Colunas

Mato sem cachorro

Cartilha politicamente correta não abordou expressões ecologicamente pejorativas. Autores esqueceram que meio ambiente e direitos humanos andam juntos.

6 de maio de 2005 · 20 anos atrás
  • Paulo Bessa

    Professor Adjunto de Direito Ambiental da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (UNIRIO)

Quando sentei para escrever a coluna desta semana, a minha primeira idéia foi escrever sobre uma agenda positiva para o meio ambiente. Comecei propondo um jogo para os leitores. A coluna seria mais ou menos assim: “Para preservar os empregos das pessoas neste país nós precisamos aceitar níveis mais elevados de poluição no futuro.” De quem seria esta frase? Dilma Roussef ou José Dirceu? Eu mesmo responderia: “Nenhum dos dois. Esta é a opinião de 26% dos norte-americanos no ano 2000, conforme indicam Shellemberger e Nordhaus em seu The Death of Environmentalism”.

Trata-se de um trabalho bastante interessante que demonstra como o chamado movimento ambientalista norte-americano se encontra em um beco sem saída devido ao fato de estar focado em políticas extremamente particularizadas e distantes das realidades concretas vividas pelas pessoas comuns – ordinary people, diriam eles.

Rapidamente percebi que avançar em tal coluna seria uma perda de tempo, pois diante dos fatos que se apresentam frente aos nossos olhos e ouvidos, a coluna seria mais um amontoado de temas absolutamente irrelevantes, cujo único objetivo seria preencher o espaço digital que me é generosamente reservado. Já escrevi aqui que meio ambiente e direitos humanos são temas bastante próximos e que, no Brasil, caminham de mãos dadas. Ingenuamente, pensei que esta poderia ser uma contribuição para a nossa valorosa Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. Nesta semana, ela brilhou intensamente, com a publicação de uma cartilha do politicamente correto. Percebi que os nossos preconceitos sociais, sexistas, classistas e tantos outros istas quanto a nossa imaginação possa conceber estão muito arraigados em nosso inconsciente coletivo e que, de fato, devemos nos policiar para evitar a sua reprodução. E o meio ambiente não é uma exceção. A nossa flora e fauna têm sido utilizadas para expressar os mais odiosos preconceitos.

Peguemos a nossa Arara – animal merecedor de toda a consideração dos ecologistas. Normalmente, as araras vivem em florestas, árvores, arbustos e galhos, ou seja, vivem empoleiradas em madeira. No entanto, se chamarmos um galho de “pau de arara” na presença de um nordestino, seguramente, estaremos contrariando as normas de nossa cartilha do politicamente correto. O pau de arara, conforme é do conhecimento público, serve primeiramente para que as araras se empoleirem. Mas pau de arara, por exemplo, podem ser os caminhões que traziam os retirantes do nordeste para o sul. Aliás, foram imortalizados pelo cancioneiro popular (“Só deixo o meu Cariri no último pau de arara”). Mas o pau de arara, também, pode ser um instrumento de tortura que, infelizmente, não foi banido de todo de nossa realidade. Em função da migração interna e, certamente, devido ao fato de que os migrantes vinham para o “sul maravilha” nos paus de arara, o termo passou a ser uma designação genérica de nordestino, muitas vezes com uma utilização pejorativa. Não li a tal cartilha, pois parece que ela sumiu misteriosamente. Contudo, daqui de longe, quero sugerir que o termo seja incluído, com a máxima urgência no novo léxico da correção vocabular.

Os pássaros que sempre foram tratados pela literatura romântica como símbolo de pureza e de amor casto, certamente estão presentes no nosso vocabulário das mais diferentes formas. A mais politicamente correta é a pomba da paz, imortalizada por Picasso. As pombas, embora infernizem a vida de muitas pessoas – pergunte a quem tem um ninho de pombos nos seus aparelhos de ar condicionado e vocês entenderão sobre o que estou falando – ficaram com a imagem positiva. Não vou falar da Srª Pomba que, na Fonte da Saudade, alberga uma quantidade de columbiformes que fariam a delícia de qualquer dono de parque de diversões, ainda que os pobres moradores tenham que vedar suas portas com fitas isolantes para impedir a entrada em seus apartamentos das baratas e outros bichos carinhosamente cultivados pela Dª Pomba, sob os auspícios da vigilância sanitária desta província. Assim, chamar uma pessoa do sexo feminino de pombinha é, seguramente, elogioso. Já o mesmo não se diga de Jaburu. Muito embora o Vice Presidente da República tenha a sua residência oficial no Palácio do Jaburu, tal ave passou a indicar uma mulher feia. E os dragões? Dragão é o supra-sumo da feiúra. A cachaça brasileira, que vem passando por um período de revalorização institucional, sendo inclusive oferecida em recepções oficiais, foi estigmatizada como água que passarinho não bebe. Máxima imprecação contra um produto genuinamente nacional e extremamente importante na hora de ampliar o superávit primário.

