Ao apagar das luzes de 2006 foi editada a Lei nº 11.428, de 22 de dezembro de 2006 que “dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do Bioma Mata Atlântica, e dá outras providências”. É uma boa notícia para 2007. Neste artigo pretendo fazer uma análise muito preliminar dos temas contidos na recente lei que me chamaram a atenção e que julgo mais relevantes para uma primeira abordagem da nova legislação.
Como sabemos todos, a lei do Bioma Mata Atlântica é fruto de um velho projeto de lei que tramitou durante longos anos e que, finalmente, veio a lume depois de muito choro e ranger de dentes. A lei é bastante abrangente, contendo as virtudes e os defeitos da legislação ambiental brasileira em geral. Evidentemente, ela depende de regulamentação para que possa ser implementada adequadamente. Há nela elementos contraditórios que refletem os difíceis acordos parlamentares, as concessões recíprocas, a linha de compromisso com o chamado sócio-ambientalismo que tem presença muito forte no texto legal, no qual se fale “em estreita relação com o ambiente natural, dependendo de seus recursos naturais para a sua reprodução sociocultural”, em “forma socialmente justa e economicamente viável”, e até mesmo “estabilidade social”. Há, também, um forte elemento de centralização nas normas destinadas aos municípios. Apesar disto, não se pode deixar de reconhecer que a introdução de elementos de incentivo econômico, a diferenciação dos estágios de desenvolvimento da Mata Atlântica e outras questões, são pontos que merecem destaque positivo.
Como regra geral, a lei significa um endurecimento nas condições até agora vigentes no que se refere à utilização do “bioma mata atlântica”. Apesar disto, ela não é uma camisa de força, nem pretende obter a quadratura do círculo, visto que o parágrafo único do artigo 1º exclui a aplicação da norma em áreas degradadas e que não se encontrem em um estágio mínimo de regeneração. Contudo é necessário harmonizar tal parágrafo com o artigo 12, pois este último artigo, aparentemente, é contraditório com o parágrafo único já mencionado. “Art. 12. Os novos empreendimentos que impliquem o corte ou a supressão de vegetação do Bioma Mata Atlântica deverão ser implantados preferencialmente em áreas já substancialmente alteradas ou degradadas.” Reconhece-se, também, a prática do pousio que é muito utilizado, por exemplo, pelos pequenos produtores rurais descendentes de suíços e alemães que habitam Nova Friburgo (RJ).
Não posso deixar de registrar, ademais, que o horizonte de sua aplicação se avizinha bastante complexo, haja vista que, como tem sido usual nas chamadas leis ambientais, há uma confusão metodológica que faz um arrolamento de princípios jurídicos como se eles fossem auto aplicáveis e, o que é pior, não cuida de dar um contorno mínimo à principiologia solenemente invocada. Assim, em meu ponto de vista, o artigo 6º da lei será um dos pontos de grande controvérsia e, seguramente, um dos que ensejarão o maior número de ações judiciais por improbidade administrativa e liminares determinando a paralisação de empreendimentos, suspensão de audiências públicas, anulação de licenciamentos e todos episódios que são rotineiros na proteção do meio ambiente. Vejamos o teor do artigo em questão: “Art. 6o A proteção e a utilização do Bioma Mata Atlântica têm por objetivo geral o desenvolvimento sustentável e, por objetivos específicos, a salvaguarda da biodiversidade, da saúde humana, dos valores paisagísticos, estéticos e turísticos, do regime hídrico e da estabilidade social. Parágrafo único. Na proteção e na utilização do Bioma Mata Atlântica, serão observados os princípios da função socioambiental da propriedade, da eqüidade intergeracional, da prevenção, da precaução, do usuário-pagador, da transparência das informações e atos, da gestão democrática, da celeridade procedimental, da gratuidade dos serviços administrativos prestados ao pequeno produtor rural e às populações tradicionais e do respeito ao direito de propriedade.” É uma relação bastante contraditória e que somente a prática dirá se funcionará ou não. Quem viver, verá.
