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Tão longe, tão perto

Nova Caledônia, território francês no Pacífico, faz lembrar o Brasil: natureza exuberante, ações exemplares de preservação e o pior da degradação ambiental.

11 de novembro de 2004 · 20 anos atrás

“A soja e o gado fazem a Floresta Amazônica desaparecer”. Sentado em um café de Noumea, capital do território francês de ultramar da Nova Caledônia, tenho a atenção chamada para essa manchete de jornal que meu vizinho de mesa lê, enquanto regala-se com um esplêndido croissant.

Levanto-me e vou à cata de uma banca. Folheia daqui, dedilha dali, encontro a matéria. Está na página 44 do Les Nouvelles Caledoniennes. Não foi produzida por repórter local. Vem chupada inteira do Le Monde. Volto ao café e peço mais um capuccino. Trata-se de reportagem-denúncia igual a tantas outras que lemos semanalmente. Não há nada de novo para quem tem militado na causa ambiental no Brasil: “A Amazônia brasileira perdeu 16,35% da sua superfície desde 1970 e segue perdendo 20 mil quilômetros quadrados de floresta por ano”.

Acabo de chegar à Nova Caledônia, este pequeno paraíso tropical no Pacífico Sul. A alegre atmosfera da capital, com seu ar de cidade francesa, o excelente paladar da comida e a transparência das águas me cativam imediatamente. No primeiro dia, alugo carro, compro mapas, faço reservas e perambulo pela cidade. Na manhã seguinte começarei a explorar o país propriamente dito. A volta da ilha demanda 900km e estou disposto a fazê-la inteira. Segundo os livros, encontrarei belas florestas virgens e, em baixo d’água, uma variedade insuperável de corais e peixes.

Estou animado. Tenho impressão de ter dado os costados com verdadeiro paraíso tropical. Depois de anos de conflitos sangrentos, os Kanaks (nativos de origem melanésia) parecem se misturar bem com os franceses, polinésios e orientais, todos imigrantes de dois séculos. As crianças estão na escola, os pobres vivem em boas e sólidas casas, não se vê violência ou mendicância. As ruas são limpas, a cultura é rica. O centro cultural Jean Tjibaou, projetado por Renzo Piano, é de uma beleza impressionante — seu acervo, centrado nas culturas do Pacífico Sul, deixaria muitos museus brasileiros envergonhados.

O povo parece antenado. Jornais e televisão do mundo inteiro chegam aqui, via Paris. Quando digo que sou brasileiro, as referências ao futebol são inevitáveis. Claro que todos, orgulhosos, fazem questão de lembrar da Copa de 98. Também escalam de cor a seleção pentacampeã. Mas não é só. Em uma loja de mergulho em Poindimié, o divemaster, um francês de seus 50 anos, quase foi às lágrimas ao descrever de memória o baile que, sentado nas arquibancadas do Parc-des-Princes, viu o Fluminense dar na Seleção Européia no Torneio de Paris, em 1976. “Paulô Cezár, Dovaô, Rivelinô, ah, quel football”.

Após tão boa recepção na capital, foi com otimismo que parti em direção às áreas naturais, razão principal de minha visita. Há na Nova Caledônia 16 áreas protegidas marinhas, totalizando 530 km2. Trata-se de medida fundamental. O território está enclausurado por uma barreira de corais de mais de mil quilômetros que o circunda completamente. Na lagoa de águas límpidas e trasparentes que separa a barreira da ilha, vivem 1.300 espécies de peixes, 600 tipos de corais, além 12 tipos de serpentes marinhas, golfinhos, tubarões, arraias, moréias e até peixes-boi, uma míriade de espécies fabulosa e rica em endemismos.