A expressão, certamente, é antiga e os leitores mais jovens não a conhecem. “Pegar um jacaré”. Era assim que se dizia quando, na praia, íamos pegar onda. A expressão, em franco desuso é, definitivamente, politicamente incorreta. Afinal, os jacarés são animais silvestres e protegidos por nossa legislação ambiental que, como sabemos, é das melhores do mundo, extremamente avançada, etc. A linguagem, aliás, é cruel com os animais. Imagine alguém costurando o nome de um desafeto na “boca do sapo”. Seria um caso de lei de crimes ambientais na certa. Depois de refletir um pouco percebi que não valeria a pena (!?) insistir no assunto e decidi retornar para a minha idéia original e tratar da tal agenda positiva.

Aqui no Brasil existe uma profunda vinculação entre as chamadas questões “ambientais” e as questões “sociais”, que fazem com que, não raras vezes, os órgãos públicos confundam as suas áreas de atuação e não resolvam, nem uma, nem a outra, como já foi tratado em coluna anterior. O próprio direito ambiental brasileiro, em não raras vezes, não consegue ter soluções que sejam capazes de articular a proteção do meio ambiente com a promoção do desenvolvimento humano. Em muitos casos, o próprio direito ambiental é um estímulo, senão à poluição, pelo menos à manutenção do status quo. Um exemplo bastante simples pode demonstrar o que estou falando: quando um empreendedor se dirige a um órgão ambiental para requerer uma licença e lhe é cobrado um preço pela taxa de exame do empreendimento proposto, não há qualquer relação com a tecnologia a ser empregada. Assim, o empreendedor não terá qualquer estímulo econômico para apresentar tecnologias mais limpas. O mesmo se diga quanto ao ICMS a ser cobrado e os demais impostos e taxas.

Um dos problemas mais graves da Cidade do Rio de Janeiro, por exemplo, é o progressivo solapamento da cobertura vegetal das nossas montanhas pelo crescimento indiscriminado de favelas – ou comunidades, para adotar os termos da “cartilha”. Sugestões as mais diversas são apresentadas. Já se falou na construção de um muro ao redor das favelas, na imposição de multas ambientais aos moradores das áreas de risco e uma série de outras bobagens que superam, em muito, a imaginação do pessoal do Casseta e Planeta. Na verdade, estamos, de forma extraordinária, ampliando a nossa agenda negativa. Já que a compensação ambiental está na moda, porque não criar uma compensação ambiental que implicasse na construção de moradias populares nas imensas áreas que permanecem desocupadas no centro da cidade, servindo de estacionamento, por exemplo? Um programa bem estruturado e, principalmente, que tivesse sua gestão estabelecida pela sociedade, poderia ser uma solução, pois de Rimas já estamos fartos. A demolição do complexo penitenciário Frei Caneca poderia atender quantas moradias populares? Quanto se poderia recuperar de áreas verdes?

A chamada pressão antrópica ou “femininotrópica” sobre os recursos naturais, em países como o Brasil é, em grande medida, fruto de uma pobreza degradante que por mais que as palavras sugeridas pela “cartilha” busquem ridiculamente esconder, salta aos olhos de todos.

Se tomarmos o caso do chamado Programa de Despoluição da Baía de Guanabara – PDBG, cuja ineficácia é absolutamente supra partidária, veremos que além da incompetência administrativa, existem outros fatores que transcendem as questões puramente gerenciais. A crescente ocupação irregular das margens da Baía de Guanabara, claramente, condena ao fracasso qualquer tentativa de implantar uma rede de saneamento básico no seu entorno.

Já que sonhar não custa nada, vamos lá. As associações civis representativas de nossa sociedade deveriam, efetivamente, estabelecer um programa de longo prazo para a recuperação de nossas encostas e matas ciliares que precisaria ser cumprido independentemente de governos. Um projeto ambiental para a cidade do Rio de Janeiro que possa articular ações de combate à pobreza e proteção ao meio ambiente, seguramente, teria uma repercussão extraordinária em muitos setores de nossa vida econômica. De pronto, o turismo pode ser anunciado como o grande beneficiário. Entretanto, com a velocidade das comunicações atuais, com a internet e outros modernos meios de comunicação não haveria qualquer problema para que muitas empresas se instalassem no Rio de Janeiro, em função da boa qualidade de vida que seria oferecida, quebrando o fluxo migratório de empresas que abandonam o nosso balneário diariamente.

Certamente que projetos de longo prazo não elegem deputados, nem vereadores. Já as denuncias fáceis têm um apelo muito mais imediato e com resultados eleitorais muito mais palpáveis; contudo, na longa duração, vamos todos para o buraco, ou cavidade seria mais adequado? Sim, a manutenção de um modelo de crítica ambiental sem que se façam propostas capazes de mobilizar a opinião pública e, efetivamente, oferecer soluções para os problemas deixa o movimento ambientalista em um “mato sem cachorro”. Observem que a expressão é extremamente preconceituosa, pois pode denotar vários sentidos e ambigüidades. A primeira delas poderia indicar um brado assassino, pois determinado indivíduo estaria se vangloriando da desnecessidade de um cachorro para matar alguém: ”mato sem cachorro!”. A outra, tem uma vinculação clara com a atividade de caça. “Estou no mato sem cachorro!”. Não consigo identificar a minha caça. Não consigo encontrar a saída.

E la nave va. Felizmente, as nossas autoridades entendem as dificuldades de nosso povo e, na falta do pão, oferecem um circo até bem legal. É só ter boa vontade para apreciar o espetáculo.

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