Com toda certeza, a discussão sobre utilidade pública e interesse social, bem como mineração estarão de volta, visto que a nova lei atribui ao Conama a responsabilidade por definir o conteúdo de tais conceitos e o Conselho, com o seu forte caráter assembleístico, será palco de embates bastante severos sobre o assunto. São “ossos do ofício”.
Uma importantíssima mudança de concepção é a forma com que foi tratada a compensação ambiental. Este, certamente, será um motivo de ampla polêmica, visto que a lei nº 11.428/2006 abandonou o conceito puramente financeiro que vem sendo adotado pelos órgãos ambientais e, de maneira conceitualmente correta, prioriza os aspectos ambientais e não os monetários, como até agora vem prevalecendo. Vejamos o novo tratamento legal da questão: “Art. 17. O corte ou a supressão de vegetação primária ou secundária nos estágios médio ou avançado de regeneração do Bioma Mata Atlântica, autorizados por esta Lei, ficam condicionados à compensação ambiental, na forma da destinação de área equivalente à extensão da área desmatada, com as mesmas características ecológicas, na mesma bacia hidrográfica, sempre que possível na mesma microbacia hidrográfica, e, nos casos previstos nos arts. 30 e 31, ambos desta Lei, em áreas localizadas no mesmo Município ou região metropolitana. § 1o Verificada pelo órgão ambiental a impossibilidade da compensação ambiental prevista no caput deste artigo, será exigida a reposição florestal, com espécies nativas, em área equivalente à desmatada, na mesma bacia hidrográfica, sempre que possível na mesma microbacia hidrográfica. § 2o A compensação ambiental a que se refere este artigo não se aplica aos casos previstos no inciso III do art. 23 desta Lei ou de corte ou supressão ilegais.”
E mais: “Art. 35º A conservação, em imóvel rural ou urbano, da vegetação primária ou da vegetação secundária em qualquer estágio de regeneração do Bioma Mata Atlântica cumpre função social e é de interesse público, podendo, a critério do proprietário, as áreas sujeitas à restrição de que trata esta Lei ser computadas para efeito da Reserva Legal e seu excedente utilizado para fins de compensação ambiental ou instituição de cota de que trata a Lei nº 4.771, de 15 de setembro de 1965.” Por se tratar de norma especial, a lei nº 11.428 prevalece sobre a lei nº 9.985 (SNUC), sempre que a intervenção ocorrer em Mata Atlântica, conforme determinação da Lei de Introdução ao Código Civil: “Art.2o Não se destinando à vigência temporária, a lei terá vigor até que outra a modifique ou revogue. § 1o A lei posterior revoga a anterior quando expressamente o declare, quando seja com ela incompatível ou quando regule inteiramente a matéria de que tratava a lei anterior…” Esta é uma medida altamente salutar adotada pelo legislador, pois a compensação ambiental passa a ser realmente ambiental. Este é um tema que, até agora, ainda não foi devidamente observado pelas partes interessadas e mereceria um debate mais aprofundado, ante o imenso potencial de repercussão que encerra.
O afastamento do conceito meramente monetário de compensação ambiental, se vier efetivamente a ser concretizado – o que desejo ardentemente – terá como externalidade a obrigação de que os orçamentos das agências de controle ambiental sejam custeados pelo Tesouro e não por verbas oriundas de compensação. Se observarmos que a maioria dos empreendimentos se encontra na área que, teoricamente, está contemplada nos limites de incidência da Lei nº 11.428/2006 veremos que o assunto é muito mais relevante do que pode parecer à primeira vista. Não excluo, obviamente, a possibilidade de que esta minha primeira conclusão possa estar inteiramente equivocada. Porém, permito-me afirmar que a matéria não pode deixar de ser minuciosamente examinada pelos interessados, sob pena de que, no futuro, não se alegue que a “cigana enganou”.
Bom ano novo para todos!
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