Em terra são 17 as unidades de conservação. Chegaram tarde. Não foi só no Brasil que o gado, a agricultura e outras atividades econômicas devastaram a floresta tropical. Hoje resta apenas 20% da cobertura vegetal original da Nova Caledônia. O resto foi desmatado para dar lugar a imensas minas a céu aberto de onde são retiradas vastas quantidades de níquel, do qual o país é o maior produtor mundial, com 25% das reservas do planeta. Outros minerais que pediram passagem à floresta foram o ferro, o cobalto, o cobre, o zinco e o chumbo. A floresta de baixada da vertente oeste da ilha também foi abaixo para que se plantasse café. Essas terras, hoje, após seguidas pragas que afetaram os cafezais, viraram pastagem.

Pois é. Assim como o Brasil, a Nova Caledônia é linda! Assim como o Brasil, não é nenhuma maravilha de preservação. Mistura exemplos positivos de manejo e progressistas iniciativas conservacionistas com diversos exemplos de devastação e descaso com a natureza.

No lado bom, está em curso, no Parque de La Rivière Bleue, um belo programa de salvamento do cagou, a ave símbolo da ilha, hoje seriamente ameaçada de extinção. Também há interessantes projetos de reflorestamento levados a cabo por empresas de mineração e relevantes iniciativas de monitoramento dos corais. A Nova Caledônia, quando quer, importa do primeiro mundo o que há de mais atual em termos de proteção à nautureza. Acaba de ser inaugurada no monte Koghis uma trilha de longo curso, toda sinalizada e manejada segundo os princípios mais modernos em vigência. Algo no mesmo nível das trilhas neo-zelandezas e sul-africanas.

Infelizmente, contudo, assim como no Brasil, também abundam os maus exemplos. Em Poum, no norte da ilha, 6 mil hectares foram queimados no ano de 2002 para dar lugar a pastagens, mesmo destino ao qual 80% do terrítorio já foi submetido. No ar, a Nova Caledônia, francesa no passaporte, recusa-se a adotar o mesmo controle de emissões poluentes da metrópole. Enquanto a França já está submetida à Euronorma 3, a caminho da 4, sua sucursal no Pacífico ainda dirige automóveis mais poluentes, obrigados a cumprir as restrições menos restritivas da Euronorma 2. Enquanto isso, a poluição atmosférica causada pela atividade de extração do níquel tem sido responsável por altas taxas de asma e câncer nos habitantes locais. No mar, também há problemas. Dejetos da mineração e o aumento progressivo da temperatura das águas marinhas têm sido responsáveis pela morte de vastas seções de coral, descalabro que se soma à pesca descontrolada para pintar um quadro desalentador do futuro litoral caledoniano.

A população local, apesar do pleno acesso aos bancos escolares, parece ainda não ter sido apresentada ao be-a-bá da educação ambiental. Em minha visita ao Pico Nga, ponto culminante da paradisíaca Île des Pins, deparei com uma montoeira de lixo (in)digna de uma Pedra da Gávea, no Rio de Janeiro. Nas excursões de mergulho, os barqueiros não pensam duas vezes antes de jogar a âncora em cima de coral virgem e intocado.

Mas, se há recursos financeiros, educação e acesso à informação, por que a Nova Caledônia segue submetida a estresse ambiental semelhante ao do Brasil? Na impressionantemente bem manejada Reserva Botânica Provincial Chute de La Madeleine, encontro José. Natural de Caiena, na Guiana, aposentou-se e resolveu vir morar no outro lado do que restou do império colonial francês. Preto de uma negritude profunda, José é, a um só tempo, francês, afro-sul-americano e amazônico. Para ele, na Amazônia, vasta e diversa, como na Caledônia, diminuta e rica em endemismos, nos preocupamos demais. Não crê que possamos fazer muita coisa sem darmos solução ao maior problema que hoje aflige o meio ambiente mundial: as espécies exóticas. Nesse sentido, opina enfático que a Nova Caledônia está inexoravelmente perdida. “Não há o que fazer!”. Afinal, 50% da espécie topo de cadeia da ilha — o homem — é exótica.

Rapidamente me despeço e vou aproveitar o resto das minhas férias. Se ficar, José pode querer fazer a mesma conta para a Amazônia e, a valer essa lógica aritmética, não há horizonte que valha a pena perscrutar.

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