso aos recursos genéticos implique, de alguma forma, em uma troca entre os mencionados recursos e o desenvolvimento tecnológico do País provedor, mediante um procedimento de acesso e transferência de tecnologia.

A Convenção, como se vê, está estruturada dentro de uma concepção de que há dois fluxos distintos e paralelos, conforme o quadro abaixo:

Tecnologia         Recursos Genéticos
Norte – Sul         Sul – Norte

O Brasil, de maneira geral, estabeleceu um quadro normativo que, em tese, seria capaz de fazer com que ele se utilizasse plenamente da sua diversidade biológica e que conseguisse fazer com que as populações tradicionais se beneficiassem com os produtos produzidos. Ocorre que existe uma dificuldade cultural no sentido de que nós não assumimos plenamente as nossas responsabilidades perante a comunidade internacional. Jamais haverá transferência de tecnologia para o Brasil se não tivermos um sistema estável de proteção da propriedade intelectual. Assim manifestações governamentais sobre “quebra de patentes” – uma bobagem que não encontra respaldo jurídico – só servem para afastar as industrias de alta tecnologia do país. O próprio Conselho de Gestão do Patrimônio Genético Nacional – CGEN – em que pese a sua dedicação e boa vontade, não tem conseguido definir critérios razoáveis para a atividade de bioprospecção. A impressão que temos das normas exaradas do CGEN e que tal conselho existe para não deixar ocorrer a bioprospecção. São tantas exigências, carimbos, selos, estampilhas e outras preciosidades burocráticas que somente servem de estímulo às atividades ilegais. A nacionalissima Extracta está praticamente quebrada pois não consegue deslanchar o seu trabalho. O Professor Paes Carvalho, verdadeiro Quixote da pesquisa nacional, está quase desistindo da empresa, pois não consegue autorização para pesquisar a própria coleção de amostras que foi desenvolvida pela equipe dele durante anos. É importante que percebamos que o Brasil, embora seja o maior detentor mundial de diversidade biológica, não é o único e, certamente, outros países aproveitarão as suas oportunidades, como por exemplo, a Costa Rica e o InBio. Temos que ter o cuidado de, por excesso de nacionalismo, não acabarmos perdendo o bonde. Para aliviar, cantemos no feriado:

“Eu sou o pirata da perna de pau
Do olho de vidro, da cara de mau

Minha galera
Dos verdes mares não teme o tufão
Minha galera
Só tem garotas na guarnição
Por isso, se outro pirata
Tenta a abordagem eu pego o facão
E grito do alto da popa:
Opa! Homem, não.”

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